Autor: Luís Carlos Martins Alves Jr. (*)
Principio[1] com a ferina advertência de Alexandre José de Mello Moraes, que estava contida em seu livro Chronica Geral e Minuciosa do Império do Brasil, desde a descoberta do Novo Mundo ou América até o ano de 1879, publicado no longínquo ano de 1879, e de uma atualidade assustadora. Conquanto longa, a passagem merece ser integralmente transcrita:
“Quando a posteridade ambiciosa de notícias do passado histórico do Brasil, perlustrar os meus escritos, e ler os queixumes, pelos desfavores que experimentei da parte do governo brasileiro dirá, como disse o grande padre Vieira, que o Brasil no seu tempo vivia enfermo, porque os que o governavam viviam da mentira, porque mentem às línguas, à imaginação, aos ouvidos, aos olhos, porque tudo mentem, e todos mentem. Um País fundado na mentira e na falsa política, filhas das duas Escolas de direito, que desgraçadamente se estabeleceram em Olinda e São Paulo, o estado a que o tem reduzido é o da chicana judiciária; e por isso, quem quiser furtar autorizado no Brasil, não necessita pegar no revólver, porque correrá risco de vida, entre na Justiça, que ficará com o alheio sem dificuldade. Disse o padre Vieira, falando das injustiças do seu tempo no Brasil, que sem justiça não há reino, nem província, nem cidade, nem ainda companhia de ladrões, que possa conservar-se.
Os que tem governado o Brasil, cuidam da política, e esta é tão tacanha e miserável que só se empenham por eleições, enquanto que deixam o País sem indústria, sem agricultura, sem comércio, sem navegação nacional e sem nada, e apenas com um pessoal enorme de juízes e empregados públicos, que absorvendo toda a seiva do Estado, nada possuímos que preste, porque tudo nos vem do estrangeiro.
Não temos tido um homem de Estado, um financeiro, e nem político; o que temos tidos são palradores inexperientes, ignorantes perfeitos do País e da sua história, e por isso que matam os tempos legislativos com “o dize tu e direi eu”, sem nada fazer-se que utilize ao Brasil”.
Com efeito, o nosso passado não parece estar muito distante. Se olharmos a presente realidade da imensa maioria das pessoas que vive em nosso país, se observarmos os nossos indicadores econômicos e sociais, se analisarmos o quanto do PIB brasileiro é canalizado para sustentar uma administração pública que não tem dado o retorno que os contribuintes e cidadãos merecem, veremos que estamos muito distantes de sermos uma sociedade plenamente civilizada, e que o nosso Estado ainda não se consolidou como uma democracia republicana, uma coletividade que respeita às leis e às instituições, apesar de alguns avanços civilizatórios que desfrutamos.
Dentre os avanços civilizatórios, há o sentimento de que se faz necessário criarmos uma cultura de respeito aos precedentes judiciais. E o que os precedentes e o direito tributário têm em comum? Qual o papel do regime judicial-processual e a influência dele sobre o nosso modelo tributário brasileiro?
É lugar comum a atávica frase de que “imposto bom é imposto velho”. Qual a razão dessa máxima? Com essa afirmação pretende-se aceitar a hipótese de que tanto os contribuintes quanto o Fisco sabem como se comportar diante dos “velhos” tributos, ainda que esses “velhos” tributos sejam injustos ou inconvenientes. Ou seja, é possível estabelecer uma pauta de condutas e comportamentos a partir do que já esteja longamente estabelecido. Há poucas surpresas. E os precedentes judiciais? Quais são os bons: os velhos ou os novos? Em linha de princípio, os “velhos” precedentes judiciais, assim como os “velhos” tributos, servem de guias sobre como se comportam os tribunais e quais expectativas podem ter os jurisdicionados.
