Esquecimento não é direito e torna os fatos ainda mais vivos se judicializado

Autor: Victor Augusto Estevam Valente (*)

 

A liberdade de expressão é um dos eixos estruturais do Estado Democrático de Direito, eis que se destina à criação de um mercado livre de ideias, à autodeterminação democrática do povo, à procura da verdade, ao exercício do poder e da atividade governamental, ao desenvolvimento pacífico da sociedade, à expressão da autonomia individual e à formação da opinião pública na democracia comunicativa.

O sistema anglo-saxão confere uma maior amplitude à liberdade de expressão, enquanto que o sistema europeu se inclina à sua restrição.

Sob o ângulo do Direito brasileiro, as liberdades de expressão e de imprensa são consagradas nos artigos 5º, inciso IX, e 220, parágrafo 1º, ambos da Constituição Federal. Apresentam uma significativa amplitude conceitual na ordem constitucional, pois servem de fundamento para outras liberdades, ocupando uma posição de preferência (preferred position doctrine) na ordem jurídica. Contudo, não são concebidas como um direito absoluto ou ilimitado, encontrando limites nos direitos da personalidade.

Reconhece-se, assim, uma coexistência entre as liberdades de expressão e de imprensa e os direitos da personalidade, de modo que a intimidade e a vida privada também devem ser objeto de proteção no Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, a constitucionalização do Direito Civil retrata a superação do dogma clássico da patrimonialização das relações privadas, emanando um conjunto de regras e princípios que se destina à proteção da pessoa humana, em observância aos princípios da unidade do ordenamento e da supremacia da Constituição.

A eficácia horizontal dos direitos fundamentais também encontra guarida no Direito brasileiro, possibilitando a incidência imediata das normas constitucionais para nortear as relações privadas.

Assim, ganham expressão os direitos da personalidade, amplamente amparados tanto pela Constituição de 1988 como pelo Código Civil de 2002.

Para Limongi França, são “as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim da sua projeção essencial no mundo exterior”. Vale dizer, são os direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, despontando como situações jurídicas existenciais reconhecidas ao indivíduo.

Nesse sentido, parte da doutrina tem invocado que o direito ao esquecimento, também conhecido como direito à autodeterminação informativa, “direito de ser esquecido”, de “ser deixado em paz” ou de “estar só” (“the right to be let alone”), seria um desdobramento dos direitos da personalidade.

Segundo essa corrente, o esquecimento é um corolário dos direitos da personalidade, em especial da privacidade, da honra e da dignidade humana, despontando como uma proteção do indivíduo face ao superinformacionismo. Ou seja, seu titular tem a pretensão de não ser mencionado pela mídia sobre fato pretérito que o submeta a constrangimento, ainda que verídico, devendo tal fato ser retirado do alcance público, pois, com o decorrer do tempo, caiu no esquecimento social.

Salienta-se que a discussão acerca da judicialização do esquecimento produz ressonâncias no âmbito do Direito Penal, sobretudo diante de casos criminais de notoriedade veiculados pela mídia ao longo do tempo.

Primeiramente, o direito ao esquecimento guarda relação com os direitos do preso. No Direito Comparado, decidiu o Tribunal Constitucional alemão que um canal de televisão fosse proibido de exibir um documentário referente a determinado acusado, impedindo que a imprensa explorasse, por prazo indeterminado, a pessoa do criminoso e sua vida privada, sob o risco de embaraçar sua ressocialização.

No Brasil, a “chacina da Candelária” foi um dos casos inéditos de reflexão acerca do direito ao esquecimento no Brasil. Ademais, jurisprudência pátria firmou o entendimento de que o acusado tem o direito de que seus antecedentes criminais não sejam divulgados após determinado período de tempo, com vistas à sua ressocialização, a teor do Enunciado 531, do Conselho de Justiça Federal.

Assinala-se que, ao menos no campo das penas, o esquecimento propicia o desenvolvimento da Justiça restaurativa, na qual o Estado deixa de ser preponderantemente repressor, inclinando-se à reconstrução do elo social entre a coletividade e o próprio infrator.

De todo caso, a jurisprudência brasileira ainda não conta com vastos precedentes sobre o direito ao esquecimento. A título de argumentação, essa matéria chegou à apreciação do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário 833.248 RG/RJ, envolvendo o caso do programa Linha Direta, exibido em 2004, firmando-se o entendimento pela repercussão geral do direito ao esquecimento na órbita cível, sob o fundamento de haver densidade constitucional e a necessidade de ponderação de princípios constitucionais.

Esse precedente é um marco na análise do tema, pois o esquecimento será analisado na perspectiva da vítima do delito, cabendo as seguintes reflexões: (i) até em que momento é possível alegar o esquecimento; (ii) se todo e qualquer fato do passado pode ou não ser apontado como objeto de esquecimento no presente; e (iii) em havendo o reconhecimento da ilicitude, discute-se qual seria a sanção mais apropriada para a proteção intimidade, ou seja, se necessária a tutela inibitória ou a tutela reparatória genérica ou específica.

Em outro caso, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815, a suprema corte se posicionara pelo afastamento de exigência prévia de autorização para a publicação de biografias. Porém, entende-se que esse tema vai mais além: atinge o campo do direito ao esquecimento.

