Autores: Júlio Edstron Secundino Santos e Jonas Sales Fernandes da Silva (*)
Uma velha e permanente estatística, citada até pelos clássicos filmes do Super-Homem, aponta que viajar de avião é a maneira mais segura de se deslocar no espaço. Nesse sentido, é possível notar que o transporte aéreo se tornou uma forma econômica e rápida de viajar, gerando um segmento de mercado que cresce economicamente ao desenvolver ampla base de consumidores de seus serviços.
Hodiernamente, o acesso à aviação civil é uma realidade tanto para viagens internas quanto internacionais, o que só foi possível devido às constantes melhorias na qualidade e quantidade de empresas de transporte aéreo que aproximaram destinos no mundo todo.
Desse modo, não podemos perder de vista que no início do século XX, no qual se iniciaram, de forma aventureira, as atividades da aviação civil, havia um ambiente tecnológico totalmente diferente do atual. Existia uma latente desconfiança internacional que dificultava a operação de voos entre países ideologicamente diferentes e, principalmente, ocorria a necessidade de incentivo estatal às novas iniciativas empresariais, que levaram a promulgação de normas internas e internacionais que proporcionaram condições para o desenvolvimento desse seguimento de transportes[1].
Hoje, a toda evidência, pode-se afirmar que o transporte aéreo se tornou um dos negócios mais lucrativos[2] e seguros — felizmente — do setor[3], se expandindo entre os países, inclusive, de forma acentuada, no Brasil.
Pela exposição acima cremos restar claro que o transporte aéreo civil possui notável segurança, grande lucratividade e, ademais, presta serviços de — geralmente — reconhecida qualidade. Assim, há uma relação jurídica de consumo que se consolida na prestação de serviços da empresa para o passageiro, tal como positivado no artigo 2° da Lei 8.078/1990 — Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Contudo, apesar da clareza solar dos argumentos lançados ainda existe uma reflexo cavernoso na aplicação do CDC nas relações de consumo no Brasil, já que nosso país é signatário da Convenção de Varsóvia sobre transporte aéreo internacional, datada de 1929, atualizada posteriormente pelos Protocolos de Haia (1955), Guatemala (1971) e Montreal (1975), sendo esta concluída em setembro de 1999 e ratificada no Brasil pelo Decreto 5.910, de 5 de setembro de 2006.
Um ponto fulcral e que interessa a esta reflexão acerca da recepção daqueles instrumentos internacionais pelo Brasil é que: caso um passageiro tenha sua bagagem extraviada por uma companhia aérea, ele tem um teto máximo de indenização previsto previamente pela legislação, que no ordenamento jurídico brasileiro é denominada de indenização tarifada.
Ou seja, não importa qual foi o seu destino, quem é a pessoa, a bagagem em si ou se a empresa comete o mesmo erro reiteradamente, há um limite legal para indenização pela perda dos bens entregues para o transporte aéreo segundo a legislação internacional, frise-se, recepcionada pelo Brasil.
Assim, como um dos reflexos da massificação dos transportes aéreos, os problemas também são expostos, entre eles o extravio de bagagens. Sendo que em vários casos levados ao conhecimento do Poder Judiciário, a legislação internacional foi privilegiada sobre o CDC, que, como se demonstrou, tem o escopo de efetivamente proteger os consumidores, de maneira integral (artigo 6.º, VI, CDC).
Apesar da gama de julgados num e noutro sentido de diversos tribunais do país, em especial do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, luzes lúcidas do Poder Judiciário vêm acertadamente reafirmando a aplicação do CDC sobre a Convenção de Varsóvia, como demonstra, por exemplo, o recente julgado da lavra do desembargador Héctor Valverde, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que assim se posicionou:
A jurisprudência desta Corte firmou o entendimento de que a responsabilidade civil das companhias aéreas em decorrência da má prestação de serviços após a entrada em vigor da Lei nº 8.078/90 não é mais regulada pela Convenção de Varsóvia e suas posteriores modificações (Convenção de Haia e Convenção de Montreal) ou pelo Código Brasileiro de Aeronáutica, subordinando-se ao Código de Defesa do Consumidor[4].
Devido a essa celeuma, onde ora se aplicam os tratados ratificados pelo Brasil sobre transporte aéreo internacional, e em outras vezes — de forma acertada! — o CDC, pendente está no STF o julgamento conjunto do RE 636.331 e do ARE 766.618.
Temos que estas ações são, na verdade, mais um duelo de Davi contra Golias: de um lado estão as companhias aéreas que pleiteiam, sobretudo por conta do lucro, uma indenização tarifada, e de outro os vulneráveis consumidores brasileiros, que carecem de efetiva proteção.
Porém, para além de toda dogmática jurídica expressa na ratificação e positivação de tratados e leis, não se pode perder de vista que a Constituição brasileira de 1988 estabeleceu como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, logo a proteção jurídica em caso de dúvidas recai sobre o ser humano, e não a pessoa jurídica, de modo que rogamos que o STF mantenha a tradição humanista brasileira e privilegie a interpretação constitucional da máxima eficiência e do pro homine que exigem a dignidade das pessoas.
Autores: Júlio Edstron Secundino Santos é professor de Direito e Relações Internacionais da UCB/DF, doutorando em Direito pelo UniCEUB e mestre em Direito Internacional Econômico pela UCB/DF. É associado do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).
Jonas Sales Fernandes da Silva é graduando em Direito pela UCB/DF, associado do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e membro do escritório Roque Khouri & Advogados Associados.