Autores: Claudia Aoun Tannuri e Daniel Jacomelli Hudler (*)
De modo geral, os alimentos consistem em prestações destinadas àqueles que não possuem condições próprias de subsistência, a fim de garantir o mínimo para uma vida digna. Esse direito, quando acionado em razão do parentesco, tem por fundamento o princípio da solidariedade familiar e sua regulamentação se estabelece na forma dos artigos 1.694, 1.696 e 1.697, do Código Civil de 2002, os quais enunciam como sujeitos os parentes, cônjuges e companheiros.
A celeuma surge quando nos indagamos a respeito da possibilidade de outros parentes colaterais, além dos irmãos (parentes colaterais de segundo grau), serem sujeitos da obrigação alimentar, tais como tios, sobrinhos e primos (parentes colaterais de terceiro e quarto grau), haja vista a ausência de expressa indicação pelo legislador infraconstitucional.
A dúvida se torna mais pertinente quando nos deparamos com o seguinte caso concreto: uma senhora humilde, empregada doméstica, com filha de cinco anos, enfrentava sérias dificuldades para lhe atender as necessidades mais básicas. Sem alternativa, buscou a Defensoria Pública para ingressar com execução de alimentos em face do pai da criança.
Após homérico esforço (e tempo), o genitor foi localizado, citado e lhe foi decretada a prisão civil, por duas vezes; o mandado foi cumprido, sem que, no entanto, houvesse qualquer pagamento em favor da criança. Alegou em sua justificativa, de forma crível, que não era proprietário de qualquer bem móvel ou imóvel e auferia rendimentos de valor muito baixo, insuficientes até mesmo para custeio das suas despesas pessoais básicas.
Os avós, tanto maternos como paternos, residiam em comarca distante, eram idosos, sofriam de problemas de saúde e sequer auferiam rendimentos fixos. Apenas um deles recebia aposentadoria, mas no ínfimo valor de um salário mínimo, que nem ao menos cobria o custeio de seus medicamentos.
O pai faltoso não cumpre seu encargo alimentar em relação à criança; os avós não possuem condições materiais para auxiliá-la e, por último, não tem irmãos mais velhos.
Por outro lado, existe uma tia, irmã de seu pai, que goza de bom padrão de vida: é mulher jovem, sadia, proprietária de dois imóveis e de uma tecelagem, com vários empregados, e que não tem filhos. Há, ainda, fortes indícios de que, em diversas oportunidades, tenha auxiliado o pai da criança a se ocultar e a se furtar do ato citatório.
Diante de tal quadro, surge o questionamento: é justo que essa tia seja chamada à obrigação de prestar alimentos à sobrinha? Moralmente, parece-nos acertada a obrigação. Mas, juridicamente, seria lídimo tal pleito? Mais do que isso: nosso ordenamento jurídico ampara uma interpretação favorável àquela criança?
De fato, vozes respeitáveis na doutrina[1] e jurisprudência[2] entendem que a obrigação alimentar limita-se aos colaterais de segundo grau (irmãos), não abrangendo os colaterais de terceiro grau (tios e sobrinhos), quarto grau ( primos, tios-avôs e sobrinhos-netos), tampouco os parentes por afinidade (sogro e genro). Argumenta-se que, diante da ausência de expressa menção, deve-se adotar – como determina a hermenêutica clássica – uma interpretação gramatical e restritiva, excluindo-se a obrigação alimentar para os colaterais não mencionados.
Em outras palavras, a ideia central é de que há um “silêncio eloquente’’ do legislador: se a lei não mencionou expressamente a obrigação para os demais colaterais, é porque, em tese, não quis permiti-la. Segundo esta ótica, que privilegia o princípio da estrita legalidade, uma obrigação nunca poderia ser imposta ao individuo senão pela estrita via legal e de forma expressa.
Entretanto, tal linha de raciocínio ignora por completo a realidade jurídica atual e a própria essência do tema debatido, em flagrante desprestígio ao arcabouço jurídico e teórico construído a partir da Constituição Federal. Afinal, em última análise, a discussão envolve uma forma de tutela da dignidade humana por meio das relações jurídicas entre particulares – como ocorre no presente caso. Assim, uma nova leitura se faz necessária, à luz dos princípios constitucionais e também da “nova hermenêutica constitucional”.[3]
Sem prejuízo ao exposto e ainda percorrendo a hermenêutica clássica, segundo o método lógico-sistemático, os dispositivos invocados não podem ser interpretados isoladamente, de forma genérica e restritiva, indistintamente, em dissonância com o ordenamento jurídico como um todo. Ou seja, devem ser considerados em cotejo com os mandamentos constitucionais (artigos 5º e 227[4]) e demais dispositivos legais (em especial o artigo 1.829[5] do Código Civil e artigo 4º[6] do Estatuto da Criança e do Adolescente), de modo a permitir uma correta interpretação do Direito e apta a produzir efeitos mais adequados ao caso concreto.
