Ação controlada, se bem gerida, ajuda a combater o crime organizado

Autor: Francisco Sannini Neto (*)

 

Em um cenário onde o crime está cada vez mais organizado, a Lei 12.850/13, que trata das organizações criminosas, surge de maneira auspiciosa, conferindo ao Estado alguns instrumentos aptos à apuração de infrações penais dessa natureza. Entre as técnicas especiais de investigação criminal previstas na Lei, destacamos nesse trabalho a chamada ação controlada.

Trata-se de um meio de obtenção de prova em que a intervenção dos agentes policiais é postergada (diferida) para um momento mais oportuno sob o ponto de vista da produção de provas e demais elementos de informações. De um modo geral, a doutrina costuma relacionar o procedimento de ação controlada com o flagrante prorrogado, postergado ou diferido.

Não é esse, data máxima vênia, o melhor entendimento. Conforme bem apreendido por Luiz Flávio Gomes e Marcelo Rodrigues da Silva,

… não se trata apenas do flagrante ou de se retardar o flagrante. São hipóteses de não se prender em flagrante, não se cumprir mandado de prisão preventiva, não se cumprir mandado de prisão temporária, não se cumprir ordens de sequestro e apreensão de bens. A ação controlada é algo mais amplo do que o simples flagrante prorrogado.[1]

De fato, o artigo 8º, da Lei, é claro ao não restringir o procedimento às ações policiais, fazendo expressa menção às intervenções administrativas, senão vejamos: “Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações”.

Percebe-se, portanto, que essa técnica de investigação é muito mais eficaz do que o flagrante postergado, permitindo, por exemplo, que o corte do serviço de telefone não seja efetivado por falta de pagamento nas situações em que o investigado estiver sendo monitorado através de interceptação telefônica.

Outra situação interessante envolve um caso em que nós atuamos, onde o investigado era suspeito de integrar uma organização criminosa ligada a um crime de homicídio. Durante o inquérito policial foram identificadas duas testemunhas que, na qualidade de fontes de prova, passaram a sofrer ameaças. Ocorre que o autor do homicídio estava sendo alvo de procedimento de interceptação telefônica com o objetivo de reunir outros elementos de informações que demonstrassem que ele concorreu para o crime em questão.

Como ainda não tínhamos elementos suficientes contra o suspeito, representamos pela decretação de sua prisão temporária, dando ciência ao magistrado competente acerca da adoção do procedimento de ação controlada. Em outras palavras, informamos que o mandado de prisão só seria cumprido no momento mais eficaz à formação de provas. Isto, pois, as testemunhas corriam risco e sem o devido mandado judicial a prisão não seria possível.

Assim, já em posse do mandado, as ações do investigado passaram a ser inteiramente monitoradas pela interceptação telefônica, sendo que quando ele se preparava para executar uma das testemunhas, houve a intervenção policial. Note-se que nessa situação não podemos falar em prisão em flagrante, uma vez que o suspeito estava apenas em atos preparatórios para o homicídio. Por óbvio, nesse ínterim foram reunidos outros elementos de informações em seu prejuízo.

Feita essa análise prática da ação controlada, passamos a discorrer sobre um ponto da Lei que vem gerando certa repercussão na doutrina. Nos termos do artigo 8º, §1º: “O retardamento da intervenção policial ou administrativa será previamente comunicado ao juiz competente que, se for o caso, estabelecerá os seus limites e comunicará ao Ministério Público”. Diante disso, indaga-se: a ação controlada exige autorização judicial?

Primeiramente, devemos lembrar que a antiga Lei das Organizações Criminosas (9.034/95) não exigia que o procedimento fosse notificado ou autorizado pelo juiz, razão pela qual, se falava em ação controlada descontrolada. A Lei 12.850/13, por outro lado, estabelece apenas que o retardamento da intervenção deverá ser “previamente comunicado ao juiz competente”.

