Autores: Daniel Allan Burg e Frederico Manso Brusamolin (*)
O modelo capitalista globalizado e a alteração do paradigma ultraliberal (americano) que, com a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, e, principalmente, após a deflagração de grandes escândalos financeiros baseados em fraudes contábeis, no início dos anos 2000, remodelou o entendimento mundial sobre as práticas de mercado e iniciou um intenso movimento de combate à fraude e à corrupção, apresentou ao mundo a ideia de compliance.
Decorrente do verbo inglês to comply (que significa, cumprir), o compliance, para Silva Sánchez, pode significar “autovigilância”, a partir de “medidas positivas de formação, que podem não apenas neutralizar fatores culturais ou dinâmicas de grupo favorecedoras de fatos ilícitos, mas também incentivar culturas de grupo de fidelidade ao Direito.”[1]
A ideia de autorregulação e, portanto, até a transferência ao particular do poder-dever estatal de investigação, pode ser percebida a partir da promulgação de importantes leis, bem como da assinatura de diversos tratados internacionais[2], que buscaram, a partir de deveres da adoção de políticas, procedimentos e controles internos, além de dar uma maior efetividade penal aos crimes perpetrados no seio empresarial, conferir uma maior transparência e credibilidade aos mercados.
Com o foco voltado à prevenção, detecção e mitigação dos mais diversos riscos, não é difícil perceber o abrupto crescimento na procura por escritórios especializados nesses programas, que podem alcançar desde os “códigos de prevenção em matéria ambiental ou em defesa do consumidor a um arsenal de medidas preventivas de comportamentos delitivos referentes ao branqueamento de capitais, lavagem de dinheiro, atos de corrupção, marcos regulatórios do exercício de atividades laborais etc.”[3]
Mais especificamente quanto ao instrumento utilizado para se evitar riscos de responsabilidade penal, o chamado criminal compliance — tema que se dá maior enfoque — cumpre ressaltar que sua construção só pode ser compreendida diante da atual expansão dos crimes omissivos, em especial, aqueles que conferem o dever de agir (responsabilidade penal) aos dirigentes empresariais em virtude do seu poder de garantia.
Philip Wellner, ao tratar sobre o assunto, conceituou esses programas como “um conjunto de mecanismos internos de gestão, implementados pelas empresas para detectar e prevenir condutas criminosas que venham a ocorrer dentro da corporação. Tal espécie de programa desempenha um importante papel no que diz respeito à lei criminal, sobretudo em âmbito federal.”[4]
É certo que o criminal compliance está, de alguma forma, consideravelmente inserido no Direito Penal Econômico, levando de tal forma Giovani Saavedra atestar que, se em seu contexto apenas fossem subsumidos os seus elementos já em debate nacional e internacionalmente, de fato, não haveria nada de novo. Ocorre que, “o surgimento desse novo fenômeno parece diretamente vinculado com o surgimento de crimes econômicos e da persecução penal de empresários e instituições financeiras, pois, apenas quando os gerentes de empresas e de instituições financeiras passaram a ser investigados e processados criminalmente, surgiu também a necessidade de prevenção criminal no âmbito de suas atividades.”[5]
Nesse ponto, parece inquestionável que a criminalidade de hoje já não é só aquela em que o autor é facilmente identificado e a sua conduta se insere integralmente no tipo penal sem maiores dúvidas, observa-se tanto nos noticiários quanto no cotidiano forense uma larga expansão de delitos praticados no seio de grandes empresas, o que, por si só, já demandam muito mais conhecimento técnico de outras áreas (gestão de negócios, administração de empresas, etc.) para serem desvendadas.
Ao se levar em conta que a principal característica do criminal compliance é a prevenção e, por assim ser, está numa perspectiva bem diferente do Direito Penal tradicional, habituado a atuar em momento posterior à conduta delituosa, indaga-se: Qual o motivo para as empresas investirem nesses programas?
Conforme afirma Ana Luíza de Sá, “o compliance é encarado como um conjunto de medidas, deveres e comportamentos voltados a assegurar que todos e cada um dos membros de uma empresa, desde o presidente até o último empregado, adquiram a cultura de bem e fielmente cumprir com os regramentos normativos, evitando, assim, incorrerem em proibições jurídico penais.”[6]
Assim sendo, “a simples falta de organização da empresa nos moldes de um programa de integridade já acarretaria a exposição constante de diretores e trabalhadores a possíveis responsabilidades cíveis, trabalhistas, administrativas e penais, decorrendo daí uma natural elevação dos custos da atividade desenvolvida.”[7]
Ora, sabe-se que a expedição de mandados de prisão e de busca e apreensão, bem como o envolvimento com um processo penal podem representar à corporação um grande risco para suas operações e um significativo abalo de sua reputação frente ao mercado o que, inegavelmente, acabaria por implicar em prejuízos financeiros. Nesse sentido, a adoção, ou não, de um programa adequado pode significar tanto uma diminuição nos custos associados ao descumprimento de normas jurídicas quanto equivaler à infração de um dever de garantidor (que pode ou não equivaler a um crime) que se atribui ao empresário/garantidor [8].
Essa alteração na postura do direito penal no combate à criminalidade organizada é facilmente observada pela produção legislativa processual penal nessas últimas décadas, a qual buscou criar novas metodologias de investigação e ainda ampliar os meios de obtenção de provas. Sintomas dessa nova postura foram sentidos, preliminarmente, na lei de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98) que, além de prever a criação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), elencou um rol de pessoas obrigadas a manter os cadastros atualizados e comunicar operações financeiras suspeitas às autoridades.
