Autor: Gustavo Filipe Barbosa Garcia (*)
Muito se tem debatido a respeito da prevalência da negociação coletiva em face da legislação trabalhista.
O entendimento tradicional da doutrina é no sentido de que deve prevalecer a norma mais favorável ao empregado, como decorrência do princípio da proteção, inerente ao Direito do Trabalho, em consonância com o artigo 7º,caput, da Constituição da República.
Ainda assim, admite-se a flexibilização de direitos trabalhistas, por meio de negociação coletiva, nas hipóteses de redução de salário, compensação e redução da jornada de trabalho e turnos ininterruptos de revezamento (artigo 7º, incisos VI, XIII e XIV da Constituição Federal de 1988), justamente com os objetivos de proteção do emprego e de adaptação às atuais condições sociais e econômicas[1].
Nesse contexto, as convenções e acordos coletivos, como instrumentos normativos decorrentes da autonomia coletiva dos particulares, são expressamente reconhecidos no artigo 7º, inciso XXVI, da Constituição da República.
A respeito do tema, observa-se na atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a nítida tendência de se prestigiar e reconhecer a prevalência das normas coletivas negociadas em face da legislação trabalhista, notadamente em matérias relacionadas a salário e jornada de trabalho, tendo como fundamento os mencionados preceitos constitucionais.
Nesse sentido, ao analisar o tema da transação extrajudicial decorrente de adesão do empregado a plano de demissão incentivada, quando instituído por acordo coletivo, o STF firmou o entendimento de que a quitação é ampla e abrange todas as verbas do contrato de trabalho extinto, se assim previsto na norma coletiva negociada. Para a melhor compreensão, transcreve-se a ementa do julgado em questão.
“Direito do Trabalho. Acordo coletivo. Plano de dispensa incentivada. Validade e efeitos. 1. Plano de dispensa incentivada aprovado em acordo coletivo que contou com ampla participação dos empregados. Previsão de vantagens aos trabalhadores, bem como quitação de toda e qualquer parcela decorrente de relação de emprego. Faculdade do empregado de optar ou não pelo plano. 2. Validade da quitação ampla. Não incidência, na hipótese, do art. 477, § 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, que restringe a eficácia liberatória da quitação aos valores e às parcelas discriminadas no termo de rescisão exclusivamente. 3. No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual. 4. A Constituição de 1988, em seu artigo 7º, XXVI, prestigiou a autonomia coletiva da vontade e a autocomposição dos conflitos trabalhistas, acompanhando a tendência mundial ao crescente reconhecimento dos mecanismos de negociação coletiva, retratada na Convenção n. 98/1949 e na Convenção n. 154/1981 da Organização Internacional do Trabalho. O reconhecimento dos acordos e convenções coletivas permite que os trabalhadores contribuam para a formulação das normas que regerão a sua própria vida. 5. Os planos de dispensa incentivada permitem reduzir as repercussões sociais das dispensas, assegurando àqueles que optam por seu desligamento da empresa condições econômicas mais vantajosas do que aquelas que decorreriam do mero desligamento por decisão do empregador. É importante, por isso, assegurar a credibilidade de tais planos, a fim de preservar a sua função protetiva e de não desestimular o seu uso. 7. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: ‘A transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho, em razão de adesão voluntária do empregado a plano de dispensa incentivada, enseja quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas objeto do contrato de emprego, caso essa condição tenha constado expressamente do acordo coletivo que aprovou o plano, bem como dos demais instrumentos celebrados com o empregado’” (STF, Pleno, RE 590.415/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 29.05.2015).
Mais recentemente, ao examinar a supressão das horas in itinere por meio de acordo coletivo de trabalho, decidiu-se pela sua validade, como se observa na seguinte decisão:
“1. Trata-se de recurso extraordinário interposto em reclamação trabalhista visando, no que importa ao presente recurso, à condenação da reclamada ao pagamento de 4 (quatro) horas in itinere, com os reflexos legais. O Tribunal Superior do Trabalho decidiu a controvérsia nos termos da seguinte ementa (fl. 1, doc. 29):
RECURSO DE EMBARGOS INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI N.º 11.496/2007. HORAS IN ITINERE. SUPRESSÃO. NORMA COLETIVA. INVALIDADE.