O direito ao esquecimento também guarda relação com o regime ditatorial no Brasil, de 1964 a 1985. Diversos setores sociais defenderam um discurso ao esquecimento do período de exceção, havendo uma “clínica ao esquecimento”, sob o pretexto de que a Lei da Anistia fosse integralmente aplicada para ocultar um passado obscuro da história nacional.

Em outubro de 2016, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu o direito ao esquecimento de certo fato ocorrido durante o período ditatorial no Brasil. De acordo com esse posicionamento, os acontecimentos da época ditatorial foram anistiados à luz da Lei 6.683/1979, de modo que devem se tornar esquecidos do público.

Por outro lado, entende parte da doutrina que a ordem constitucional não privilegia o direito ao esquecimento, máxime nos casos ditatoriais, de modo que esse direito não pode ser considerado um desdobramento da dignidade humana, da privacidade ou de qualquer outro direito fundamental, sendo apropriada a referência ao “direito ao isolamento”.

O direito ao esquecimento também é discutido sob o prisma do Direito Digital, máxime se em colisão com as liberdades de expressão e de imprensa. Segundo Raphael Janny, “um mero descuido, na internet, é imperdoável, porque é inesquecível”.

Essa questão tornou-se ainda mais refletida a partir da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre o reconhecimento do direito ao esquecimento aos provedores de serviços de busca na internet, sobretudo da remoção de fotos e vídeos de “pornografia de vingança” (revenge porn).

Nos Estados Unidos e na União Europeia, adota-se o sistema do notice and takedown, ou seja, um procedimento que deve ser seguido pelos provedores de internet visando à proteção da intimidade, a ponto de excluir a responsabilidade dos próprios provedores diante de eventual litígio.

Sob o ângulo do Direito brasileiro, a Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) confere ampla proteção à liberdade de expressão em detrimento da intimidade e da privacidade no ambiente virtual.

Em novembro de 2016, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.593.873, firmou o posicionamento de que o pedido de direito ao esquecimento não pode ser direcionado ao Google, pois os provedores de busca não podem ser obrigados a eliminar de seu sistema os resultados de determinado termo, expressão, foto ou texto específico, por ausência de fundamento normativo, exceto no caso de encaminhamento do próprio provedor ao conteúdo de fotografias ou notícias (provedor de conteúdo).

Salienta-se, outrossim, que o jornalismo investigativo é uma manifestação da liberdade de expressão, eis que, em geral, propicia a transparência e a divulgação de informações relevantes ao interesse público. Funda-se, pois, na premissa de que não há jornalismo sem investigação, como nos casos do Walter Gate, The Panama Papers e The Bahamas Papers.

Afirma-se, no entanto, que o esquecimento é incompatível com a liberdade de expressão e, acima de tudo, com o jornalismo investigativo.

Em outubro de 2016, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) apresentou uma petição perante o Supremo Tribunal Federal, com a finalidade de participar como amicus curiae no Recurso Extraordinário 833.248 RG/RJ, invocando os seguintes fundamentos: (i) o esquecimento não é previsto nem sequer amparado em qualquer norma constitucional, não havendo qualquer repercussão geral sobre o tema; e (ii) a história deve se encarregar dos fatos que podem ou não ser esquecidos.

Entende-se, dessa forma, que o jornalismo investigativo deve ser amplamente resguardado e difundido, com o escopo de contribuir para a elucidação de casos criminais, desde que desprovido de interesses econômicos e ideológicos e direcionado à veracidade na comunicação social.

Em suma, infere-se que a judicialização do esquecimento traz mais incertezas que segurança jurídica.

Primeiramente, os meios de comunicação têm acentuado interesse econômico na divulgação das notícias em geral, revelando-se dificultoso o esquecimento dos fatos sociais, sobretudo daqueles de maior notoriedade. Ademais, os meios tecnológicos são amplamente utilizados, tendo o potencial de divulgar, resgatar e petrificar os mais diversos acontecimentos históricos na sociedade da informação.

Além disso, o crime é um acontecimento de interesse público, de sorte que a coletividade tem o direito de ter acesso à informação dos fatos sociais e, acima de tudo, ao exercício do jus puniendi.

Eventual judicialização do esquecimento também geraria reflexos no âmbito processual criminal, vez que, se determinado o esquecimento de certo fato, a continuidade da persecução tornar-se-ia prejudicada diante do surgimento de novas provas.

Acrescenta-se, outrossim, que o sigilo dos autos já é um mecanismo jurídico apto, ao menos que temporariamente, a assegurar o segredo de Justiça dos casos criminais de repercussão social.

Por derradeiro, é dificultoso determinar um padrão de indenização civil nesses casos.

Assim, eventual proteção da intimidade deve recair nos mecanismos já existentes no âmbito dos direitos da personalidade, conferindo-se prioridade ao direito de resposta e à responsabilidade civil.

Portanto, é teratológico ou quiçá inviável judicializar o esquecimento, posto que o Direito não tem o condão de conter a memória nem o estado de consciência humana. O esquecimento não é direito e, se judicializado, tornará os fatos uma recordação ainda mais viva e instigante na vida social.

 

 

 

 

Autor: Victor Augusto Estevam Valente 

é advogado, mestre em Direito Penal pela PUC-SP, professor em Direito Penal da PUC-Campinas.

 

 

 


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