Pede-se licença para uma breve análise da “jurisprudência pendular”, a partir do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal em relação à possibilidade de o condenado, antes do trânsito em julgado, ser recolhido à prisão. Em 5/10/2016, o STF, no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade ns. 43 e 44, confirmou a validade do recolhimento à prisão de condenado judicial, mesmo que ainda não tenha havido o trânsito em julgado. Esse recente julgamento placitou o quanto decidido em 17/2/2016, nos autos do Habeas Corpus 126.292, que alterou entendimento do próprio STF firmado em 5/2/2009, nos autos do HC 84.078, que, por sinal, modificou a tradicional jurisprudência da Corte, estampada nos HCs 68.037 (10/5/1990) e 69.964 (18/12/1992), no sentido de que seria possível o recolhimento à prisão de condenado judicial, ainda que não tivesse ocorrido o trânsito em julgado.
É possível dividir essa questão em 3 marcos temporais, tomando a promulgação da vigente Constituição como parâmetro. Entre 5/10/1988 até 5/2/2009 (por 21 anos), o tribunal entendeu possível o recolhimento à prisão de condenado, ainda que não tivesse havido o trânsito em jugado. Entre 5/2/2009 até 17/2/2016, o entendimento consistiu que somente com o trânsito em julgado deveria o condenado ser recolhido à prisão. E, confirmando o quanto decidido no dia 17/2/2016, a partir de 5/10/2016 não há mais a necessidade de esperar o trânsito em julgado para que o condenado judicial seja “definitivamente” recolhido à prisão. É um verdadeiro “pêndulo”, ainda mais porque a recente decisão foi tomada por 6 votos a 5.
Em nossa tradição jurisprudencial não há entendimento da corte ou do tribunal. Há o entendimento prevalecente da composição majoritária da corte. Nessa perspectiva, se houver a mudança de um membro do colegiado, há grandes chances de haver mudança da jurisprudência. Consequência prática dessa possibilidade: as instâncias inferiores não se sentirão encorajadas a seguir a orientação vencedora do tribunal ou desestimuladas a não seguir a orientação da corte. Ou seja, vale a pena apostar na “loteria” ou no “pêndulo” da jurisprudência brasileira. Os tribunais pátrios são os principais causadores da insegurança jurídica no Brasil.
No caso da “execução provisória da pena”, com a vênia das respeitáveis visões dissidentes, não vejo no texto constitucional brasileiro óbice para o recolhimento à prisão antes do trânsito em julgado. Sem embargo do disposto no inciso LVII, artigo 5º, da Constituição Federal, que prescreve que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, acompanho o entendimento que, do ponto de vista constitucional, é possível analisar essa questão com lastro em outros preceitos, mormente os incisos LIII, LIV, LXI e LXVI, todos do artigo 5º.
Nessa perspectiva, não está na Constituição a solução para essa questão jurídica, mas na Lei ou na legislação processual penal: o quanto escrito e prescrito no artigo 283 do Código de Processo Penal. Eis o enunciado normativo do artigo 283 do CPP:
“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
Nessa visão, que não é solitária nem isolada, somente haverá prisão em 4 hipóteses, segundo o artigo 283 do CPP: em flagrante delito, com o trânsito em julgado, preventiva ou temporária (ambas cautelares). Aonde se pode chegar? Que não está na Constituição o obstáculo impeditivo, mas na Lei, ou seja, no devido processo legal. O obstáculo para o recolhimento do preso antes do trânsito em julgado não está no princípio constitucional da presunção de inocência, mas no artigo 283 do CPP. Isso significa que se houver a mudança na lei, no artigo 283 do CPP, estaria legalmente autorizado o recolhimento à prisão de condenado judicial, ainda que sem o trânsito judicial, mas para isso se faz necessário modificar a lei; mudar o devido processo legal.
O que o STF fez foi corrigir as inconveniências normativas da Lei ou do Direito. Mas, com o devido respeito, não cabe aos magistrados e tribunais corrigir o Direito. Cabe ao Poder Judiciário julgar em conformidade com o Direito. A correção do Direito é tarefa do legislador (legal ou constitucional), jamais do julgador, ainda que esse julgador seja dotado de notável saber jurídico e de reputação ilibada. Aplicar o Direito, ainda que inconveniente, é tarefa do julgador; corrigi-lo é tarefa do legislador.
E o que o direito tributário tem a ver com esse citado julgamento ocorrido no plano processual penal? Responde-se: tudo a ver. É ocioso dizer, mas as raízes da modernidade constitucional estão fincadas no direito processual, no direito penal e no direito tributário. Se se voltar à Magna Carta inglesa, no longínquo 15/6/1215, se verá que lá estavam protegidos, contra o arbítrio do poder governamental, os direitos de propriedade dos súditos contra a tributação arbitrária e ilegal; os direitos de liberdade dos súditos contra as prisões ilegais e arbitrárias; e os direitos processuais dos súditos contra os processos e julgamentos ilegais e arbitrários.
Direito constitucional é, antes de tudo e de qualquer coisa, o devido e aceitável direito e processo penal e tributário. Direito constitucional nasceu para proteger normativamente a vida, a liberdade e a propriedade. E, segundo a tradição jurídica ocidental, tanto o direito tributário, quanto o direito penal, estão alcançados pelo princípio constitucional da estrita legalidade: não há crime nem pena sem prévia cominação legal; assim como não há tributo sem prévia tipificação legal. O Estado Democrático de Direito é o estado da estrita legalidade nos campos penais e tributários: é o Estado da Vida, da Liberdade e da Propriedade. E, à luz do que estava prescrito lá na Magna Carta, também não há civilização ocidental sem o respeito ao devido processo legal e sem julgamentos justos, porque em harmonia com as leis, e iguais, porque solucionam casos semelhantes com decisões semelhantes. Esse é o fio condutor dos precedentes judiciais: a igualdade de todos perante as leis e perante os tribunais.
Com efeito, em homenagem ao princípio da igual proteção as leis, devem os tribunais, para os casos similares, decidir as causas de modo similar. A justiça processual está em entregar aos jurisdicionados uma prestação que seja igual, se estiverem os jurisdicionados em iguais situações. E, muito provavelmente, nas questões tributárias a igual proteção das leis e a igual prestação jurisdicional é pressuposto indispensável e fundamental para que haja uma justiça tributária possível e adequada para uma sociedade que necessita de produzir riquezas, de criar empregos e de viabilizar políticas públicas para os mais vulneráveis. E quem são os mais vulneráveis em qualquer sociedade? Os fetos que inocentemente vicejam nos sagrados úteros de suas mães; as mulheres abençoadas com a gravidez e a gestação de uma vida humana; as crianças, os adolescentes, as pessoas idosas e as pessoas portadoras de deficiências, porque todos estes são seres humanos física e emocionalmente indefesos. Uma sociedade civilizada e decente protege os mencionados vulneráveis. E somente essas pessoas vulneráveis e indefesas merecem especial e diferenciada proteção das Leis e das Instituições. E o “Estado civilizado” necessita de recursos.
Com efeito, e sem justiça tributária, tanto a processual, quanto a material, não há dinheiro arrecadado suficientemente para fazer face às gigantescas responsabilidades assumidas pelo Estado brasileiro, a partir do quanto disposto no artigo 3º, da Constituição Federal. Com efeito, segundo os preceitos desse aludido artigo 3º, “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Como o legislador constituinte originário resolveu transformar o Brasil em um “Paraíso”, em um verdadeiro “Jardim do Éden”, ou numa “Canaã” tropical, onde jorra “leite e mel”, se faz necessário fortalecer a musculatura desse “Leviatã” providencial, que se arvorou no dever de viabilizar a felicidade humana no orbe terrestre ou pelo menos aqui em “Pindorama”. Considerando que a Constituição autorizou o sistema econômico capitalista, o principal veículo de apropriação de riquezas por meio do Estado se dá através da instituição e cobrança de tributos.
Não cabe ao Estado a produção de riquezas ou de rendas. Quem produz riquezas e rendas são os indivíduos e as empresas. Quase nenhum Estado é capaz de criar riquezas, mas todos podem destruir as riquezas produzidas ou desestimular a sua produção. O papel do Estado é criar condições para que os indivíduos e as empresas, mediante o trabalho e a livre iniciativa, saiam da condição natural de pobreza e miséria, e entrem no estado cultural da riqueza e da bonança.
