Precedentes à brasileira: uma autorização para “errar” por último?

Autor: Igor Raatz (*)

 

Com o advento do novo Código do Processo Civil, o entusiasmo da comunidade jurídica pela temática da “força vinculante dos precedentes” cresceu consideravelmente, formando-se um discurso que, com raras exceções, costuma ser uníssono no sentido da necessidade de conferir-se força vinculante obrigatória às decisões dos tribunais superiores, a fim de promover igualdade e segurança jurídica. Valendo-se de conceitos forjados no bojo do common law, essa “doutrina brasileira dos precedentes” passou a defender a incorporação do stare decisis no direito brasileiro e o fortalecimento do papel desempenhado pelos tribunais superiores, que, para muitos, deveriam assumir o papel de “cortes de precedentes”.

Recentemente, porém, iniciou-se uma espécie de movimento contrário à “teoria brasileira dos precedentes”, deflagrado, de forma pioneira, por Lenio Streck (ler aqui e aqui) e que teve imediata repercussão: enquanto os defensores da teoria dos precedentes bradavam, foram surgindo diversos adeptos à crítica. Esta batalha teórica está apenas no começo. Diante desse cenário, dentro do qual o debate a respeito da teoria brasileira dos precedentes tem muito a contribuir para o aprimoramento do nosso Direito, pretende-se, neste breve texto, levantar alguns argumentos no sentido de endossar o movimento crítico à “teoria brasileira dos precedentes”.

De início, deixe-se claro que a abordagem realizada neste texto será restrita a pontos específicos pertinentes ao tema e terá o objetivo de apontar que algumas das posturas “precedentalistas”, apesar de partirem de problemas pertinentes à Teoria do Direito e da interpretação, limitam-se a oferecer uma espécie de teoria política-institucional pautada por uma reestruturação das funções do Poder Judiciário (à margem do texto legal e constitucional) fundada na premissa de que é necessário que alguém dê a última palavra no sentido de resolver os problemas interpretativos inerentes ao Direito, ainda que possam errar (isso seria aceitável, desde que alguém erre por último). Com isso, tais teorias caem numa espécie de fatalismo e, embora não digam expressamente (e até neguem), aceitam que o Direito seja o que os tribunais superiores digam que ele é. Com isso, estaria assegurada a tão almejada segurança jurídica; a custo, porém, da própria autonomia do Direito.

Como (ainda) não existe uma classificação das diferentes posturas “precedentalistas”, é provável que nem todos os seus defensores comunguem do mesmo posicionamento acerca das questões aqui expostas. Há, no entanto, autores cuja expressão e prestígio que recebem no cenário processual civil faz com que a crítica ao seu pensamento também alcance boa parte das teses “precedentalistas”. Nesse sentido, pode-se mencionar o pensamento de Luiz Guilherme Marinoni (autor da obra Precedentes Obrigatórios, principal responsável por inaugurar o movimento a favor dos precedentes no Brasil), Daniel Mitidiero e Sérgio Arenhart.

A premissa da qual os referidos autores partem para defender a adoção de uma teoria dos precedentes no Brasil é a de que, com a superação das posturas “cognitivistas” da interpretação o Direito tornou-se altamente indeterminado, o que demandaria mecanismos capazes de reduzir esse grau de indeterminação e, com isso, conferir aos cidadãos previsibilidade e cognoscibilidade[1]. Partindo dessas bases teóricas, Marinoni-Arenhart-Mitidiero começam a desenvolver sua tese de que a indeterminação do direito seria uma decorrência do caráter indeterminado da linguagem. Para tanto, buscam amparo em autores como Giovanni Tarello[2], para quem não haveria uma relação “biunívoca” entre enunciado e proposição[3], de modo que a interpretação consistiria tanto no processo de individualização de uma proposição expressa num enunciado (interpretação atividade), quanto a própria proposição individualizada (interpretação produto)[4]. Nessa linha, a norma seria uma das possíveis proposições produto da interpretação, ou, dito de outro modo, o significado de um segmento de linguagem[5].

