Autor: Ulisses César Martins de Sousa (*)
Multiplicam-se, em todos os estados da federação, o ajuizamento de ações penais — e de improbidade administrativa — propostas sob o argumento de graves lesões ao erário. Algumas dessas ações têm fundamento. Outras são totalmente infundadas, carentes de justa causa. Várias dessas ações são propostas através de iniciais acusatórias que beiram a inépcia e, o que é pior, o recebimento da ação penal — e da ação de improbidade — é realizado através de decisões genéricas, carentes de qualquer fundamentação concreta, baseadas unicamente na “gravidade das acusações” e na repercussão que esses casos costumam ter na imprensa. No recebimento da peça inicial é realizada uma verdadeira inversão da presunção de inocência com a utilização do princípio in dubio pro societate.
Já passa da hora de refletirmos sobre esse tema. Não se trata aqui de defesa da impunidade. O ponto é outro. O que se pretende destacar é a necessidade de maior rigidez por ocasião do oferecimento das acusações e — o que é mais importante — no ato judicial que recebe essas ações.
Nem todo ato ilegal é criminoso. Nem toda irregularidade administrativa praticada por um servidor público configura um ato de improbidade. Infelizmente esses temas têm sido tratados como sinônimos, sendo preciso lembrar que para a caracterização desses ilícitos é necessária a demonstração do elemento subjetivo. A responsabilidade subjetiva constitui regra em nosso sistema, que repudia, tanto na esfera penal quanto na administrativa (artigo 37, § 6º, CF), a responsabilidade objetiva.
A confusão existente no imaginário popular, que tende a acreditar que todo ato ilegal configura um crime ou, se cometido por um agente público, no mínimo tipifica a prática de ato de improbidade, não pode — e nem deve — prevalecer no Poder Judiciário. É preciso acabar com essa tendência — inexplicavelmente generalizada — de se considerar, como ímprobas e/ou criminosas todas as condutas ilegais atribuídas a agentes públicos.
Essa tendência dos órgãos de acusação — e de investigação — de atribuir responsabilidade objetiva ao cidadão, atribuindo-lhe o ônus de provar a sua inocência em juízo não pode ser tolerada. A culpabilidade é um princípio de direito sancionador – extensível ao direito penal e administrativo — que veda a atribuição de responsabilidade objetiva. A culpabilidade do acusado precisa ser demonstrada na inicial acusatória. Essa tarefa é ônus de quem acusa. O ônus da prova da culpa — ou do dolo — é de quem afirma a sua existência.
Necessário lembrar que — ao contrário que pensam alguns — a Constituição Federal ainda consagra o princípio da presunção de inocência — perfeitamente aplicável aos processos que prevejam sanções, ainda que não penais — e que tem por consequência a necessidade de que a acusação comprove, de forma satisfatória, a presença de todos os elementos necessários à configuração do ilícito.
É intolerável que — com a simples invocação do princípio do in dubio pro societate e com a alegação de que eventuais dúvidas poderão ser sanadas no curso do processo — submeta-se o cidadão ao martírio de ser réu em uma ação penal — ou de improbidade administrativa — fato que, por si só, já representa uma verdadeira sanção, ainda mais em um país em que tais processos demoram décadas para serem julgados.
Em um Estado de Direito — que se diz Democrático — não deve haver espaço para a máxima in dubio pro societate. O recebimento de uma ação penal — ou de improbidade administrativa — deve ser sempre condicionado à concreta demonstração de todos os elementos necessários à tipificação do ilícito imputado ao réu e, é claro, à existência de justa causa, ou seja, de um suporte probatório mínimo que sirva para lastrear a acusação e que necessita ser concretamente demonstrado.
Vigora ainda (??) o principio de que não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. O Supremo Tribunal Federal por várias vezes já decidiu que os princípios democráticos que informam o sistema jurídico nacional repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita.
O processo não deve servir para o acusado provar a sua inocência. As ações penais e de improbidade administrativa já representam uma agressão aostatus dignitatis do acusado. A propositura de tais ações deve ser feita com responsabilidade. Não basta mera afirmação de ter havido uma conduta criminosa. Isso porque submeter o cidadão aos rigores de um processo penal exige um mínimo de prova de que tenha praticado o ato ilícito ou concorrido para a sua prática. Quando isso não ocorre estamos diante de denúncia oferecida de forma abusiva e que merece ser rejeitada. Porém, lamentavelmente, essa tem sido a realidade no Brasil: basta a acusação para que se presuma a culpa.
É nítida — principalmente nos casos de grande repercussão — a tendência de se admitir a existência de uma presunção de culpa, camuflada na expressão in dubio pro societate. Contudo, em um Estado Democrático de Direito, calcado no principio da dignidade da pessoa humana, é absurdo tolerar que se submeta alguém aos rigores de um processo penal unicamente com amparo na fórmula in dubio pro societate.
Como bem disse o ministro Teori Zavascki “a sociedade saberá também compreender que a credibilidade das instituições, especialmente do Poder Judiciário, somente se fortalecerá na exata medida em que for capaz de manter o regime de estrito cumprimento da lei, seja na apuração e no julgamento desses graves delitos, seja na preservação dos princípios constitucionais da presunção de inocência, do direito a ampla defesa e do devido processo legal”
Autor: Ulisses César Martins de Sousa é sócio de Ulisses Sousa Advogados Associados.