Autor: Cezar Peluso (*)
Sentido do vocábulo
Agora tentarei fazer uma síntese dos desdobramentos do alcance do princípio, sobretudo perante a nossa Constituição de 1988, que o adotou de modo expresso no artigo 5º, LVII. Nenhuma Constituição anterior o consagrou literalmente. E é muito interessante rever a história da redação desse inciso, porque o artigo 43, § 1º, do Anteprojeto dizia o seguinte: “Presume-se inocente todo acusado, até que haja declaração judicial de culpa”. O deputado constituinte, que depois foi governador do estado do Espírito Santo, José Inácio Ferreira, apresentou emenda que resultou na redação atual do inciso LVII, onde se estatui, com outras palavras, que ninguém — ninguém — será considerado culpado, até que lhe sobrevenha sentença condenatória definitiva.
Há aí alguma diferença? Toda! Porque nossa Constituição é o único ordenamento jurídico que revela essa amplitude da garantia, pois, introduzindo o vocábulo “ninguém”, não a restringiu ao réu do processo penal. A regra, portanto, apanha, já no campo do processo, vamos dizer assim, quem se encontre em posição análoga em todas as fases anteriores da persecução criminal: apanha o mero suspeito, o investigado e o indiciado. Nenhum deles pode ser considerado culpado, senão inocente, para efeito de tratamento normativo, até que sobrevenha sentença condenatória definitiva. Mas vai além, porque extravasa o processo e se aplica a todas as situações redutíveis ao modelo do processo penal, como, por exemplo, os procedimentos disciplinares, administrativos ou não, onde ninguém pode ser tratado como se fosse culpado, antes de juízo definitivo de culpabilidade.
Como é que tem sido tratado isso na história da nossa jurisprudência? Até a atual Constituição, o STF, se não me falha a memória sobre velha pesquisa, dedicou pouco mais de duas ou três decisões a respeito do princípio, as quais nem eram muito explícitas, porque mais se debruçavam sobre a vertente da regra de juízo. Alguns tribunais estaduais aplicavam o princípio sob fundamento de que tinha sido incorporado ao ordenamento por força da Declaração dos Direitos do Homem, mas também o aplicavam com certa parcimônia.
O fato é que, após o início de vigência da atual Constituição, é que se avivou o problema, que, levado ao STF por diversas vias, como vamos ver, suscitou e suscita esta indagação: qual a substância normativa do seu tríplice significado? Tal substância pode resumir-se no seguinte: é a garantia constitucional que proíbe a aplicação de qualquer espécie de sanção ou de outra medida que, gravosa à esfera jurídica do réu, seja causalmente dependente de um juízo de culpabilidade ainda não definitivo.
O que estou querendo com isso dizer? Estou querendo dizer que a regra constitucional não permite que o ordenamento jurídico, e, muito menos, os seus executores, apliquem ao réu, ou a quem se encontre em situação assemelhada à do réu, nenhuma medida de caráter sancionador, nem sequer quando se dê a esta palavra um caráter mais restrito, isto é, nenhuma medida de caráter gravoso ou lesivo à sua esfera jurídica como um todo, e não apenas à sua liberdade, se tal medida só tiver uma explicação jurídica que seja um juízo de culpabilidade — a menos que esse juízo de culpabilidade constitua decisão transitada em julgado.
Em outras palavras, não se pode aplicar ao réu, em particular — vamos tratar aqui apenas do réu — nenhuma medida, nenhuma, que seja danosa a seu patrimônio jurídico de liberdade ou até material, e cuja explicação única seja a existência, patente ou latente, de juízo de culpabilidade antes de uma sentença penal condenatória definitiva. Dou um exemplo: no que concerne a decreto de prisão preventiva, cuja fundamentação real, não a formal (porque a explicação formal pode revestir-se de palavras cuidadosas que evoquem motivos até nobres, mas que escamoteiam a realidade), só se entenda e justifique como produto de consideração judicial de culpa de quem ainda não foi definitivamente condenado, então temos um caso de ofensa claríssima à Constituição.
E não há aqui meio termo, como se pudéssemos objetar: “Bem, não se podem aplicar todas as sanções ao réu, mas algumas podem”. Não, não se pode aplicar nenhuma! Nenhuma medida gravosa, como, por exemplo, já reconheceu o STF em favor de servidor público, réu em processo por crime contra a administração pública, a quem o governo determinou que, enquanto corresse o processo penal, fosse aplicado desconto permanente de um terço dos vencimentos.
Havia, nisso, afronta direta à regra constitucional da chamada presunção de inocência, embora a sanção, ou desconto mensal de parte dos vencimentos, não ofendesse a liberdade pessoal do réu, mas seu patrimônio pecuniário. Era uma sanção, medida lesiva, e, portanto, sua aplicação era incompatível com o alcance da regra. Não se dava ao réu o tratamento de quem devia ser considerado ou presumido inocente!
Sentimento inato
E é muito simples a racionalidade do princípio. Por quê? Por vários motivos, um dos quais já foi aventado por Beccaria, que reconhecia, mais ou menos, o seguinte: a humanidade não ganha nada ao condenar um inocente ou aplicar-lhe uma sanção, que é sempre irreversível.
Muitos se lembram de um filme famoso do super-homem, em que a mocinha morre num evento qualquer e, diante da tragédia, o super-homem voa e faz girar a Terra em sentido contrário, refazendo o curso da história. Não temos super-homem que faça isso com as medidas gravosas aplicadas aos réus, que ao final sejam reputados inocentes. Nada é reversível. Não há dinheiro que pague o sofrimento imposto a um inocente, em particular quando essa inocência vem a ser declarada ao cabo do processo penal.
E, mais, isso afronta um sentimento inato de justiça, que os que temos filhos e netos somos capazes de aprender com eles, que ficam revoltados quando sofrem punição injusta dos pais, ou dos avós. Avós, normalmente, não punem neto. Só deseducam. Até as crianças ficam revoltadas quando sofrem punição por algo que não fizeram. Isto é, até as crianças trazem em si, como próprio do espírito humano, essa capacidade de se indignar com punição injusta. E isto, a agressão ao sentimento universal de justiça, o ordenamento jurídico não pode convalidar, ainda que sob disfarce de medidas de aparente defesa social.
Na prática, como se particularizam ou quais são as consequências desse princípio? Muitos são importantíssimos, mas o primeiro deles é que a regra da chamada presunção de inocência é o critério fundamental de avaliação da justiça do processo.
O que significa isso? Às vezes, não prestamos atenção às palavras. Todos repetimos a tradução, de certo modo correta, da dupla adjetivação do enunciado “devido processo legal”. Mas só nos preocupamos com o fato de o processo dever ser legal, revoltando-nos, justamente, quando não seja legal. Mas poucos se perguntam por que o processo, segundo a Constituição, além de ser legal, tem que ser devido. A palavra devido está fazendo o quê na expressão? Está enfeitando o enunciado? Não. É a jurisprudência da Suprema Corte Norte-Americana que faz muito nos revelou o sentido eminente do due na experiência jurisprudencial anglo-saxã, de onde nos veio a garantia sob título de due process of law.
O que exprime esse adjetivo? Exprime apelo para os critérios superiores de Justiça dominantes na consciência da sociedade em certo período histórico. Ou seja, para que um processo seja constitucional, compatível com a Constituição, não basta seja disciplinado por lei constitucional (ser legal). Além disso, tem que ser um processo cujo perfil normativo é devido por justiça (ser justo). Foi este aspecto vital, não raro despercebido, que emenda da Constituição italiana pretendeu acentuar, dando nova redação ao artigo 111, primeira parte, que agora dispõe: La giuridizione si attua mediante il giusto processo regolato dalla legge. Eis a tradução perfeita do due proces of law: o justo processo da lei.
Nos votos que proferi a respeito no STF, muitas vezes preferi usar a expressão justo processo da lei, para enfatizar que o processo, além de ser legal, precisa ser justo. E o critério constitucional de aferição ou medida da justiça do processo é a regra da presunção da inocência, porque, se o réu seja tratado, pela lei, dentro do processo, como se fosse culpado, poderia até imaginar-se um processo legal, mas não será nunca um processo justo, e, portanto, não é compatível com a Constituição.
O processo penal tem fim instrumental evidente, que é apurar culpa e puni-la, mas tem também fim metodológico. Qual é este fim metodológico? É garantir a liberdade e a dignidade do réu no curso do processo, pelo simples fato de tratar-se de um ser humano que, ainda quando acusado e eventualmente culpado do crime mais abominável, não perde a condição de ser humano, dotado da dignidade comum, que o ordenamento jurídico tem que respeitar.
Não se cuida de invenção de juristas, nem de advogados desocupados. É uma conquista, aliás custosa, do espírito humano e da civilização, e que, como tal, governa a orientação legal do tratamento do réu e é a fonte das suas prerrogativas, tanto as legais, quanto as constitucionais, que integram o modelo liberal de processo adotado entre nós por força da garantia. É, nesse sentido, técnica contra os abusos da perseguição estatal, as pressões odiosas da opinião pública e os excessos da mídia, todas as quais estão submetidas à Constituição.