Embora tudo isso seja tratado com ares de novidade pelos “precedentalistas” — a expressão foi cunhada por Streck — é importante lembrar que, de forma muito mais sofisticada, Luis Alberto Warat já abordava essas questões no Brasil desde os anos 70, a partir dos problemas epistemológicos e pragmáticos da linguagem[6]. Não há nenhuma novidade, nessa quadra da história, em ressaltar uma superação do formalismo oitocentista, mormente quando isso já foi percebido há décadas pela doutrina brasileira (como é o caso do próprio Streck, Tércio Sampaio, Marcelo Cattoni, Dierle Nunes, João Mauricio Adeodato, Marcelo Neves, Paulo de Barros Carvalho, Leonel Rocha, Gizele Cittadino e de tantos outros). O problema reside justamente em saber como, do ponto de vista da Teoria do Direito, evitar que a superação do formalismo venha se transformar em arbítrio. É justamente aí que a “teoria precedentalista” começa a mostrar suas insuficiências teóricas.

Na vertente das lições de Guastini, para quem todos os textos normativos são equívocos (no sentido de que podem conduzir a diferentes significados), os referidos autores consideram que a interpretação judicial exigiria uma escolha entre significados conflitantes, tendo, portanto, caráter decisório (adscritivo), e não meramente cognitivo[7]. Nosso objetivo, aqui, não é dissecar o pensamento de Tarello e Guastini, os quais servem de base para a construção da teoria “precedentalista” brasileira. Porém, não podemos deixar de mencionar que ambos os autores entendem que a interpretação é ato de vontade e que os textos normativos são objeto de decisão discricionária dos intérpretes.

Diante desse quadro, teríamos, ainda para os autores mencionados, o seguinte problema: na medida em que os textos normativos não carregam consigo um significado unívoco, o ideal de segurança e previsibilidade resta prejudicado, pois diferentes juízes poderiam atribuir diferentes sentidos aos textos normativos. É nesse contexto, que a sanha “precedentalista” começa a tomar corpo: os juízes e tribunais podem interpretar para decidir casos, porém não é esta a sua função — “os juízes e tribunais interpretam para decidir, mas não existem para interpretar; a função de atribuição de sentido ao direto ou de interpretação é reservada às Cortes Supremas”[8]; desse modo, seria necessário incumbir a um órgão dotado de autoridade a tarefa de dar sentido aos textos normativos e, com isso, reduzir sua equivocidade. A função desses Tribunais (então nominados de “cortes de precedentes”) não seria, pois, genuinamente resolver casos. Estes constituem tão-somente um pretexto para que as cortes exerçam sua função genuína de interpretar e formar precedentes[9].

A engenhosa doutrina brasileira dos precedentes propõe uma divisão de tarefas, portanto, entre as chamadas “cortes de Justiça” (que eventualmente até poderiam interpretar) e as “cortes de precedentes”, as quais teriam a missão de outorgar sentido aos textos normativos, orientando a aplicação do direito mediante precedentes (que já conteriam uma espécie de pré-interpretação dos textos normativos), aplicáveis por subsunção e analogia aos casos futuros. Essa posição, obviamente, somente tem sustentação ser partirmos de uma “teoria da interpretação” com traços muito distintos daqueles que orientam a matriz hermenêutica, defendida por Lenio Streck com a sua Crítica Hermenêutica do Direito. Daí o apego dos “precedentalistas” ao pensamento de Guastini, para quem, por “teoria da interpretação”, deve-se entender “um discurso analítico e descritivo a respeito daquilo que a interpretação de fato é”[10]. Vale dizer, os “precedentalistas” trabalham a partir de uma teoria meramente descritiva do que fazem os juízes e tribunais no que diz respeito à interpretação, o que afasta discussões mais sofisticadas a respeito de como se deve decidir a partir, por exemplo, de uma teoria da decisão.

Com essa postura teórica, os “precedentalistas” objetivam institucionalizar órgãos dotados de autoridade com a função de criar normas e, com isso, senão acabar com caráter indeterminado do direito, reduzi-lo, a fim de que se obtenha segurança jurídica, cognoscibilidade e previsibilidade, mesmo que as Cortes de Precedente errem. Com isso, seria possível obter respostas antes das perguntas, voltando-se, após a criação da norma-precedente ao “cognitivismo interpretativo” inicialmente combatido: o precedente já contém uma pré-interpretação; a função dos juízes e tribunais que não criam precedentes é tão-somente aplicá-los. Mas a questão principal a ser tratada aqui é a seguinte: o precedente vincula e obriga não pela qualidade das suas razões, mas porque é necessário que alguém dê a última palavra, estancando os problemas interpretativos. Em outras palavras, a teoria dos precedentes legitimaria alguém (a corte de precedentes) a errar por último, na medida em que é dispensável o acerto da decisão para ganhar força vinculante. Entre decisões eventualmente erradas que conferem segurança jurídica e a necessidade de respostas corretas seria melhor, para a teoria brasileira dos precedentes, a primeira opção.