Tenha-se, no entanto, que o tributo é o “dízimo” que o cidadão (ou o crente) entrega para o seu “Deus terreno e artificial” em troca da concretização dos direitos e dos sonhos que estão plasmados no texto constitucional e nas leis brasileiras. Sem tributos não há direitos, nem sonhos concretizados. Há quem diga que o tributo e a morte são inevitáveis. Cuide-se que para o crente, a morte é o “passaporte” para o “Paraíso” celeste. Para o cidadão, o tributo é o pressuposto para o “Paraíso” terrestre. O problema dramático consiste em “morrer de pagar tributos e viver ou ir para o Inferno”. Nessa perspectiva, considerando que sem tributos não há direitos, especialmente dos de caráter prestacional do Estado, como sucede com os direitos sociais e com as promessas normativas da Ordem Social, é necessário instituir uma cultura de produção de riquezas e de apropriação de parcela dessa riqueza pelo Fisco. E nesse particular, a atuação do Poder Judiciário se torna um aliado relevante para esses “standards” comportamentais.
O Poder Judiciário deve ser a garantia de que os eventuais e excepcionais desrespeitos às leis serão punidos, de modo que todos, incluídas as autoridades governamentais, os gestores empresariais e os cidadãos comuns, se sintam estimulados à obediência ao Direito ou desestimulados à desobediência legal, por medo das sanções judiciais. Mas a regra há de ser o respeito às leis. Excepcionalmente as leis devem ser desobedecidas. Nenhuma sociedade suporta um Sistema Jurídico e Judiciário gigantesco, com milhares de juízes, promotores, defensores, procuradores, policiais e auditores. Além de quase um milhão de advogados. Haja tributos e haja riquezas para tanto “Direito”. Quanto maior o sistema judicial de uma Nação, menor o grau de livre adesão e cumprimento das leis, o que revela alto o grau de patologia ética dessa sociedade. A rigor, o livre respeito ao Direito representa o estágio civilizatório de qualquer sociedade. E a obediência às decisões judiciais é um sinal de reverência às Instituições. E a principal força normativa de uma decisão judicial está em sua conformidade com o ordenamento jurídico e com os seus precedentes.
E como se constrói um precedente judicial? Como o novo Código de Processo Civil regula esse indispensável instituto normativo e civilizatório? No novo CPC, que entrou em vigor no ano de 2016, os elementos da sentença judicial estão elencados no artigo 489. A sentença judicial deve apreciar com seriedade as alegações e as provas das partes e considerar os textos normativos e a tradição do próprio Poder Judiciário, daí a vedação no sentido de que não deve a decisão judicial “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”, e a decisão judicial não deve “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. O magistrado, de qualquer instância ou tribunal, deve decidir tendo em perspectiva esses aludidos preceitos normativos, sob pena de nulidade jurídico-normativa e de carência de respeitabilidade social de sua decisão.
Na topografia do novo CPC, os artigos 926 e 927 prescrevem normativamente o dever de respeitar os julgados e precedentes das instâncias superiores. Essas prescrições normativas visam criar um novo padrão comportamental dos magistrados brasileiros, que se efetivado se revelará um avanço civilizatório e institucional de nosso País. Infelizmente, a tradição jurisprudencial brasileira não favorece a uma cultura de produção de riquezas, de estabilidade judicial e de segurança jurídica para um sadio ambiente econômico e social. O preço pago pela sociedade brasileira é altíssimo, especialmente pelos mais vulneráveis. Ostentamos índices sociais e econômicos ultrajantes. O nosso IDH não corresponde ao nosso PIB.
Está na hora de mudar essa triste realidade. Está na hora de nos orgulharmos de sermos uma sociedade plenamente civilizada e decente. Que a cultura dos precedentes judiciais tributários se concretize nesse desejável avanço civilizatório e institucional. Assim, as admoestações do grande Padre Vieira ficaram no passado como um capítulo inesquecível de nossa história. Mas não podemos perder a oportunidade de escrever uma nova história para o nosso futuro. As presentes e futuras gerações penhoradamente agradecem.
Autor: Luís Carlos Martins Alves Jr. é doutor em Direito Constitucional (UFMG). Professor de Direito Constitucional no UniCeub. Procurador da Fazenda Nacional.