Tais obrigações se tornaram aplicáveis a um maior número de pessoas (físicas ou jurídicas) após o advento da Lei 12.863/2012, por meio da qual foi expressamente determinada a adoção dos chamados programas de compliance, como forma de se evitar sanções pela prática de condutas relacionadas ao direito penal.[9]
Diante do incremento dos deveres de comunicação estabelecidos através da implementação da política de prevenção e repressão à lavagem de dinheiro no Brasil, bem como a adoção de estratégias nacional e internacional de combate a esse tipo de criminalidade desenvolvida com base na utilização de estratégia colaborativa, tornaram as empresas também responsáveis pela investigação de eventuais crimes cometidos em seu seio, sendo levadas em consideração, na aplicação das sanções administrativas e cíveis, a sua cooperação para a apuração das infrações e a existência e aplicação de mecanismos e programas de compliance sérios (artigo 7º, incisos VII e VIII, da Lei nº 12.846/2013).
Mas como esses programas poderão auxiliar uma empresa vítima de um crime financeiro?
Com o dever de implementar e verificar se todos os destinatários estão, de fato, cumprindo o conjunto de regras e procedimentos, cita-se, entre os elementos das Boas Práticas da OCDE, “que a empresa deve possuir procedimentos disciplinares apropriados para, entre outras coisas, tratar de violações, em todos os níveis da empresa, à legislação de anticorrupção e ao seu programa de Compliance”[10], além de contar com uma auditoria para revisar de maneira mais específica sobre determinadas matérias do programa.
Ante o objetivo de detectação de risco de corrupção, critérios de materialidade e valor de pagamentos indevidos, Bruno Maeda assevera que os trabalhos de auditoria interna “envolverão a realização de entrevistas e testes de transações, sendo importantes que sejam realizados por profissionais com experiência na investigação e detecção de violações, bem como por profissionais de auditoria, e que sejam adequadamente documentados.”[11]
Nesse ponto, faz-se importantíssimo ressaltar que, além da implementação de políticas e procedimentos de compliance, o ente jurídico deverá desenvolver uma estratégia de treinamento para apoiar a ideia e verificar, regularmente, se todos os destinatários estão correspondeendo e cumprindo as instruções, sob pena de não se reconhecer legalmente tal programa.
As provas obtidas por essas auditorias deverão ser documentadas e colhidas respeitando-se as garantias fundamentais, haja vista que, apesar de se tratar de uma investigação particular, deve-se buscar seguir todo o regramento legal.
Portanto, colhidas provas suficientes a se demonstrar evidências de que a corporação foi vítima de um delito financeiro, pode o juiz servir tão somente delas para decretar uma medida assecuratória?
Antes do mais, ressalta-se que as medidas cautelares reais, conforme Aury Lopes Jr., são aquelas que “buscam a tutela do processo (assegurando a prova) e, ainda, desempenham uma importante função de tutela do interesse econômico da vítima, resguardando bens para uma futura ação civil ex delicti e também do Estado, no que se refere à garantia do pagamento da pena pecuniária e custas processuais.”[12] Podem elas serem pessoais, como as prisões cautelares (prisões temporárias e preventivas), bem como patrimoniais (sequestro de bens, hipoteca legal e arresto de móveis e imóveis) – foco que se pretende dar nesse artigo.
Sabendo-se que “as medidas assecuratórias fazem parte dos procedimentos incidentes, merecedores de decisão em separado, na pendência do processo principal, onde se apura a responsabilidade do réu pela infração penal”[13], cumpre-se questionar: as medidas cautelares reais deverão respeitar quais requisitos para serem decretadas? Eventuais provas obtidas em auditorias internas empresariais, podem servir de fundamento para sua decretação?
Pois bem. De fato, a melhor doutrina brasileira, além de ressaltar a necessidade de preenchimento dos princípios da jurisdicionalidade, provisionalidade, provisoriedade, excepcionalidade e proporcionalidade, requisitos esses intrínsecos a qualquer decretação cautelar, diferencia as medidas reais das pessoais, pelo seu caráter eminentemente civilista.
Critica, por exemplo Aury Lopes Jr., a transmissão de características do processo civil (fumus boni iuris e periculum in mora) para a decretação de medidas cautelares pessoais, afirmando, contudo, que “nas medidas cautelares reais, por sua estreita vinculação com o interesse patrimonial a ser satisfeito na esfera cível, em sede de ação de indenização, por exemplo, a adoção dos conceitos fumus boni iuris e periculum in mora não constitui a mesma inadequação.”[14]
Ao se levar em conta a necessidade de uma medida judicial célere e adequada para guardar a efetividade que se espera do direito, as cautelares reais mostram-se ainda mais necessárias ao se ter em conta a possibilidade de deterioração, fraudulenta ou não, dos bens móveis e imóvei, sendo indiscutível em alguns casos, a ncessidade de restrição patrimonial.
Nesse diapasão, a medida cautelar real representa a efetividade do direito e sua decretação baseada única e exclusivamente em provas colhidas em auditoria internas, como se explanou anteriormente, parece ser perfeitamente possível, tanto pelo seu caráter provisório quanto pela sua eficácia limitada por uma futura sentença definitiva.
As provas legalmente obtidas pelo particular são, portanto, válidas para a demonstração prévia do direito e, sem dúvida, suficientes para a decretação das medidas assecuratórias elencadas no Código de Processo Penal brasileiro, podendo servir, inclusive, de base para uma investigação policial mais pormenorizada sobre o crime praticado e a consequente responsabilização penal do infrator.
Autores: Daniel Allan Burg é sócio do Burg Advogados Associados, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal Econômico pela Escola de Direito do Brasil.
Frederico Manso Brusamolin Advogado do escritório Burg Advogados Associados, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra.