Recrudescimento das limitações ao poder de escolha do cidadão

Autor:  Rafael Nagime (*)

 

Acredito que de tempos em tempos o óbvio precisa ser repetido, sob pena de o esquecermos pelo caminho. No campo do direito eleitoral não é diferente, principalmente quando uma eleição desponta no horizonte.

Dentre as inúmeras obviedades a serem repetidas se encontra a de que em uma democracia o cidadão é o titular do poder de escolha.

Pois bem, apesar de elementar, esta assertiva é vez por outra abandonada ou enfraquecida, como ocorreu com a festejada edição da Lei Complementar 135/2010, apelidada de “Lei da Ficha Limpa”.

Partindo desta premissa, e ultrapassadas as efusivas comemorações e apostas de que a milagrosa lei salvaria nossa cambaleante democracia, acredito ser [ainda] necessária uma reflexão acerca do papel reservado à lei na consolidação do princípio democrático, mas com as luzes voltadas não para os candidatos ou para as [in]constitucionalidades da lei, mas sim para o ator principal da democracia: o cidadão. Explico.

A ideia fundante do conceito de democracia é com certeza a noção de governo do povo, exteriorizada pela própria etimologia do termo [i.e.demos=povo, kratos=poder].

Assim, a representação política do povo é pedra angular sobre a qual se funda a democracia representativa[1], não podendo o poder ser legitimamente exercido senão quando concedido por seu titular. Dito de outra maneira, nas palavras de Marcus Vinicius Furtado Coêlho, “[sendo o povo] o sujeito histórico da democracia. Sem a legítima participação popular não há regime que se diga democrático”[2].

Firmada a necessidade de que o poder seja legitimamente concedido, as democracias representativas têm na eleição o complexo processo mediante o qual se escolhem os representantes que irão exercer o poder em nome do povo, não se admitindo a atribuição do poder a quem não tenha sido submetido ao processo eletivo.

Após estas considerações, mostra-se tanto mais elementar a assertiva inicial de que a Democracia traz em seu bojo a característica de ser o povo o titular do poder, que, em uma democracia indireta, ou semidireta, o exerce por meio de seus representantes eleitos, sendo certo, ainda, que, apesar da existência de outras formas de participação do cidadão (e.g. plebiscito, referendo e iniciativa popular) o exercício da escolha dos representantes por meio do voto[3] é a participação popular por excelência em uma democracia.

Recrudescimento das limitações de escolha do cidadão como forma de consolidação democrática
Posta a questão atinente à definição do cidadão como o titular efetivo do poder, chega-se ao ponto no qual reside a pergunta para a qual se procura resposta; qual seja: a Lei Complementar 135/10, ao ampliar sobremaneira as limitações ao poder de escolha do cidadão na hora do exercício do voto mediante a inclusão de inúmeras hipóteses de inelegibilidade, atinge o objetivo de consolidação da democracia e, portanto, deve ser um modelo a ser seguido e ampliado?

Penso que mais uma obviedade se impõe.

É inquestionável o notório afastamento do cidadão da vida política do país, assim como ser este desinteresse um claro sinal de comprometimento da democracia.

Todavia, não parece lógico ser o afastando do cidadão do pleno exercício do seu poder a solução para o seu fortalecimento, quando, na verdade, a atual crise representativa reclama uma [re]ligação entre representados e representantes, passando a consolidação da democracia obrigatoriamente pela participação efetiva e interessada do eleitor.[4]

Desta maneira, sendo o voto a participação popular por excelência em uma democracia, somente o seu exercício pleno e com qualidade poderá garantir uma representação autêntica do cidadão, sendo qualquer outro atalho uma perigosa falácia.

Tal afirmação se justifica pelo fato de que em um quadro utópico [porém sempre perseguido] de pleno desenvolvimento da democracia, as limitações ao poder de escolha do cidadão tenderão a desaparecer e não a serem aumentadas, haja vista que a catarse será realizada nas urnas, não sendo preciso tutelar as escolhas na busca de salvaguardar o processo democrático.

Não desconheço o argumento de que em momentos de crise medidas extremas podem ser aceitas na contenção imediata da ruptura do equilíbrio, sendo certo, por este viés, que os ditos recrudescimentos das limitações ao poder de escolha do cidadão podem ser defendidos como um mal necessário na busca de se fortalecer o princípio democrático ante a crescente crise de representatividade democrática.

Entretanto, é justamente aí que reside o grande risco de se ter uma lei como aclamada forma de consolidação da democracia, o que abre o caminho para a adoção de novas leis com o mesmo intuito, adotando contínuas políticas paliativas que atacam o problema sem atacar sua causa, trilhando um perigoso atalho que fatalmente afastará cada vez mais o cidadão do exercício consciente do poder, tutelando mais e mais suas escolhas.

Uma democracia que ainda caminha na direção da desejada consolidação e que tem a marcha dificultada pelo afastamento do cidadão – causa e consequência da crise de representatividade – deve apostar todas as fichas em trazer os seus de volta a polis.

Consolidação da democracia
Somos uma democracia nova e, portanto, padecemos das mazelas desta juventude. Mas isso não nos autoriza a desvirtuar o caminho da consolidação democrática adotando a retirada de poder como forma de fortalecimento do poder, sendo incontestável que apostar em uma lei como salvadora da democracia mostra o quão claudicante está o processo democrático.

Em que pese ser a democracia plena uma quimera, a busca de sua consolidação deve ser uma preocupação constante, cujo acerto ou desacerto se mede não somente pelos resultados imediatos, mas, principalmente, pelos caminhos percorridos.

Perceba-se que este caminhar poderá ter como linha de chegada não a propalada consolidação da democracia, mas sim sua transmudação, provocada pela quantidade e pela qualidade das limitações ao poder do cidadão [por exemplo, aristocracia, plutocracia].

Deste modo, a única saída para se evitar desvios de percurso na busca da manutenção/consolidação de uma democracia se encontra na ampliação da efetiva e consciente participação do cidadão na vida política do país, notadamente mediante a escolha e acompanhamento dos seus representantes, não existindo outro caminho que garanta, de forma perene e legítima, a efetivação do princípio democrático.

Dito isto, peço licença para ser, uma vez mais, óbvio: Em uma democracia que se busca consolidar, as esperanças e atenções devem recair sobre o cidadão e não sobre a lei ou qualquer outro atalho.

 

 

 

 

Autor:  Rafael Nagime é advogado. Procurador de São João da Barra (RJ). Professor de Direito Eleitoral. Assessor-chefe de ministro do STF e do TSE (2014). Secretário-geral substituto da Presidência do TSE (2014). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral (IBRADE).


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