Homologação de acordo delação e a justa prestação jurisdicional

Autor: Daniel Del Cid (*)

 

Instituto de controvertida aplicação a estampar duvidosa verdade real quanto à autoria [1] e fatos traz uma tormentosa abordagem acerca das decisões de homologação desses acordos pelo magistrado e a sua posterior utilização na sentença sem que haja comprometimento da cláusula de promessa constitucional (due process of law) por ruptura da imparcialidade do julgador.

A Lei 12.850/2013 trouxe diversos benefícios, dentre os quais autoriza o juiz a concessão do perdão judicial, a redução em até 2/3 da pena privativa de liberdade ou substituição por restritiva de direitos, desde que esteja condicionado, obrigatoriamente, a um ou mais resultados. Esses resultados estão elencados em um rol taxativo que se resume à identificação de coautores e partícipes; descrição da estrutura hierárquica e divisão de tarefas; prevenção; recuperação do proveito do crime e localização de eventuais vítimas.

Ocorre que, para que a homologação seja válida, o juiz estará vinculado aos pressupostos da regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo recusar a homologação do acordo na ausência destes pressupostos. Daí que surge o primeiro problema, pois para o juiz aferir a regularidade do acordo estará estritamente vinculado aos incisos do artigo 4º da lei que por igual estão vinculados à exigência legal de descrição da denúncia como proposta de modelo de sentença.

Assim, se a lei obriga ao magistrado verificar a existência eficaz da identificação dos coautores e partícipes (quem?), a revelação da estrutura (como?), a prevenção das infrações penais decorrentes e a localização de eventual vítima (onde?) e a recuperação total ou parcial do produto ou proveito (por quê?), não há dúvidas de que estará fazendo, primeiramente, um juízo prévio de recebimento da denúncia imposto pela própria lei. E a lei esclarece, ainda, que o juiz poderá recusar a homologação da proposta que não atender aos requisitos legais, impondo, mais uma vez, que os termos do acordo contenham a descrição de todos os fatos e circunstâncias, nos mesmos moldes da inicial acusatória. É uma imposição legal!

Então, significa dizer que, ao receber e homologar o acordo de colaboração premiada, o juiz estará, logicamente, se comprometendo, num primeiro momento, ao recebimento da denúncia de delator e delatados, e, em outro momento, a uma sentença condenatória, pois possui natureza de direito material, sendo condicionada sua aplicação lógica e cronologicamente a um prévio juízo condenatório. [2]

Problema este identificado e analisado pela professora Heloisa Estelitta, que foi mais adiante, advertindo que “tal proceder implica duplo julgamento antecipado do mérito da ação penal: a) o juízo de condenação; b) o juízo acerca da presença dos requisitos legais para a aplicação da causa de diminuição da pena.” E continua a autora apontando o ponto nevrálgico do problema: “A homologação de acordo pelo magistrado implica em dupla violação aos cânones mais básicos do due process of law: de um lado retira-lhe a imparcialidade objetiva e, de outro, impede o desenvolvimento contraditório do processo.

Fica completamente alijada a defesa de apresentar qualquer estratégia defensiva, sendo que o julgador já se comprometeu a aceitar a denúncia, pois completamente vinculado ao acordo homologado, não podendo ser descartada a hipótese de o juiz entender não preenchidos os requisitos legais, podendo “adequá-la ao caso concreto”, devolvendo às partes para emendar o acordo, num verdadeiro juízo de paranoia, violando o sistema acusatório, permitindo a participação ativa do juiz na formulação da acusação.