Neste passo, muito embora os artigos 1.696 e 1.697 do CC vigente não mencionem expressamente os demais colaterais, isto não significa a exclusão automática do encargo, uma vez que a obrigação alimentar se consubstancia com o vínculo de parentesco, conforme enunciado pelo próprio artigo 1.694[7], inaugural do subtítulo “Dos Alimentos”.
Nesta senda, entendemos correto o posicionamento de Maria Berenice Dias, em que a ausência de expressa previsão dos demais colaterais é mera omissão do legislador, uma vez que os encargos alimentares seguem os preceitos gerais: na falta dos parentes mais próximos serão chamados os mais remotos, até atingir os parentes colaterais de quarto grau[8].
Outra questão importante: sob o prisma do Direito Sucessório, o legislador optou por mencionar expressamente a vocação hereditária dos colaterais até quarto grau (art. 1829, inciso IV e 1.839, ambos do Código Civil). Tais dispositivos, quando confrontados com os artigos 1.696 e 1.697 do mesmo diploma, aparentemente destoam, visto que um tio ou sobrinho (colaterais de terceiro grau) não são mencionados para cumprir com obrigações alimentares – mas, por outro lado, além deles, até parentes legalmente “mais distantes’’, como tios-avôs, sobrinhos-netos e primos (colaterais de quarto grau) serão herdeiros legítimos do falecido, podendo, em determinadas circunstancias, herdar.
A despeito da advertência de alguns doutrinadores sobre a distinção entre Direito de Família e o Direito das Sucessões, Rolf Madaleno tece severa crítica àqueles que buscam, sob esse argumento, restringir os sujeitos da obrigação de alimentos. Segundo o autor, ambos os sistemas se interpenetram, de modo que, se houver direito de herança, ainda que de modo eventual, igualmente se deverá permitir que esse parente seja chamado à obrigação alimentar.[9]
Além disso, sob o aspecto do princípio da solidariedade familiar, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald pontuam que a obrigação alimentar entre parentes, inclusive entre colaterais do quarto grau, baseia-se nas relações de solidariedade familiar – o que impõe o auxilio em momento de necessidade, sob pena de frustrar a própria fundamentação do parentesco.[10]
Ademais, necessário considerar o caráter especial dos alimentos em relação às demais obrigações, visto que buscam garantir não apenas a sobrevivência da pessoa, mas uma vida minimamente digna. Essa especialidade torna-se ainda mais relevante quando o alimentando for criança ou adolescente em razão da prioridade absoluta conferida pelo ordenamento jurídico.
Vale destacar: a importância de tal direito é tamanha que se admite “uma flexibilidade e pluralidade dos meios executivos imaginados pelo legislador para o exato cumprimento da dívida alimentar” [11]. Admite-se, inclusive, a restrição da liberdade do devedor de alimentos – liberdade essa tão cara para um Estado Democrático de Direito e que não se permite ser tolhida em nenhum dos demais casos de dívida civil. Tudo isso para se viabilizar o atendimento das necessidades mais básicas de outro ser humano, em prol de sua dignidade.
Importante mencionar o alvitre de Ana Maria Gonçalves Louzada aos julgadores, ao asseverar que “a possibilidade de obrigação alimentar por parte dos tios, sobrinhos e primos, decanta apologia à própria vida, que por vezes, só se tornará viável ante a receptividade do julgador a trilhar novos caminhos”.[12]
Em que pese a posição majoritária ser contrária, entendemos que a responsabilidade alimentar subsidiária de todos os parentes colaterais é uma decorrência lógica do nosso ordenamento jurídico. Esse direito fundamental a alimentos deve ser, portanto, preservado com prioridade, ainda mais no caso de criança e adolescente, tendo em mira a necessidade de preservação do melhor interesse da criança e adolescente.
Referida interpretação também dirime de forma satisfatória a incoerência entre o Direito de Família e o Direito das Sucessões – ambos aspectos intrínsecos do mesmo Código –, pois , se os colaterais têm a expectativa de herdar por ocasião do falecimento, parece-nos lógico que também sejam compulsados a prestar alimentos, ainda que de forma subsidiaríssima.
Por derradeiro, afirma-se que o direito a alimentos por parte dos colaterais, ainda que excepcional, é forma apta a concretizar o direito fundamental à vida, exigindo-se a coragem e sensibilidade do julgador para, diante da dificuldade do caso, adotar posicionamento diferente e inovador.
Autores: Claudia Aoun Tannuri é defensora pública do Estado de São Paulo.
Daniel Jacomelli Hudler é advogado.