1. O princípio do reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, consagrado no artigo 7º, XXVI, da Constituição da República, apenas guarda pertinência com aquelas hipóteses em que o conteúdo das normas pactuadas não se revela contrário a preceitos legais de caráter cogente.
2. O pagamento das horas in itinere está assegurado pelo artigo 58, § 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho, norma que se reveste do caráter de ordem pública. Sua supressão, mediante norma coletiva, ainda que mediante a concessão de outras vantagens aos empregados, afronta diretamente a referida disposição de lei, além de atentar contra os preceitos constitucionais assecuratórios de condições mínimas de proteção ao trabalho. Resulta evidente, daí, que tal avença não encontra respaldo no artigo 7º, XXVI, da Constituição da República. Precedentes da SBDI-I.
3. Recurso de embargos conhecido e não provido.
Os embargos de declaração opostos foram rejeitados.
No recurso extraordinário, a parte recorrente aponta, com base no art. 102, III, “a”, da Constituição Federal, violação aos seguintes dispositivos constitucionais: (a) art. 7º, VI, XIII, XIV e XXVI, pois (I) “a Constituição Federal expressamente admitiu a negociação coletiva de questões afetas ao salário e à jornada de trabalho” (fl. 13, doc. 38); (II) “o art. 58, § 2º, da CLT não se qualifica como norma de ordem pública, tampouco envolve direito indisponível” (fl. 13, doc. 38); (III) houve “a outorga de diversos benefícios em troca da flexibilização do pagamento das horas in itinere, de modo que, como um todo, a norma coletiva se mostra extremamente favorável aos trabalhadores” (fl. 25, doc. 38); (b) art. 5º, LIV, porque o acórdão recorrido “desborda da razoabilidade, vulnerando a proporcionalidade”, uma vez que desconsiderou “acordo coletivo, veiculando flexibilização salarial em prol dos obreiros (…), obrigando o custeio das horas in itinere, e, concomitantemente” (fl. 27, doc. 38), manteve as demais vantagens compensatórias.
Sem contrarrazões.
O recurso extraordinário foi admitido na origem, sendo determinada sua remessa a esta Corte como representativo da controvérsia, nos termos do art. 543-B, § 1º, do CPC/1973.
2. O Plenário do Supremo Tribunal Federal apreciou discussão semelhante à presente, sob o rito do art. 543-B do CPC/1973, no julgamento do RE 590.415 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe de 29/5/2015, Tema 152), interposto contra acórdão do Tribunal Superior do Trabalho que negara a validade de quitação ampla do contrato de trabalho, constante de plano de dispensa incentivada, por considerá-la contrária ao art. 477, § 2º, da CLT. Ao analisar o recurso paradigma, o STF assentou a seguinte tese:
A transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho, em razão de adesão voluntária do empregado a plano de dispensa incentivada, enseja quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas objeto do contrato de emprego, caso essa condição tenha constado expressamente do acordo coletivo que aprovou o plano, bem como dos demais instrumentos celebrados com o empregado.
O voto condutor do acórdão, da lavra do Ministro Roberto Barroso, foi proferido com base nas seguintes razões: (a) “a Constituição reconheceu as convenções e os acordos coletivos como instrumentos legítimos de prevenção e de autocomposição de conflitos trabalhistas; tornou explícita a possibilidade de utilização desses instrumentos, inclusive para a redução de direitos trabalhistas; atribuiu ao sindicato a representação da categoria; impôs a participação dos sindicatos nas negociações coletivas; e assegurou, em alguma medida, a liberdade sindical (…)”; (b) “a Constituição de 1988 (…) prestigiou a autonomia coletiva da vontade como mecanismo pelo qual o trabalhador contribuirá para a formulação das normas que regerão a sua própria vida, inclusive no trabalho (art. 7º, XXVI, CF)”; (c) “no âmbito do direito coletivo, não se verifica (…) a mesma assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Por consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual”; (d) “(…) não deve ser vista com bons olhos a sistemática invalidação dos acordos coletivos de trabalho com base em uma lógica de limitação da autonomia da vontade exclusivamente aplicável às relações individuais de trabalho”.