A lei, num primeiro momento, retira do magistrado a possibilidade de rejeição da denúncia e aplicação da absolvição sumária (artigos 395, I a III, e 397, I a III), e, em outro momento, retira também a possibilidade de absolvição do(s) réu(s), nos termos do artigo 386, I a VII. E isso ocorre porque, ao homologar o acordo, o magistrado já faz um juízo preliminar da acusação que antecede a denúncia, exercendo um juízo de controle da acusação. Se os requisitos legais do acordo são os mesmos requisitos obrigatórios da denúncia e o próprio magistrado exerce um poder de controle na homologação desse acordo, a lei obriga o magistrado a receber a denúncia ou, sob outro ponto de vista, ao menos, impede que o magistrado rejeite a denúncia pela ausência de algum dos requisitos que ele mesmo já homologou como satisfeitos. Como o juiz irá rejeitar a denúncia, por exemplo, por inépcia se a descrição dos fatos e circunstâncias são pressupostos obrigatórios para a homologação do acordo? Isso acontece também na análise da justa causa ou, ainda pior, em caso de absolvição sumária. Como o juiz irá rejeitar a denúncia e absolver sumariamente o(s) réu(s) dizendo que “o fato narrado não constitui crime”, sendo que na homologação do acordo ele próprio já aceitou os fatos narrados como descrição típica do ilícito?

A atuação do julgador está completamente vinculada ao acordo, não podendo rejeitar a denúncia, receber parcialmente ou absolver sumariamente em relação aos delatores e delatados! Atuação esta que desafia qualquer posizione di assoluta neutralità psichica, [3] em que a própria lei coloca o julgador em um quadro mental paranoico, [4] denominando Cordero tal síndrome como a primazia da hipótese sobre os fatos, em que se abre ao juiz a “possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a ‘sua’ versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro”.[5] A lei cria um verdadeiro quadro de esquizofrenia probatória judicial, pois o juiz está psicologicamente condicionado a não apreciar bem as teses opostas e ratificar o conteúdo da homologação, mesmo porque a própria lei estabelece que a sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia, privando delator e delatados de garantias básicas do devido processo legal, retirando de uma só vez a imparcialidade objetiva do julgador e o contraditório entre as partes.

A imparcialidade – analisada como o princípio supremo do processo [6] garantida implicitamente pela cláusula do devido processo legal e não, tão somente, pela garantia do juiz natural –, a rigor, difere de “ser parte”. Nesse sentido, Goldschmidt distingue partialidad de parcialidad: “Partial significa ser parte; parcial da a entender que se juzga con prejuicios (…) La imparcialidad consiste en poner entre paréntesis todas las consideraciones subjetivas del juzgador. Éste debe sumergirse en el objeto, ser objetivo, olvidarse de su propia personalidade”[7] A parcialidade significa um estado subjetivo, emocional, um estado anímico do julgador. A imparcialidade corresponde exatamente a essa posição de terceiro que o Estado ocupa no processo, por meio do juiz, atuando como órgão supraordenado às partes ativa e passiva. Mais do que isso, exige uma posição de terzietà, um estar alheio aos interesses das partes na causa. Paolo Tonini discorre que “L’imparzialità del giudice non è uma qualità innata o carismática della quale egli è dotado in virtù del fatto che ha vinto um concorso pubblico e svolge um determinato ufficio. La storia ci insegna che l’imparzialitá, perchè sai ‘effetiva’, deve esssere fondata sui seguenti principi: 1) La soggezione del giudice alla legge; 2) La separazione delle funzioni processuali; 3) La presenza di garanzie procedimentali che permettano di estromettere Il giudice che sai (o appaia) parziele”. [8] Continua o mestre italiano, “a garantia de imparcialidade somente pode ser definida negativamente (como não parcialidade) sobre a base de dois critérios: a ‘terzietà’ (‘terceiro qualificado’) e a ‘impregiudicatezza’, assim expressos: a) há ‘terceiro qualificado’ quando ausente qualquer ligação com uma das partes ou com o objeto de decidir; b) a situação psíquica de ‘não prejulgamento’ há quando uma pessoa já não expressou precedentemente um juízo sobre a responsabilidade do imputado”.

