Cultura escravocrata dificulta que domésticas busquem direitos na Justiça

Autor: Murilo Riccioppo Magacho Filho (*)

 

Aguardando um cliente no Fórum Trabalhista da Barra Funda, em São Paulo, resolvi assistir a uma audiência sobre pagamento de horas extras e outras verbas supostamente devidas a uma cozinheira que trabalhava na casa de sua patroa.

Ambas as partes não se olhavam na cara. O clima era tenso, e a juíza, é claro, na obrigação de ser imparcial, deveria iniciar os trabalhos como em qualquer outra audiência. Mas aparentemente cansada das audiências anteriores, soltando o ar lentamente para demonstrar sua insatisfação, começou a audiência expressando sua indignação pessoal:

“É de novo sobre aquela emenda? Vamos lá, fazer o que, né?”.

Para que fique claro, “aquela” emenda é a Emenda Constitucional 72, de 2013, que possibilitou ao empregado doméstico ter direito às horas extras e a outras verbas trabalhistas que anteriormente não eram previstas legalmente a essa classe profissional.

Fato é que a cozinheira, que trabalhava na casa da patroa há mais de 10 anos, moveu uma ação trabalhista contra “quem lhe acolheu como uma mãe, durante anos”, “sempre a ajudando quando necessário”. Uma atitude, portanto, como se diz, totalmente “ingrata”.

Como sempre nos ensinou o juiz do Trabalho e professor da Faculdade de Direito da USP Jorge Luiz Souto Maior, os quase 400 anos de convivência com o regime de trabalho escravo legaram à sociedade brasileira um dado cultural que muito influencia a compreensão e a aplicação do Direito do Trabalho no país. Nossa formação cultural escravocrata não exerce influência somente no que tange à discriminação pela cor, mas também quanto ao valor do trabalho. Um trabalhador que até pouco tempo era escravo, já tem muito se lhe é conferido algum direito, e, se vai a juízo reclamar esse direito, é um “mal agradecido”[1].

Para mim, nos poucos anos de advocacia, já era um costume presenciar situações que remetiam a essa desvalorização do trabalho por uma sociedade ideologicamente e culturalmente escravocrata, mas eu ainda não havia presenciado uma situação ocasionada por um juiz do Trabalho, que, no meu entender, seria aquele que possui exatamente a função social de aplicar a lei para proteção e valorização do trabalhador.

Voltemos, então, à audiência.

Como dissemos, a juíza se deparou com um caso concreto que trazia à tona “aquela” emenda. Mas antes de instruir as testemunhas, perguntou às partes se havia alguma proposta de acordo.

Por parte da patroa, foi proposto um acordo de R$ 2 mil, enquanto por parte da cozinheira, R$ 20 mil.

O advogado da patroa argumentou que tal proposta era o máximo que poderia oferecer, porque a empregada sempre foi bem tratada na residência, recebendo ajuda de custo quando necessário, inclusive para seus filhos. Argumentou, ainda, que a cozinheira chegou a pagar a faculdade para a filha, e a dar a ela um notebook.

A juíza, impressionada, perguntou à cozinheira:

“Isso é verdade? Você pagou faculdade e comprou notebook para sua filha?

Não, excelência, não comprei nada disso — disse em voz baixa a empregada, após alguns segundos em silêncio”.

A juíza, verificando a demora e a imprecisão da resposta por parte da cozinheira, disse em alto e bom som:

“Se você estiver mentindo, acho melhor chegar perto da proposta oferecida pela ré. Até porque você deveria ser grata a tudo que sua patroa lhe fez, durante todos esses anos”.

No fim, a discussão em torno do direito às horas extras foi deixada de lado. Era mais interessante trazer indícios sobre a ingratidão da empregada e sua capacidade financeira para pagar notebook e faculdade para filha.

As partes chegaram, então, a um acordo de R$ 2,5 mil, ou seja, R$ 500 a mais do que a proposta feita pela patroa, e, no final das contas, “todo mundo saiu ganhando”, pois o acordo, como se diz na Justiça do Trabalho, beneficia ambas as partes.

Enfim, que fique uma lição com tudo isso: um direito previsto ao trabalhador, especialmente quando se trata de doméstico, não pode ser pleiteado por qualquer um e em qualquer hipótese: i) o empregado deve ser extremamente pobre; e ii) deve ter motivos suficientes para colocar na Justiça seu patrão, já que lhe deve ser grato por toda a “ajuda” recebida.

 

 

 

 

Autor: Murilo Riccioppo Magacho Filho  é advogado do Trubilhano Advogados, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e integrante dos grupos de estudos Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e Políticas Públicas como In


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