Autores: Sérgio Guerra e Thamires Guerra (*)
A França sempre foi reconhecida por ter um Poder Executivo forte e independente. Os revolucionários do século XVIII seguiram uma interpretação dissidente da ortodoxia doutrinal de Montesquieu, o que determinou o fortalecimento dessas características naquela máquina administrativa que tanto influenciou o Brasil.
Uma razão circunstancial determinou, na França, que a interpretação do princípio da “divisão” — e não separação — de poderes não se adequava desde as origens do constitucionalismo a critérios ortodoxos. Afirmava-se a ideia de uma liberdade do Poder Executivo diante dos demais poderes — notadamente, do Poder Judiciário — permitindo a emergência de um poder administrativo poderoso, autônomo, centralizador e altamente hierarquizado.
Com toda essa tradição “piramidal”, em que o poder se concentra nas mãos do chefe do Poder Executivo (Executivo Unitário), parece ser de difícil compreensão o fato de os franceses admitirem as agências reguladoras.
As agências reguladoras francesas (Autorités Administratives Indépendantes – AAI) surgiram em 1978 com a criação da Comissão Nacional da Informática e das Liberdades (Comission nationale de l’informatique et dês libertes – CNIL).
Durante mais de três décadas, o número dessas entidades chegou a 42, sem, contudo, seguir um modelo, um padrão; isto é, as AAIs francesas possuem características diversas. A qualificação de algumas entidades como AAIs vieram por força de lei, mediante decisões judiciais ou por simples menção no relatório do Conselho de Estado (Conseil d’État) de 2001, consagrado pela lista que consta no site Legifrance.
Em 2015, foi criada uma comissão de inquérito no Senado para fazer um balanço patrimonial e controle sobre a criação, a organização, a atividade e a gestão das AAIs. Para a elaboração de seu relatório, a comissão preparou um estudo comparativo da legislação em três países europeus (Alemanha, Itália e Reino Unido). Esse relatório informa que algumas AAIs encontram fundamento em obrigações internacionais ou europeias, impostas à França; outras, na vontade dos poderes públicos de responder às questões que geram impacto na mídia (questions à l’impact médiatique).
Com efeito, cogita-se que algumas AAIs surgiram na sequência de escândalos políticos, em que o governo precisava dar uma resposta legislativa a determinado fato, ou diante de uma situação e/ou problema julgado sensível sob a ótica política, para que a AAI assumisse a impopularidade das decisões difíceis.
Motivo de desconfiança da opinião pública em relação aos órgãos políticos, a criação de AAIs sugere, para alguns, o fracasso das estruturas clássicas do Estado. O professor Patrice Gélard as qualifica de “OJNI – objeto jurídico não identificado”. Os poderes não seriam mais capazes de assumir as tarefas que lhes cabiam na tradicional teoria da separação de poderes. Diante de seus amplos poderes, algumas autoridades estariam por criar “État dans l’État” (“Estado dentro do Estado”), impondo ao poder político uma convivência sem a contrapartida do controle democrático.
Outro aspecto relevante na criação das AAIs está no fato de que, na França, há um sistema que beneficia determinados grupos. Essa situação não resulta unicamente das regras previstas na lei, mas, especialmente, pela prática resultante do modelo administrativo francês que valoriza os “grandes corpos do estado” (grands corps de l’État). Os membros do Conselho de Estado, da Corte de Cassação e do Tribunal de Contas (Conseil d’État, Cour de Cassation e Cour des comptes), ocupam mais do que 30% dos assentos e 60% das presidências das AAIs.
Vinte e dois desses membros cumulam várias funções em dois, três ou até mesmo quatro das AAIs. Alguns membros se tornam verdadeiros profissionais de AAIs, assumindo vários cargos (diretor-geral, membro e depois presidente). Segundo o mencionado relatório, a ocupação desses cargos denota um “tropismo parisiense” por identificar pessoas de apenas uma região de Paris ocupando 40 dos 42 cargos nas AAIs.
Diante desse quadro, a comissão apresentou algumas propostas para a reestruturação das agências reguladoras francesas, das quais destacam-se: a) reservar à lei a qualificação de um organismo como autoridade administrativa independente; b) manter apenas 20 autoridades administrativas independentes, que efetivamente justificam essa qualificação em razão de seu objeto e suas competências; c) rever e diversificar a composição dos membros, limitando a nomeação de membros do Conselho do Estado, da Corte de Cassação e da Corte de Contas; d) consolidar regras comuns de deontologia para os membros das AAIs, notadamente a interdição de detenção de interesses junto ao setor regulado, quarentena etc.; e) impedir a recondução do mandato dos dirigentes e participação em mais de uma AAIs; e f) sistematizar a forma de apresentação de relatórios para controle das atividades pelas comissões permanentes do parlamento.
Aqui, no Brasil, o Senado está para apreciar o Projeto de Lei 52/2013, de autoria do senador Eunício Oliveira, que dispõe sobre a gestão, a organização e o controle social das agências reguladoras. O modelo local é recente e não é genuíno. É uma reprodução (parcial) do padrão existente nos Estados Unidos. Surgiu na década de 1990, sendo implantado em um momento de reestruturação do papel do Estado em relação à sua atuação na economia.
Naquela fase, a segregação de competências entre a administração pública direta e a indireta para a regulação autônoma de serviços e utilidades públicas estratégicas (telefonia, energia elétrica etc.), apresentou-se como sendo fundamental para: a) criar um ambiente propício à segurança jurídica dos contratos com o Estado e atração de capital privado (notadamente estrangeiro); e b) descentralizar a governança estatal em temas complexos e preponderantemente técnicos, emprestando-lhes certa previsibilidade e tornando-as menos suscetíveis aos embates e interesses políticos/partidários típicos das rotinas do Congresso Nacional.
Vivenciamos problemas próximos aos que ocorrem na França. Indicações para as diretorias das agências sem qualificações técnicas adequadas; vacância nos cargos, impedindo a deliberação pelo colegiado; excessivo contingenciamento de recursos; controle pouco transparente e eficaz das metas regulatórias e dos impactos provenientes da regulação.
Em vista do influxo estadunidense, quase sempre as análises sobre as agências reguladoras locais acompanham o debate norte-americano. Considerando que o Direito Administrativo brasileiro inspirou-se no francês, é recomendável um acompanhamento de perto dos debates que estão sendo travados na revisão do sistema gaulês de regulação descentralizada. Tudo isso para a construção de um modelo regulatório específico, com padrões adequados ao contexto jurídico-constitucional brasileiro.
Autores: Sérgio Guerra é pós-doutor em Administração Pública, professor titular de Direito Administrativo da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas e visiting researcher na Yale Law School.
Thamires Guerra é acadêmica do Escritório BMA – Barbosa Müssnich & Aragão Advogados. Estudou na Université Toulouse 1 Capitole em convênio com a FGV Direito Rio.