STF quer fazer da Praça dos Três Poderes uma praça só sua

Autor:  David Teixeira de Azevedo (*)

 

No relacionamento entre o cidadão e o Estado não há meio-termo: ou prevalece a presunção de culpa ou prevalece a presunção de inocência.Tertium non datur. A presunção de culpabilidade é característica de um regime totalitário. A presunção de inocência de um regime democrático. No regime de cariz totalitário, o processo não passa de um instrumento meramente técnico, politicamente comprometido com os valores de estado, cujo objetivo é o oferecimento de uma resposta estatal qualquer, sem compromisso com a justiça material mas vinculado a razões de estado.

Foi assim no regime nacional-socialista alemão e fascista italiano, repercutidos aqui no regime totalitário de Vargas de 10 de novembro de 1937, que já produzira a excrescência jurídica da criação do Tribunal de Segurança Nacional e gerou o Decreto-lei 88, de 20 de dezembro de 1937. Este decreto vetou o efeito suspensivo da apelação criminal (artigo 8º), ao tempo em que criou a figura do recurso  de ofício para decisões absolutórias (artigo 8º, parágrafo único) e estatuiu a inversão do ônus da prova (artigo 20, item 5).

Um Judiciário descomprometido com os valores da pessoa humana e descompromissado com a cidadania restringe de modo crescente os direitos fundamentais, eclipsa a ampla defesa e o contraditório, e trabalha na retirada do sistema dos recursos previstos para revisão de suas decisões.

Opera um raciocínio meramente burocrático, orientado por uma filosofia pragmático-utilitária; isto é, prestigiam-se números e estatísticas, a eficiência formal do sistema sem indagação de seu conteúdo de Justiça.

Por suposto, os mecanismos para correção do erro judiciário estariam dentro do próprio sistema: revisão criminal. Por isso, pouco importa a injustiça da decisão, tendo-se por secundário ou desimportante o cidadão ver-se submetido a um rigor punitivo injusto e ilegal, sem merecimento, num arremedo de jurisdição em que distante  o devido processo legal.

O processo degenera-se, deste modo, num instrumento para demonstração à sociedade da efetividade do sistema punitivo, cujo conhecido é previsível mau funcionamento resolve-se  em perdas e danos. O homem é assim quantificado, reificado, tornado coisa numa ideia de racionalidade instrumental. Vale o funcionamento do sistema. Seu equilíbrio homeostático, ou, visto de outra forma, o que vale é a reafirmação das expectativas normativas contrafáticas, a simples validez e equilíbrio do ordenamento jurídico, ainda que a custo da personalidade humana, ente considerado “inimigo”.

No duelo “eficiência versus garantias”, assiste-se nesta última década à crescente relativização dos valores da pessoa humana e à diluição do cidadão no todo social. Percebe-se um olhar favorecido para o funcionamento do sistema punitivo e uma subserviência do Judiciário às demandas sociais afetivas de punição.

Aliás, o Supremo Tribunal Federal, em cuja frente está o granito da Justiça de Alfredo Ceschiatti, quer fazer da Praça dos Três Poderes uma praça só sua. Assim, pretende a prerrogativa não só de julgar mas também de legislar. Neste último aspecto, não hesita mesmo em fazer-se poder constituinte, e poder constituinte originário, para alterar cláusulas pétreas da Constituição e reescrever o texto constitucional a seu gosto.

O princípio do devido processo legal, da presunção de inocência, de par com a ideia da ampla defesa expressa nos recursos previstos no sistema não permitem um trabalho “hermenêutico” de perversão do texto legal e violação de seu espírito normativo manifesto.

Não é tolerável de um só golpe abater o princípio do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CF), da ampla defesa (artigo 5º, LV, da CF) e da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da CF).

Não pode o guardião da Constituição tornar-se seu algoz. De soldado avançado na luta das garantias democráticas, desertar e engrossar o exército poderoso daqueles que querem abater o cidadão em seus direitos fundamentais, negá-lo como pessoa humana, ratio e telos da constituição do estado; um ser tomado de invencível é insubstituível dignidade.

Nao se deve transigir com princípios constitucionais, normas estruturantes do sistema normativo, muito menos encaminhar-se um raciocínio de ponderação de princípios porque tais princípios, aqui, agasalham valores de diferentes natureza e densidade.

Espera-se que a Suprema Corte retome sua histórica proteção incondicional da pessoa humana, fim, não meio, ser intrinsecamente valente e não instrumento de satisfação de demandas emocionais, pulsionais e por isso irracionais de punição.

 

 

 

Autor:  David Teixeira de Azevedo  é advogado e professor de Direito Penal da USP.


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