Trata-se de uma opção, no mínimo, autoritária e que parte de uma compreensão equivocada que a interpretação é ato de vontade (isso está em Kelsen, no oitavo capítulo da TPD e apenas confirma o caráter decisionista do ato de vontade) e que, portanto, não haveria nada a ser feito, do ponto de vista da Teoria do Direito, diante da discricionariedade judicial. Não se trata, pois, de uma teoria que busca estabelecer condições a respeito de como se interpreta, mas, sim, legitimar decisões tendentes a dar a última palavra a respeito da interpretação dos textos normativos, dotando-as de forças vinculante mesmo quando erradas.

Com efeito, mesmo defendendo um contraditório substancial e a necessidade de que a fundamentação seja uma justificação racional das escolhas do julgador, persistem os “precedentalistas” no equívoco de dizer que o juiz faz escolhas e que diferentes decisões, para um mesmo caso, poderão ser igualmente corretas. Mitidiero, por exemplo, chega a dizer “a interpretação é um processo que visa à redução da equivocidade do enunciado e definição da norma que se ultima mediante umaescolha — ainda que lógica e argumentativamente guiada — do intérprete, o seu resultado não pode ser qualificado como exato, correto ou único possível”[11]. Realmente, se as coisas são assim, poderíamos abandonar a Teoria do Direito (que em diferentes perspectivas vem buscando justamente oferecer caminhos para lidar com o problema da interpretação do direito) e partir para uma solução mais simples, prática e eficiente (para não dizer utilitarista) como querem: uma vez que são possíveis várias interpretações corretas, deve valer aquela dotada de autoridade, no caso, aquela posta pelas “cortes de precedentes”. Em síntese: isso é igual a afirmar que Direito é o que elas dizem que ele é! Com isso, atinge-se o objetivo central da teoria “precedentalista”, que é estabelecer condições para que os cidadãos possam saber o que é o Direito, e não o que ele deve ser a partir das leis e da Constituição. O direito é a lei interpretada (pelas cortes “supremas”) e vazada em “precedentes” como espécies de coagulações de sentido. Desse modo, já que o erro é tolerável, que alguém tenha legitimidade e autoridade para acertar e quiçá para errar, desde que dê a última palavra, vinculando, de modo obrigatório, juízes e tribunais que não exercem essa mesma função.

Embora estejamos de acordo que o Direito não pode ser algo despido de racionalidade, no sentido de que seja um exercício de adivinhação ou, como se tem dito, uma “jurisprudência lotérica”, não parece que a melhor solução seja identificá-lo naquilo que os tribunais dizem que ele é, mormente se a força vinculante das suas decisões (ainda que sejam “justificadas”), não depende da sua qualidade, mas, sim, da autoridade e da busca por segurança jurídica (repita-se, a qualquer custo), como se os fins justificassem os meios. Esse não parece ser o melhor caminho a ser trilhado num Estado Democrático de Direito em que a luta constante reside justamente em evitar que o Direito e a própria lei sejam constantemente fragilizados.

Numa última palavra, embora não digam e muitos talvez não percebam, os defensores de uma teoria política-institucional dos precedentes — nos moldes aqui expostos — nada mais fazem do que pregar uma espécie de (neo) realismo jurídico ou, como bem advertiram Bruno Torrano e Lenio Streck, um positivismo jurisprudencialista (ver aqui). Caso os “precedentalistas” venham a assumir expressamente essa postura, talvez as discussões a respeito do papel e da força vinculante de “precedentes” no Direito brasileiro possa ser ainda mais proveitosa, uma vez que cada polo da discussão terá estabelecido o seu lugar de fala.

 

 

 

 

 

Autor: Igor Raatz é pós-doutorando em Direito. Professor de Direito Processual Civil. Sócio do escritório Raatz & Anchieta Advocacia.


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