Autor: Emmanuel Guedes Ferreira (*)
A Constituição de 1988 democratizou o acesso à justiça, concretizando uma das formas de afirmação da cidadania. Após 28 anos, verifica-se um altíssimo nível de litigiosidade perante o Poder Judiciário. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, essa conflitualidade criou uma carga de trabalho que chegou a quase 102 milhões de casos em 2015, finalizando o ano com quase 74 milhões de processos em tramitação.
O estoque de processos em 2015 aumentou 3% em relação a 2014, mesmo tendo sido baixados 1.2 milhão a mais do que o ingressado. Esse estoque de processos só tem aumentando. Desde 2009 houve um crescimento de 19.4% (9.6 milhões). “Dessa forma, mesmo que o Poder Judiciário fosse paralisado sem ingresso de novas demandas, com a atual produtividade de magistrados e servidores, seriam necessários aproximadamente 3 anos de trabalho para zerar o estoque”.
Sabe-se que grande parte desses litígios são de demandas repetitivas, principalmente de executivo fiscal, conflitos com bancos e empresas de telefonia, onde muitas vezes a perpetuação dos litígios interessa e traz retorno financeiro para os demandados.
Diante desse quadro, resta clara a impossibilidade do Estado julgar de forma rápida, satisfatória e eficaz.Verifica-se, portanto, que este modelo de prestação jurisdicional chegou ao ponto de saturação.
Tem-se buscado novas formas para a solução adequada dos conflitos. Além da arbitragem (Lei 9.307/96), a autocomposição tem sido amplamente estimulada, tanto em legislação própria (Lei 13.140/15), quanto no CPC/2015. A doutrina vem chamando esse viés autocompositivo de “princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo civil“.
O relatório Justiça em Números do CNJ trouxe como novidade este ano o Índice de Conciliação, que é o percentual de sentenças e decisões resolvidas por homologação de acordo. Segundo o Conselho, em média, apenas 11% das decisões foram homologatórias de acordo:
“A Justiça que mais faz conciliação é a Trabalhista, que consegue solucionar 25% de seus casos por meio de acordo, valor que aumenta para 40% quando apenas a fase de conhecimento de primeiro grau é considerada.
Na fase de conhecimento dos juizados especiais, o índice de conciliação foi de apenas 16%, sendo 19,1% na Justiça Estadual e 5,6% na Justiça Federal.
Na execução, os índices são ainda menores e alcançam 4,1%. No 2º grau, a conciliação é praticamente inexistente, e as sentenças homologatórias de acordo representam apenas 0,3% dos processos julgados”.
Esse número de acordos homologados, se comparado à carga de processos em estoque e a quantidade de novas demandas ajuizadas, é inquestionavelmente incipiente.
Duvida-se, também, da tecnicidade da conciliação desenvolvida e do grau de lesividade desses acordos, que são feitos em litígios onde o órgão está buscando desesperadamente a diminuição da carga de trabalho.
O novo CPC prevê a realização de uma tentativa de autocomposição, anterior à instrução da lide. Assim, a mediação passa a ser utilizada como peça chave para solução dos conflitos que versem sobre direitos disponíveis. Para isso, foram instalados os Núcleos e Centros de Conciliação nos tribunais, alimentando a esperança de que o Índice de Conciliação do CNJ tenha um salto e ajude a diminuir o estoque de processos.
Todo esse esforço de promoção das soluções adequadas de resolução de conflitos é louvável e deve ser estimulado. Todavia, nos parece que somente a conciliação e a mediação judicial não são suficientes para a melhoria no sistema de solução de conflitos no Brasil.
A cultura da resolução judicial de todos os conflitos deve ser revista em favor de uma nova forma de tratamento do litígio. Essa nova forma (não-judicializante) deve ser baseada na autocomposição privada dos conflitos (mediação extrajudicial e, principalmente, negociação).