Não é apenas o juiz, que eventualmente viola a Constituição, é também a opinião pública e, não raro, a mídia, quando e porque consideram culpado e tratam como tal quem é apenas mero réu no curso do processo. Nada disto é condizente com a Constituição da República.
E o princípio é também regra de juízo, regra decisória. Como sabemos, as chamadas regras do ônus da prova são apenas indiretamente estímulos para o comportamento das partes dentro do processo. Sua destinação direta e específica é outra: serem regras dirigidas ao juiz, regras de decisão. Para quê? Para aqueles casos em que, encerrada a instrução sem alternativa doutras provas, isto é, aqueles casos em que se esgotaram todas as possibilidades de prova, mas o juiz permanece num estado de incerteza absoluta que não é capaz de superar.
Ele não pode proferir um non liquet, é obrigado a decidir. E como vai decidir? Nos termos que lhe indicam as regras do ônus da prova, a lei diz como fazê-lo. Mas vamos aqui cuidar como o diz a Constituição.
No processo civil, a regra do ônus da prova está ligada às dificuldades de prova das fattispecie normativas, razão por que, da sua moldura, a lei separa os elementos abstratos em fatos constitutivos e fatos liberatórios, distribuindo-lhes o encargo de prova ao autor e ao réu, porque, se só um deles tivesse que provar tudo, ficaria muito difícil. Tal distribuição ajusta-se ao campo do processo civil, porque o objeto útil de defesa é aí a liberdade jurídica do réu.
Na área do processo penal, o que está em jogo é a liberdade física do réu, de modo que a regra do ônus da prova evidentemente não podia ser a mesma. E até se discute se há, deveras, regra de ônus da prova no processo penal, mas isso não nos interessa aqui, porque o que releva é que o princípio da presunção de inocência dita a regra da decisão: se não estiver provada a acusação, o juiz tem de absolver o réu. Por quê? Porque é a acusação que fixa o objeto da prova no processo penal. No processo penal, não há outro objeto de prova. A inocência do réu não é objeto da prova do processo penal.
O objeto de prova do processo penal é a acusação, e, daí, todas as consequências que nascem da regra constitucional, de que o réu não tem de colaborar com a acusação, porque o réu não precisa fazer prova da sua inocência e tem o direito de não se autoincriminar. Por quê? Porque não tem ônus de provar que a acusação não procede. É o autor da ação penal que tem de prová-la; se não prova, o juiz é obrigado, por força, não do artigo 386 do CPP, mas da Constituição, pelo princípio da presunção de inocência, a declará-lo inocente.
Isso vale não apenas em termos do in dubio pro reo, mas também em termos de interpretação, a título de favor rei. Ou seja, até a interpretação das normas penais e processuais penais há de ser sempre favorável ao réu. Nenhuma norma de caráter penal ou processual penal pode ser, em caso de dúvida, interpretado em dano do réu, porque ofende a regra constitucional da presunção de inocência.
Vejamos exemplos práticos de certas ofensas constitucionais: tratamento policial desrespeitoso a suspeitos, a indiciados; tratamentos judiciais abusivos; algemas desnecessárias, a cujo respeito o Supremo editou súmula vinculante, admitindo-as apenas em caso de risco fundado à segurança própria ou alheia; exigir ao réu falar de pé, o que me induz à tentação de pensar se estivesse o magistrado, por absurdo, interrogando a mãe, a deixaria de pé?
Há, por outro lado, necessidade de rever o Código de Processo Penal de 1942, confessadamente inspirado no Código italiano de 1931, concebido nas entranhas do fascismo pelos irmãos Rocco. Não estou falando aqui do Rocco e Seus Irmãos, do Luchino Visconti, não. Estou falando do Arturo, o Penalista, e do Alfredo, Ministro da Justiça de Mussolini, ambos os quais, um de modo direto, com Manzini, redigindo-o, e o outro, defendendo a adoção do Código fascista de 31, do qual o nosso herdou vários institutos, como a extinta obrigatoriedade da prisão preventiva, o primado da defesa social, etc., tudo o que pede, em nome da regra constitucional, permanente revisão exegética, até para evitar coisas de certo modo até perturbadoras.
Durante certa época, o STF admitia a chamada execução provisória, que é espécie de tutela provisória ou antecipada no campo penal. Isto é, prende-se o réu, executa-se a pena, antes de a sentença condenatória transitar em julgado. Houve até ministro que sustentou o seguinte: a regra constitucional da presunção de inocência aplica-se em alguns casos, como, por exemplo, impede lançar o nome do réu no rol dos culpados, não, porém, em outros. Ou seja, cumprir pena, pode, antes do trânsito em julgado; lançar o nome do réu no livro, não! Fui juiz durante 45 anos. Nunca vi um livro chamado Rol dos Culpados! Nem sei se existe, ou existiu!