Dessa forma, o juiz não deve ser confundido com as partes, pois assume uma posição de terceiro, contraditor, responsável, todavia, pela sua regularidade na produção probatória processual (procedimento em contraditório). Aliada à ideia de que a essência do contraditório exige um “interessado” e um “contrainteressado” que exerçam seu direito a informazione e reazione [9] em situação de simétrica paridade [10] de participação, buscando influenciar o destinatário final de sua pretensão, vê-se que a defesa sempre restará frustrada, isso porque as partes não estarão em absoluta igualdade de oportunidades na captura psíquica [11] do juiz. Assim como o pesquisador científico, o juiz deve estar mentalmente disposto a receber e conhecer todas as teses existentes para, ao final, analisar e concluir sua decisão em provimento jurisdicional.

Esse desequilíbrio se dará não apenas na decisão final, mas em todo o procedimento, violando a paridade em contraditório colocando a defesa em desvantagem por não conseguir oferecer (ao juiz) o pensamento ao repensamento da pretensão deduzida (convicium). Visivelmente percebido pelo seu olhar, pelos seus gestos, pelo teor das perguntas certas às testemunhas, o juiz repetidamente prova sua apatia para com esta ou qualquer outra posição, comprometendo, assim, sua imparcialidade (objetiva). O contraditório será exercido apenas pelo direito às informazione, sendo comprometido seu direito ao convicium pelas vias próprias das reazione.

A atuação do juiz deve estar alinhada a um desinteresse subjetivo[12] decidindo com certa apatia que lhe permita encontrar o ponto de equilíbrio justo para decidir, levando em consideração todas as provas e argumentações que as partes oferecem, sem que essa atuação seja praticada com indiferença, pois as partes devem ter a certeza de que seus argumentos foram analisados.

A imparcialidade não é uma qualidade marcante, inata ao magistrado medida por seu prestígio intelectual, moral e religioso. A boa-fé e a lealdade de atuação são insuficientes como presunções e não salvaguardam a garantia de imparcialidade do juiz. Essas atitudes se traduzem mais em um romantismo utópico, que, na prática, muito pouco tem limitado a mania recorrente do juiz de assumir funções inquisitoriais e impróprias dentro de um sistema acusatório.

Homologado o acordo, o magistrado estará comprometido com os termos do acordo e com a tese acusatória, ficando absolutamente contaminado com seu teor, prejudicando o desenvolvimento do processo, impedindo que se entregue uma sentença comprometida com a promessa constitucional de seu justo e devido processo legal.

Em outras palavras, a homologação do acordo de delação premiada estimula e obriga o juiz a já intervir, em fase preliminar, valorando todos os elementos de prova, exibindo sinais fortes, objetivos e contundentes de sua parcialidade, forçando um nítido interesse subjetivo na condução do processo, impedindo a apreciação do contraditório pela defesa em que o juiz ficará refém de seu subconsciente.

O Estado deve assegurar uma neutralidade processual na entrega da prestação jurisdicional sem comprometer a imparcialidade do juiz.

Assim, a nosso ver, o juiz que homologou o acordo deve ser impedido de prosseguir na condução do processo pela falta de um dos elementos básicos do due process of law[13] A imparcialidade como princípio supremo do processo e garantia fundamental implícita no devido processo legal deve ser preservada a todo custo. Para que haja uma prestação jurisdicional, esta deve ser, acima de tudo, justa [14] e devida, caso contrário haverá um comprometimento pela impossibilidade de entrega da justa prestação jurisdicional, pela ausência de um de seus elementos básicos (artigo 5º, LIV e LV, da CF/1988).

Uma solução paliativa seria encaminhar o acordo de delação premiada para outro magistrado distante da causa, como procedimento incidental, possibilitando a atuação de um juiz civil que possa homologar esse acordo nos mesmos moldes da homologação de acordo civil ou, ainda, a outro juiz de vara criminal que homologue o acordo em hipótese semelhante aos termos da transação penal, a fim de garantir a imparcialidade do juiz que atuará na condução do processo principal, tema este que será tratado em outra oportunidade.

 

 

 

 

Autor: Daniel Del Cid  é especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra – IBCCrim. Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getulio Vargas – FGV – GVLaw – EDESP. Pós-Graduado em Direito Processual Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Advogado criminalista.


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