Autor: Ricardo Rocha Leite (*)
O enunciado assim dispõe: “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”. A orientação da jurisprudência decorreu do julgamento do incidente de recurso repetitivo no ano de 2008, que reconheceu, dentre outras coisas, a vedação aos juízes de primeiro e segundo graus julgarem, sem pedido expresso, a abusividade de cláusulas contratuais nos contratos bancários. Essa discussão foi reavivada após o julgamento do Recurso Especial 541.153/RS e dos Embargos em Recurso Especial 702.524/RS, que atrelavam a impossibilidade de análise da abusividade das cláusulas contatuais em segundo grau de jurisdição diante da extensão do efeito devolutivo da apelação que abrange somente a matéria impugnada, segundo o princípio recursal do tantum devolutum quantum apellatum. Portanto, houve uma maior abrangência no enunciado da súmula.
Posteriormente, no julgamento do REsp 1.465.832/RS, o relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino submeteu a matéria à apreciação pelo regime dos recursos repetitivos e propôs nova redação: “Na declaração de nulidade de cláusula abusiva, prevista no art. 51 do CDC, deverão ser respeitados o contraditório e a ampla defesa, não podendo ser reconhecida de ofício em segundo grau de jurisdição”. O recurso, cuja decisão retrocitada foi proferida em setembro de 2015, até o momento não foi julgado pela 2ª Seção do STJ.
A maioria da doutrina especializada critica o enunciado em vigor, sob o argumento de que a proteção do consumidor é um direito fundamental e se sobrepõe às normas de caráter processual. O Estado-juiz deve intervir no negócio jurídico diante de cláusulas contratuais abusivas em desfavor do consumidor. Além do mais, o CDC, por se tratar de uma norma de ordem pública, impõe ao julgador o dever de apreciar de ofício qualquer cláusula contratual que vá de encontro a essa proteção constitucional. Ainda, esse microssistema, ao estipular os direitos básicos do consumidor, o resguarda das cláusulas abusivas (artigo 6º, inciso IV) e prevê sua nulidade de pleno direito (artigo 51).
Sem adentrar na discussão processual acerca da impossibilidade de análise da abusividade das cláusulas contatuais em segundo grau de jurisdição, importa para esse trabalho é a crítica à possibilidade do julgador reconhecer de ofício a abusividade de cláusulas contratuais no processo civil que envolva uma relação de consumo.
A parte autora, ao formular sua petição inicial, deve apresentar, dentre outros requisitos, os fatos e fundamentos jurídicos de sua pretensão, além do pedido, que deve ser certo e determinado. Inclusive, o artigo 330, parágrafo 2º, prevê a necessidade, sob pena de inépcia, de o autor discriminar na petição inicial as obrigações contratuais que pretende controverter. A finalidade do pedido no processo é fixar o objeto litigioso na etapa postulatória, instaurar uma relação processual e invocar um provimento judicial. Em regra, o julgador fica vinculado aos limites do pedido, ou seja, a sentença deve ser congruente com o que foi postulado pela parte. A ressalva a essa correlação entre o pedido e sentença pode ser observada, por exemplo, nos pedidos implícitos, tais como os juros e as prestações periódicas vencidas após a propositura da ação.
O pedido pode ser visto como um desdobramento das garantias constitucionais do devido do processo legal, do contraditório e da ampla defesa no plano infraconstitucional. O devido processo legal é a base das demais garantias processuais e subdivide-se em formal e material ou substancial. Com relação ao primeiro, sua ideia está direcionada à regularidade procedimental. O segundo visa assegurar um processo justo e adequado às partes com a observância dos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade.
A norma fundamental processual do contraditório e da ampla defesa é compreendida, em suma, como a ciência dos atos processuais e a audiência bilateral, com vistas à possibilidade de as partes influenciarem na formação do convencimento do julgador. Ao tempo em que é concedida a informação à parte adversa da prática de determinado ato processual, confere-lhe a possibilidade de reagir e evita-lhe a surpresa. O CPC idealiza a previsibilidade dos atos processuais com o escopo de preservar a segurança jurídica que envolve as relações endoprocessuais.
O reconhecimento de ofício pelo juiz, sem pedido expresso, da abusividade das cláusulas existentes em contratos bancários ou de qualquer outra cláusula abusiva prevista em um contrato que envolva relação de consumo, implica violação a essas garantias constitucionais processuais. No aparente conflito entre a proteção do consumidor e as garantias fundamentais processuais, não se vislumbra violação àquela quando não há sequer pedido do consumidor para que determinada cláusula contratual seja analisada pela autoridade judicial. Não é razoável no processo civil moderno que o juiz atue como revisor geral de um negócio jurídico.
Os modelos tradicionais de processo dispositivo e inquisitivo não são incompatíveis e devem ser aplicados simultaneamente na atual conjuntura. A cooperação como modelo processual é uma visão mais coerente com a diretriz da boa-fé que deve imperar nas relações negociais. Há a necessidade do compartilhamento do trabalho entre o juiz e as partes, ou seja, cada ator assume uma responsabilidade pela atividade processual. Em um sistema jurídico que prima pela razoável duração do processo, o magistrado deve observar uma simetria na sua condução, pois avulta como mecanismo eficiente para o aperfeiçoamento e adequação à realidade. Esse ideal de auxílio tem por finalidade evitar a surpresa e preservar o contraditório. A boa-fé subjetiva cede espaço para a boa-fé objetiva, que traça um padrão de comportamento para os integrantes da relação processual.
Deve ser respeitada a igualdade e a paridade de armas entre as partes no curso do processo, o que não prejudica a desigualdade existente na relação jurídica material entre consumidor e fornecedor, pois o que se almeja é a igualdade de oportunidades processuais de participação. O juiz, caso venha a reconhecer de ofício, sem pedido expresso, a abusividade de cláusulas contratuais em uma relação processual entre consumidor e fornecedor, violará a igualdade processual e, por conseguinte, o contraditório pleno ou substancial. A violação à cooperação e à igualdade implica na violação do contraditório.
A moderna visão do processo não está em consonância com o entendimento que o juiz venha a reconhecer de ofício cláusula contratual abusiva em um contrato de consumo, sem pedido expresso. É inegável que a proteção constitucional do consumidor e a interpretação do CDC como norma de ordem pública revelam que se está diante de uma relação jurídica diferenciada. Nesse ponto, vale destacar que o reconhecimento de ofício de determinada matéria pelo juiz não prescinde da oitiva da outra parte. O juiz, ao agir de ofício, suscita ponto não arguido pelas partes, mas que não dispensa o contraditório.
A visão protetiva do consumidor não pode ser aplicada desmedidamente, sob pena de violação a direitos fundamentais também expressamente previstos na CF. O CDC, no âmbito processual, prevê mecanismos processuais específicos com a finalidade de igualar essa relação jurídica e a inversão do ônus da prova é um deles, razão pela qual não é possível dispensar o pedido da parte autora para a revisão ou nulidade de cláusulas contratuais que considere abusivas com a justificativa de uma prévia hipossuficiência.
Autor: Ricardo Rocha Leite é mestre em Direito e juiz no Distrito Federal.