Há coisas que me dão satisfação, pelo fato de sair com a consciência tranquila de ter cumprido o meu papel no STF. Nesse sentido, fui um dos que colaborei para que o Supremo já não permitisse execução provisória. Isto se deu no julgamento do HC 84.078 e, em particular, numa reclamação, onde o meu voto está declarado, a Rcl 2.391, que acabou sendo julgada prejudicada, porque, antes do termo do julgamento, o réu foi solto. Mas ali se deixou claro que a regra constitucional não permite execução antecipada da pena. E também colaborei na revogação da jurisprudência que exigia ao réu recolher-se preso para apelar, o que insultava a regra constitucional da presunção de inocência, de igual modo.
É bem verdade que fiquei vencido na questão das chamadas fichas sujas. Fazer o quê! Nada é unânime nesse mundo! Provavelmente, fui eu que estive errado, e certa a douta maioria. Mas a mim me parecia, e ainda parece, que aplicar uma consequência gravosa por uma decisão judicial que não transitou em julgado, para impedir a elegibilidade, era ofensa à regra constitucional.
Mas o que mais chama a atenção — de todos, provavelmente —, e suponho não seja exagero, é o problema da prisão preventiva. Não vou relembrar aqui os princípios da cautelaridade no processo penal, mas partir de uma afirmação que não é minha, senão de grande jurista, que também é ministro de Suprema Corte da Argentina, Raul Eugenio Zaffaroni, que fez a seguinte observação: na América Latina, as normas sobre prisão preventiva não são normas processuais, são normas penais, porque o seu destino é infligir sofrimento aos réus.
A prisão preventiva só pode, não de acordo com o Código de Processo, mas com a regra constitucional da presunção de inocência, justificar-se, por exemplo, por necessidade da preservação do processo, como, por exemplo, diante de possibilidade concreta de perversão da prova, por corrupção de perito, intimidação de testemunha etc.; ou por conveniência de evitar que réu, cujo ato seja objeto de provas solidíssimas de culpabilidade, escape à aplicação da pena, quando haja indícios fortes de que vá fugir.
Mas a gravidade dos problemas sobre prisão preventiva está menos nessas hipóteses que no entendimento da expressão oca “ofensa à ordem pública”. Há muitos anos proferi palestra sobre ordem pública, e, na sua preparação, apurei que, em direito, a primeira vez em que se usou a expressão “ordem pública” foi num documento, emitido logo depois da Revolução Francesa, para significar a ordem sociopolítica e econômica revolucionária. Ordem pública assume, no direito, esse significado estrito: é ordem política, econômica e social.
Mas o uso desse conceito indeterminado esconde, não raro, o que se costuma denominar razão astuciosa, porque é usado como justificação formal para esconder sabor de vingança, às vezes até certa parcialidade ou juízo de justiça sumária: “Ah, pelo jeitão, esse réu é culpado”. Outras vezes, a tentação de ser porta-voz da opinião pública. Afinal, como seres humanos, estamos sujeitos a essas armadilhas. Ou, ainda, até obsessão ideológica, quando sucumbimos, sem juízo crítico, ao peso da nossa história pessoal e das nossas irracionalidades.
Essas hipóteses de justificação formal da prisão preventiva ofendem a Constituição, ofendem a regra da presunção de inocência. Por quê? Porque servem para, no fundo, satisfazer sentimento social de justiça, aplacar o clamor público, valendo-se do pretexto de periculosidade do agente, quando nem se sabe ainda se cometeu o crime, ou agindo em nome da credibilidade da justiça, da exemplaridade da condenação, ou da gravidade do delito.
Nenhum desses casos pode ser explicado, senão por uma razão astuciosa, porque em todos a causa verdadeira se radica num juízo antecipado de culpabilidade do réu que ainda não foi julgado, mas que já sofre uma pena — a pena da prisão preventiva —, sem que nada possa reparar-lhe a injustiça da subtração da liberdade, quando venha a ser declarado inocente. Exagero da Constituição, ou exigência do espírito civilizado? O meu ideal é que todos pudéssemos compreender a grandeza do princípio.
Segunda parte do texto publicado originalmente na Revista Brasileira da Advocacia, como transcrição de palestra proferida pelo ministro Cezar Peluso no VI Encontro da Associação dos Advogados de São Paulo. (Clique aqui para ler a primeira parte)
Autor: Cezar Peluso é ex-presidente do Supremo Tribunal Federal.