Em relação aos advogados, o estímulo institucional à autocomposição está no novo Código de Ética e Disciplina da OAB, que estabeleceu como dever do advogado o estímulo “a qualquer tempo, a conciliação e a mediação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios” (artigo 2º, inciso VI). Esse Código ainda vedou a previsão de cláusula contratual de diminuição dos honorários em razão da solução do litígio por qualquer mecanismo extrajudicial (artigo 48, § 5º). Ou seja, os honorários para prestação de serviço advocatício devem ser contratados para a solução do litígio, seja como ele for solucionado.
Por um outro lado, verifica-se ainda a cultura judicializante em toda a classe advocatícia, onde prevalece a tradição do processo em detrimento das formas não contenciosas, haja vista o baixo Índice de Conciliação deste ano. Essa cultura da advocacia está umbilicalmente ligada à gênese do problema, que é a formação do bacharel.
Considerando o ensino superior de Direito deste país, a graduação é voltado apenas para a cultura da litigiosidade judicializante, muitas vezes sem nenhuma cadeira voltada para a solução alternativa dos conflitos.
Superar essa mentalidade tem se tornado uma necessidade imediata para os operadores do Direito. Infelizmente, demandar não tem solucionado os litígios, apenas criado outro problema para o jurisdicionado.
Obviamente que, se tratando de contenda cuja solução seja impossível pelos métodos particulares (como direitos que inadmitem transação), não há alternativa senão a de se valer do Judiciário. Porém, até mesmo nesses casos, tem-se buscado uma solução negociada ou a opção por métodos não contenciosos de administração de interesses (como na Revisão Fiscal Digital, onde o contribuinte, valendo-se de uma solução combinada de auditoria e engenharia de software, consegue apurar créditos fiscais para compensação ou repetição tributária).
Com isso em vista, em praticamente todos os outros casos, pode-se considerar a negociação como uma forma autônoma de solução de conflitos a ser melhor explorada. As partes assistidas por advogados capacitados para negociar têm muito mais chances de chegar ao fim do litígio de forma satisfatória.
Se comparada a uma sentença judicial ou arbitral, a negociação é capaz de proporcionar uma solução rápida, consensual e mais próxima da vontade original das partes.
“Nas negociações baseadas em interesses, as partes optam e compartilham da vontade de resolver o problema, e de certa forma ainda detêm o controle sobre a gestão do processo de negociação. Quando o processo de negociação passa para a esfera do judiciário, as negociações passam a ser baseadas na aplicação das leis, suprimindo, dessa forma, o processo de criação de valor. O juiz que exerce o papel de autoridade máxima passa a ser o responsável por determinar o resultado final da disputa, reduzindo, com a sua autoridade, a autonomia do controle do processo de negociação pelas partes.”
É nítido o enobrecimento da profissão do advogado quando se busca a pacificação dos conflitos de forma negociada. Ainda mais quando esse tipo de advocacia se aproxima realização material da pretensão da parte. Os advogados que se preparam para a solução extrajudicial dos conflitos têm maior capacidade de atender as partes que buscam um resultado econômico mais vantajoso.
O problema é a formação dos advogados, onde a instrução e o treinamento para a negociação são menosprezados em prol de uma preparação voltada para o litígio. Não que esta não tenha importância; a absoluta falta daquela que é temerosa. O que se espera é o mínimo de instrução nas técnicas e treinamento em negociação do operador do Direito, como base para a formação do que se pode considerar um advogado negociador.
Enfim, considerando que o modelo judicializante de solução de conflitos pela via estatal é ineficaz, insuficiente e mal prestado, é essencial, em um futuro próximo, que os profissionais tenham uma visão transdisciplinar das demandas e das suas formas de resolução. Não só para saber lidar com os litígios dos seus clientes, mas também com os seus próprios conflitos internos, quando encarados em uma mesa de negociação.
Autor: Emmanuel Guedes Ferreira é advogado em Brasília, cursando o D.B.A. (ESC-Rennes), LL.M. em Direito Empresarial (FGV) e é pós-graduado em Direito Tributário (IDP).