Nas lições de Renato Brasileiro:

A nova Lei das Organizações Criminosas em momento algum faz menção à necessidade de prévia autorização judicial. Refere-se tão somente à necessidade de prévia comunicação à autoridade judiciária competente. Aliás, até mesmo por uma questão de lógica, se o dispositivo legal prevê que o retardamento da intervenção policial ou administrativa será apenas comunicado previamente ao juiz competente, forçoso é concluir que sua execução independe de autorização judicial. (…) A nosso juízo, a eficácia da ação controlada pode ser colocada em risco se houver necessidade de prévia autorização judicial, haja vista a demora inerente à tramitação desses procedimentos perante o Poder Judiciário.[2]

No mesmo diapasão é o escólio de Gabriel Habib:

Não é necessária autorização judicial para a efetivação da ação controlada. Note-se que o dispositivo dispõe que o retardamento da intervenção policial ou administrativa somente será previamente comunicado ao juiz competente, sem que haja necessidade de autorização.[3]

Impossível discordar diante de tamanha clareza da previsão legal, ficando evidente a sensibilidade do legislador no que se refere à investigação criminal, que, por natureza, é essencialmente dinâmica. Burocratizar a execução desse meio de obtenção de provas é favorecer o crime em detrimento da justiça, especialmente se considerarmos que em tais casos não vai haver qualquer limitação a direitos fundamentais do investigado.

Não obstante, numa interpretação absolutamente contrária ao texto legal, Luiz Flávio Gomes e Marcelo Rodrigues da Silva defendem que o procedimento só pode se realizar após expressa autorização judicial, senão vejamos:

É complicado entender que a autoridade policial ou administrativa possa agir independentemente de autorização judicial nas situações de “ação controlada”. Em primeiro lugar, porque há crime de ação penal pública, de titularidade privativa do Ministério Público, e haveria juízo de valor pela autoridade policial, que não é parte (ou seja, não tem legitimidade ad causam). Em segundo lugar, em termos constitucionais, o art.5º, LXL, CF/88, que reza que ninguém será preso, a não ser por ordem jurisdicional fundamentada ou em flagrante delito, evidencia que o comando constitucional é pela ação da polícia, o que é reforçado pelo art.301, CPP. Então, a Lei 12.850/2013, se levarmos a cabo “prévia comunicação” em seu sentido literal, teria dado liberdade exagerada à autoridade policial para não agir em crime de ação penal pública privativa do Ministério Público, o que relativizaria não só a obrigatoriedade, como também a indisponibilidade do ius puniendi, que não partiria sequer do Parquet, e sim da autoridade policial (que não é titular privativo da ação penal pública) – isso constitucionalmente seria um escárnio.[4]

Parece-nos que os autores em questão confundem a titularidade da ação penal com a titularidade da investigação criminal. Conforme exposto reiteradamente nesse trabalho, a ação controlada é um meio de obtenção de prova, ou seja, uma técnica especial de investigação. Desse modo, é natural que o legislador confira ao delegado de polícia a prerrogativa de executar, de acordo com o seu entendimento, essa medida.

Deveras, por ser o presidente da investigação criminal, presume-se que o delegado de polícia seja o maior conhecedor das suas necessidades, razão pela qual é a autoridade mais indicada para analisar a necessidade e adequação da ação controlada, sobretudo se considerarmos o dinamismo inerente a esta fase, onde a burocratização da diligência pode acarretar em riscos incalculáveis para a  concretização da justiça.

Não podemos olvidar que na qualidade de agente público a autoridade policial deve respeitar a lei, agindo sob as premissas de uma discricionariedade regrada que não tolera abusos. Isso significa que se constatado algum excesso ou ilegalidade, o delegado de polícia deverá ser responsabilizado administrativa e criminalmente. É inadmissível que a nossa persecução penal seja pautada por ilações que de tão desarrazoadas chegam a ofender qualquer agente do Estado, deixando transparecer até certo preconceito, como fizeram Gomes e Rodrigues ao afirmar:

Se foi intenção do legislador não haver prévia autorização judicial para a implementação da ação controlada, foi esta uma opção perigosíssima. Confiar no bom senso é arriscado, pois é algo que as pessoas não têm em todo tempo. Se exercido por um delegado competente é uma coisa, e se exercido por um delegado leniente é outra coisa.[5]

Diante de tais afirmações nos questionamos se o bom senso ou a falta dele atinge apenas a figura do delegado de polícia?! E os juízes, promotores, defensores públicos, fiscais etc., com relação a eles há uma presunção de bom senso em suas ações?! Ora, profissionais bons e ruins existem em todas as instituições públicas, sendo certo que todos devem responder por eventuais equívocos ou abusos cometidos no exercício da função. Na verdade, diferentemente do que nos induz os autores supracitados, todo agente público goza de relativa presunção de legalidade, legitimidade e veracidade nos seus atos.

Por tudo isso, é preciso confiar no discernimento da autoridade policial, que como juízes, promotores, defensores públicos etc. foram aprovados em concurso público. Aliás, não teria o menor sentido o Estado conferir parcela tão significativa do seu poder a um agente para depois questionar os seus atos praticados dentro da legalidade.

