Autor: Marcelo Kokke (*)
A tragédia ambiental de Mariana está por completar um ano. Mas o rompimento da barragem de rejeitos que veio a provocar um dos maiores desastres ambientais ocasionados pelo ser humano não é questão superada em face do risco ambiental. Isto porque medidas ambientais devem e estão sendo tomadas em face de riscos inerentes ao carregamento de rejeitos sedimentados que pode ocorrer a partir do período de chuvas. A questão proposta no presente artigo é tematizar o suporte normativo legal para que órgãos ambientais possam determinar medidas de urgência em situações de risco ambiental. Dentre essas, incluem-se a construção de obras emergenciais, a serem efetivadas pela empreendedora responsável, assim como a autonomia da Administração Pública para, a partir de critérios técnicos, fixar a melhor medida a ser adotada.
Dois pontos são de destaque. O primeiro é a baixa densidade e estreito repertório de normas legais que amparem medidas administrativas ambientais de urgência. O segundo ponto consiste em questionar indevida interferência por parte de órgãos de controle, como o Ministério Público, na decisão técnica dos órgãos ambientais. Aqui, os órgãos de controle passam a se apresentar não em sua típica função de controle da gestão, mas sim tendem a se arvorar em órgãos de execução da própria deliberação técnica do órgão ambiental. O tema ganha ainda maior relevância quando se passa a discutir o recentemente editado Decreto n. 500 do Estado de Minas Gerais, publicado em 21 de setembro de 2016, dispondo quanto à requisição administrativa de áreas para construção de obra voltada para reduzir ou impedir riscos de nova lesão ambiental.
Imagine-se que determinada casa esteja em risco, uma árvore da propriedade do vizinho ameaça tombar. Em termos de Direito Civil, a situação não espelha grandes questionamentos. O Código Civil dispõe em seu artigo 1.113 que o proprietário deve tolerar que o vizinho, mediante prévio aviso, adentre em seu imóvel, temporariamente, para a indispensável obra para sanar a ameaça. Embora no direito privado a questão seja até intuitiva, no Direito Ambiental por vezes gera uma surpreendente polêmica. Pode a Administração Pública, por si ou terceiro sob sua anuência de conduta, adentrar em propriedade para obra ou atividade voltada para prevenir situação de risco de desastre ambiental?
Não há texto expresso. Embora seja presente interesse público e razão para adentrar no terreno alheio para obra de prevenção de risco ambiental, a marca do literalismo e asfixia da hermenêutica ambiental é presente em vozes dissonantes que ainda negam ao Poder Público a possibilidade de autorizar a entrada no imóvel privado para prevenção de dano ecológico. A solução seria levar ao Judiciário uma questão que é inerente da Administração Pública que, por meio de seus órgãos ambientais, pode e deve identificar e determinar medidas que visem impedir a ocorrência ou reduzir o risco de dano ambiental. Trata-se de concretização da previsão contida na Lei n. 12.608/12. Embora esse diploma legal seja comumente lido como norma que disciplina as atividades de Defesa Civil, a ausência de uma norma legal especializada em política de combate a desastres ambientais torna necessário compreendê-la como norma de prevenção de danos e riscos naturais também para efeitos de gestão ambiental estratégica. A ausência de densidade normativa não pode ser pretexto para afastar a legitimidade de ações emergenciais.
O artigo 2º da Lei n. 12.608[1] determina ser dever dos entes federativos adotar as medidas necessárias para a redução de riscos de desastres, para tanto podendo contar com a colaboração de entidades privadas e da sociedade em geral. Em conformidade com as competências ambientais federativas, o Decreto n. 500 do Estado de Minas Gerais, ao utilizar o instituto da requisição para permitir a realização de obras e entrada em propriedade particular, nada mais é do que a aplicação concatenada de um instituto administrativo sob carga hermenêutica do Direito Ambiental. O Decreto determina a tolerância de particulares e o dever de atuação dos empreendedores na construção de dique voltado para conter o risco de carregamento de rejeitos no período de chuvas. A Administração efetiva seu dever de gestão em face do risco ambiental previsível.[2]
A atribuição de definir a forma de evitar o risco ambiental é interna às funções da Administração Pública, é atribuição do órgão ambiental. Entretanto, ainda há ações visando transferir ao Poder Judiciário a aferição da decisão técnica ambiental na adoção da medica de prevenção. O que se verifica é algo de teor generalizador a ocorrer no cenário jurídico-ambiental: a constante busca de transferir da instância técnico-administrativa para o processo judicial a decisão da gestão ambiental de risco. Inegável toda a relevância que possuem os órgãos de controle, em especial a atividade do Ministério Público. Não obstante, atividade de controle não pode se transformar em atividade de gestão de risco ambiental, não pode converter-se em atividade de execução ambiental. A Lei n. 6.938/81 dispõe de forma expressa a competência exclusiva dos órgãos ambientais para atuarem na gestão dos estudos e definição das atividades próprias dos órgãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA.[3] O que se verifica por vezes é negativa de vigência do dispositivo legal com o pretexto de efetivação do controle pela via jurisdicional, que em verdade se transforma na esfera administrativa de licenciamento. Quando os órgãos de controle atuam, devem demonstrar que sua supervisão de controle é necessária, sendo inviável partir do pressuposto que devem os órgãos ambientais demonstrar a legitimidade de sua própria atuação e opção técnica. O raciocínio é justamente o oposto.
A questão crítica abre espaço a uma pretenciosa infalibilidade do órgão jurisdicional, lançada em face de uma pretensa presunção de falibilidade do órgão ambiental. Um primeiro e descritivo ponto é relacionado a própria substituição técnica que por vezes é pretendida, com retirada do servidor público do órgão ambiental para estabelecer prioridade de manifestação de um perito, nomeado entre agentes privados e externo à própria dinâmica de isonomia de tratamento administrativo que os órgãos públicos devem conferir a todos os administrados. A substituição da atuação de gestão ambiental provoca desnivelamento do tratamento administrativo ambiental, com aplicações normativas diversas a pessoas que se encontram em uma mesma situação jurídica, com clara ameaça à isonomia que deve imperar na atuação do Estado, abrindo mesmo espaço ao que Tushnet reclama como argumentos contrários ao controle judicial.[4]
Questionar decisões administrativas é inerente ao controle jurisdicional e democrático, mas transferir da Administração Pública para o Judiciário o espaço regular de decisão da gestão ambiental de risco[5] é contrariar pontos basilares do constitucionalismo, em especial, da separação de poderes ou funções. A tutela ecológica está ligada ao que se denomina garantia de organização, um dos primados para que sejam efetivos o exercício e a proteção dos direitos fundamentais, dentre os quais se encontra o meio ambiente. Pela garantia de organização, é reconhecida a necessidade e atribuição especializada de órgãos estatais considerando o teor técnico ligado à proteção ecológica. Não se faz legítimo a outros órgãos ou entes adentrarem em campos próprios do órgão especializado, a Constituição lhes garante autonomia de organização. A definição da gestão ambiental em face do risco é atribuição especializada dos órgãos ambientais, é consectário do que a doutrina denomina princípio da conformidade funcional. Segundo esse princípio, deve ser respeitada a estrutura de organização funcional e técnica disposta constitucionalmente. Controlar não é substituir.
Autor: Marcelo Kokke é procurador federal da Advocacia-Geral da União, mestre e doutor em Direito pela PUC-Rio, especialista em processo constitucional, professor de Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara, de Pós-graduação da PUC-MG, do IDDE (MG) e professor colaborador da Escola da Advocacia-Geral da União.