3. No presente caso, a recorrente firmou acordo coletivo de trabalho com o sindicato da categoria à qual pertence a parte recorrida para que fosse suprimido o pagamento das horas in itinere e, em contrapartida, fossem concedidas outras vantagens aos empregados, “tais como ‘fornecimento de cesta básica durante a entressafra; seguro de vida e acidentes além do obrigatório e sem custo para o empregado; pagamento do abono anual aos trabalhadores com ganho mensal superior a dois salários-mínimos; pagamento do salário-família além do limite legal; fornecimento de repositor energético; adoção de tabela progressiva de produção além da prevista na Convenção Coletiva” (fl. 7, doc. 29).
O Tribunal de origem entendeu, todavia, pela invalidade do acordo coletivo de trabalho, uma vez que o direito às horas in itinere seria indisponível em razão do que dispõe o art. 58, § 2º, da CLT:
Art. 58 (…)
§ 2º O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução.
O acórdão recorrido não se encontra em conformidade com a ratioadotada no julgamento do RE 590.415, no qual esta Corte conferiu especial relevância ao princípio da autonomia da vontade no âmbito do direito coletivo do trabalho. Ainda que o acordo coletivo de trabalho tenha afastado direito assegurado aos trabalhadores pela CLT, concedeu-lhe outras vantagens com vistas a compensar essa supressão. Ademais, a validade da votação da Assembleia Geral que deliberou pela celebração do acordo coletivo de trabalho não foi rechaçada nesta demanda, razão pela qual se deve presumir legítima a manifestação de vontade proferida pela entidade sindical.
Registre-se que a própria Constituição Federal admite que as normas coletivas de trabalho disponham sobre salário (art. 7º, VI) e jornada de trabalho (art. 7º, XIII e XIV), inclusive reduzindo temporariamente remuneração e fixando jornada diversa da constitucionalmente estabelecida. Não se constata, por outro lado, que o acordo coletivo em questão tenha extrapolado os limites da razoabilidade, uma vez que, embora tenha limitado direito legalmente previsto, concedeu outras vantagens em seu lugar, por meio de manifestação de vontade válida da entidade sindical.
4. Registre-se que o requisito da repercussão geral está atendido em face do que prescreve o art. 543-A, § 3º, do CPC/1973: “Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal”.
5. Diante do exposto, com base no art. 557, § 1º-A, do CPC/1973, dou provimento ao recurso extraordinário para afastar a condenação da recorrente ao pagamento das horas in itinere e dos respectivos reflexos salariais. Após o trânsito em julgado, oficie-se à Vice-Presidência do Tribunal Superior do Trabalho, encaminhando-lhe cópia desta decisão para as devidas providências, tendo em conta a indicação do presente apelo como representativo de controvérsia (STF, RE 895.759/PE, Rel. Min. Teori Zavascki, decisão monocrática, DJe 13.09.2016).
Não obstante, cabe notar que o próprio Supremo Tribunal Federal já havia decidido no sentido da ausência de repercussão geral quanto ao mencionado tema, salientando que a matéria envolve a interpretação de normas infraconstitucionais, como se observa nos seguintes julgados:
“Processual Civil. Recurso Extraordinário. Norma coletiva de trabalho. Pagamento das horas in itinere. Fixação de limite inferior à metade do tempo efetivamente gasto no trajeto até o local do serviço. Validade. Matéria infraconstitucional. Ausência de repercussão geral. 1. A controvérsia relativa à validade de norma coletiva de trabalho que limita o pagamento de horas in itinere a menos da metade do tempo efetivamente gasto pelo trabalhador no seu trajeto até o local do serviço, fundada na interpretação da Consolidação das Leis do Trabalho e da Lei 10.243/01, é de natureza infraconstitucional. 2. É cabível a atribuição dos efeitos da declaração de ausência de repercussão geral quando não há matéria constitucional a ser apreciada ou quando eventual ofensa à Carta Magna se dê de forma indireta ou reflexa (RE 584.608 RG, Min. Ellen Gracie, DJe de 13/3/2009). 3. Ausência de repercussão geral da questão suscitada, nos termos do art. 543-A do CPC” (STF, Pleno, RG-RE 820.729/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe 03.10.2014).
“Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Trabalhista. Recurso de revista. Análise dos pressupostos de admissibilidade. Ausência de repercussão geral. Horas in itinere. Jornada de trabalho. Legislação infraconstitucional. Cláusulas de acordo coletivo. Reexame. Impossibilidade. Precedentes. 1. O Plenário do STF, no exame do RE nº 598.365/MG, Relator o Ministro Ayres Britto, concluiu pela ausência de repercussão geral do tema relativo a pressupostos de admissibilidade de recursos da competência de outros tribunais, dado o caráter infraconstitucional da matéria. 2. A solução da lide não prescinde da análise da legislação infraconstitucional nem do reexame das cláusulas de acordo coletivo de trabalho, os quais são inviáveis no recurso extraordinário. Incidência das Súmulas nºs 636 e 454/STF. 3. Agravo regimental não provido” (STF, 2ª T., AgR-ARE 923.188/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 08.03.2016).
“Processual Civil e do Trabalho. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário. Norma coletiva de trabalho. Valor das horas in itinere. Repercussão geral rejeitada no julgamento do RE 820.729-RG (de minha relatoria, Tema 762). Agravo Regimental a que se nega provimento” (STF, 2ª T., AgR-RE 820.505/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe 01.12.2015).
“Agravo Regimental em Recurso Extraordinário com Agravo. Validade de norma coletiva de trabalho que estabelece limite diário para pagamento ao empregado de horas extras a título de deslocamento (horas in itinere). Controvérsia circunscrita ao âmbito infraconstitucional. Precedentes. 1. Não é possível, em recurso extraordinário, reexaminar a legislação infraconstitucional aplicada ao caso, dado que eventual ofensa à Constituição Republicana apenas ocorreria de modo reflexo ou indireto. 2. De mais a mais, o Supremo Tribunal Federal entende ser incabível na via recursal extraordinária o reexame da validade de cláusula de acordo ou convenção coletivos. Isso porque a interpretação de tais instrumentos normativos demanda o revolvimento de matéria fática, atinente à realidade de trabalho própria de cada categoria, incluindo a ponderação, caso a caso, das vantagens e desvantagens oriundas da estipulação de determinadas condições de trabalho pelas partes acordantes (Súmulas 279 e 454/STF). 3. Agravo regimental desprovido” (STF, 2ª T., AgR-ARE 654.467/PE, Rel. Min. Ayres Britto, DJe 16.12.2011).
É certo que a negociação coletiva de trabalho deve ser estimulada, por se consubstanciar em procedimento legítimo e democrático de pacificação social, dando origem a normas jurídicas autônomas, isto é, produzidas pelos próprios interessados.
No Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa (artigo 1º, incisos III e IV, da Constituição da República), a autonomia coletiva dos particulares, entretanto, não deve ser exercida com o objetivo de supressão e de precarização de direitos trabalhistas, mas sim de melhoria das condições sociais, com o aperfeiçoamento da disciplina das relações de trabalho e a adaptação do sistema jurídico às necessidades dos tempos contemporâneos.
Mesmo porque integram os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos (art. 3º da Constituição Federal de 1988).
Cabe, assim, acompanhar a evolução legislativa e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a relevante e controvertida questão.
Autor: Gustavo Filipe Barbosa Garcia é livre-docente e doutor pela Faculdade de Direito da USP, pós-doutor e especialista em Direito pela Universidad de Sevilla, professor, advogado e membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e membro pesquisador do IBDSCJ. Foi juiz, procurador e auditor fiscal do Trabalho.