É preciso lembrar que o delegado de polícia é a única autoridade com atribuição legal para decretar a prisão de uma pessoa independentemente de ordem judicial. Será que o legislador se esqueceu que existem agentes públicos bons e ruins quando lhe conferiu essa atribuição?! Será que ele não considerou que existem delegados competentes e outros lenientes?! Em outro contexto nos perguntamos: será que existem juízes ou promotores lenientes? E os advogados, essenciais para a justiça, são todos competentes e munidos de um bom senso acima da média?

Enfim, apesar de reconhecer o brilhantismo dos citados autores, temos a convicção de que eles foram extremamente infelizes nesse posicionamento. Ao desenvolver a ação controlada por sua própria conta o delegado de polícia não o faz de maneira aleatória, devendo toda diligência ser consignada em autos próprios e posteriormente detalhada ao Poder Judiciário.

O fato de o Ministério Público ser o titular da ação penal pública não lhe confere a titularidade da investigação criminal, inclusive por ser parte do processo e, portanto, um sujeito parcial. Em momento algum o nosso ordenamento jurídico proíbe que o delegado de polícia emita juízo de valor durante a fase pré-processual, pelo contrário. Na própria instauração do inquérito policial deve ser feita uma análise técnico-jurídica sobre os fatos, onde ele efetiva um juízo de valor indicando a classificação preliminar da conduta. Sem fazer isso o procedimento investigativo nem sequer poderia ser instaurado por ausência de justa causa!

Caso prevaleça o entendimento que ora confrontamos, nenhum inquérito policial poderia ser instaurado sem o parecer do Ministério Público, afinal, não seria lícito o “juízo de valor” exarado pelo delegado de polícia.

Do mesmo modo, não podemos concordar que ao optar pela ação controlada o delegado de polícia estaria dispondo do direito de punir pertencente ao Estado. De fato, o procedimento possibilita uma mitigação ao princípio da legalidade, pois a intervenção policial é postergada diante da prática de um crime. Entretanto, tal mitigação é subsidiada pelo postulado da proporcionalidade, tendo em vista que a ação policial, naquele momento, seria prejudicial para investigação, inviabilizando a perfeita apuração dos fatos criminosos.

Assim, a intervenção da polícia é postergada para o momento mais oportuno do ponto de vista probatório, assegurando, destarte, o correto e mais eficaz exercício do ius puniendi estatal. Destaque-se que a infração cometida objeto da ação controlada não ficará impune, pois será minuciosamente relatada nos autos da investigação, inclusive com filmagens e fotos que reforcem os elementos de informações coligidos.

Lembramos, ainda, que a previsão constante no artigo 8º, §1º, da Lei, no sentido de que a ação controlada deve ser comunicada ao juiz competente, que “se for o caso estabelecerá seus limites”, parece-nos de evidente inconstitucionalidade, uma vez que confere ao juiz poderes investigatórios, fazendo com que ele atue como se delegado de polícia fosse, o que, por óbvio, ofende o princípio da imparcialidade.

É preciso compreender que o papel do juiz na persecução penal é de coadjuvante, mas jamais de protagonista, sobretudo na investigação. Ao conferir ao magistrado o poder de direção dos procedimentos investigatórios o legislador fomenta a sua contaminação pelos elementos produzidos nesta fase e, consequentemente, compromete a sua imparcialidade, tão protegida pela própria Lei 12.850/13.[6]

Não é outro o entendimento de Guilherme de Souza Nucci ao discorrer sobre os limites a serem impostos pelo magistrado:

Não deve ser a regra, mas a exceção, pois não cabe ao juiz fixar os parâmetros da ação controlada, uma atividade típica de investigação. Quem mais pode saber até onde ir é o delegado e, também, o Ministério Público, porém não o Magistrado, que não deve buscar provas nessa fase investigatória.[7]

Concluindo, reiteramos que o procedimento de ação controlada constitui uma importante ferramenta no combate ao crime organizado, devendo ser utilizada com responsabilidade e sob as premissas legais, objetivando sempre a busca pela verdade possível acerca do fato criminoso e o correto exercício do direito de punir pertencente ao Estado.

 

 

 

 

Autor: Francisco Sannini Neto é delegado da Polícia Civil de São Paulo, mestrando em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. É professor da Graduação e da Pós-graduação da UNISAL/Lorena.


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