Autor: Eduardo José da Fonseca Costa (*)
Na leitura do artigo 927 do CPC-2015, percebe-se uma tentativa de “redução” dos tribunais superiores a órgãos a-históricos, compostos por juízes neutros, que (i) resolvem as questões que lhes são levadas à apreciação a partir de um ver puramente teórico, e que (ii) procedem à objetivação de seus entendimentos mediante a elaboração de enunciados universais lato sensu(ex.: enunciados stricto sensu de súmula de jurisprudência dominante, precedentes em controle abstrato de constitucionalidade ou em julgamento de recursos excepcionais repetitivos).
Esses enunciados ultrapassariam a sua própria condição histórica e seriam capazes de uma “pré-posse ideal da experiência”, de possuírem após a sua edição todo o acontecer fático. Sob a crença de que a sua privilegiada posição transcendental encerraria o “todos nós” da comunidade jurídica, o tribunal superior, obedecendo a um esquematismo enunciativo, produziria um verbete limpo, transparente, que espelhasse o seu entendimento. Esse enunciado seria uma “reduplicação parafrásica” da própria lei.
Para tanto, os casos práticos seriam colocados marginalmente entre parêntesis, sob reserva, num lugar indeterminado. Tudo como se os esquemas da realidade fática pudessem ser reproduzidos apenas nos polos supraempíricos da depurada consciência dos julgadores, gerando uma universalidade sem existência concreta. Enfim, o caso seria um dado não tematizado (embora dele tudo parta e embora ele tudo tematize!); seria as bordas de uma realidade que não ingressa no processo de enunciação.
Radicalizada essa subjetividade transcendental às últimas consequências, os tribunais superiores julgariam de um jeito solipsista, sem uma maneira de proceder disciplinada do pensamento, à margem de qualquer transparência metódica. Noutras palavras, trabalhariam imunes a um controle objetivo-racional da marcha que os leva do texto normativo à norma jurídica.
Mais: eles encerrariam não só as condições de possibilidade de conhecimento do direito [“o direito somente pode ser conhecido em seu momento conflitivo-judicial”], mas seriam a própria condição de possibilidade do direito [“o direito é o que os tribunais dizem que ele é”]. Todo o direito seria resolvido no interior dos tribunais, como se eles fossem o próprio mundo do direito; só a partir deles se discutiriam autenticamente os problemas da juridicidade.
Para compensar-se essa ampla discricionariedade interpretativa dos tribunais e garantir-se a meta absoluta da segurança jurídica, duas condições seriam exigíveis: 1) a instituição da força geral obrigatória dos enunciados universais supramencionados, como se fossem a própria lei; 2) a organização desses enunciados dentro de uma estrutura escalonada que refletisse a própria dignidade hierárquico-judiciária do tribunal que os promanou (o que é um mal entendido, pois parte da inocente concepção de que o Poder Judiciário – ao reduplicar as leis mediante a projeção de um agrupamento enunciativo paralelo a elas – é capaz de perpetuar seus entendimentos por meio de textos melhores ou mais perfeitos que os do Poder Legislativo).
Ou seja, o enunciado ganharia uma força ex auctoritate iudicis, impulsionando o protagonismo dos tribunais superiores (e, com isso, trazendo como efeito colateral indesejado graves riscos à democracia: à margem de qualquer discussão republicana sobre a composição, a estrutura e o funcionamento desses órgãos jurisdicionais, a legitimação transcendental deles daria ensejo a que esses seus enunciados ocultassem conteúdos impertinentes nem sempre identificáveis).
Não sem razão, para um transcendentalista, todo o equacionamento do problema dos precedentes [rectius: enunciados] perpassa, em última instância: 1) pela necessidade arquitetônica de um “ordenamento hierárquico-piramidal de tribunais” (daí a proliferação de livros sobre “cortes supremas”, pelos quais desfilam prime donne como a Supreme Courtdos EUA, a Cour de Cassation francesa, a Corte Suprema di Cassazioneitaliana e o Bundesgerichtshof alemão); 2) pelo desenvolvimento de uma analítica institucional, que fixe os pontos de compreensão desse sistema de cortes (o que no Brasil – dada a sua comezinha penúria jurídico-epistemológica – ainda é um devir de improvável realização); 3) pela adoção de alguma base jusfilosófica legitimante de tipo cético-relativista (hoje, a base preferida tem sido o “realismo jurídico genovês” de autores como Giovanni Tarello, Riccardo Guastini, Paolo Comanduci e Pierluigi Chiassoni, que em maior ou menor medida descreem da interpretação como um ato de conhecimento, lançando-a nas valas do decisionismo); 4) por apelos éticos que limitem moralmente o horizonte de possibilidades da consciência dos juízes do tribunal (i.e., por barreiras maleáveis de contenção dentro da própria moral, que evitam que nela o direito se dissolva, mas não impedem que por ele às vezes ela passeie).
Ao fim e ao cabo, o objetivo dos transcendentalistas é a reconstrução progressiva da segurança, da isonomia, da eficiência e da boa-fé na própria interioridade dos tribunais. À medida que neles funciona o “sistema de precedentes à brasileira”, opera-se “de cima para baixo” a realização dos referidos princípios mediante a produção de enunciados com força geral obrigatória. Nesse sentido, estar-se-ia diante de uma responsabilidade palaciano-judiciária, de uma tarefa concentrada de tipo oligo-decisional.
Em polo diametralmente oposto estão os hermeneutas, que enxergam essa possiblidade de reconstrução (jamais uma reconstrução para a definitividade, mas para a mera estabilidade) num método fenomenológico-hermenêutico intersubjetivamente compartilhável, que, prescindindo da edição de enunciados com força geral obrigatória e confiando na qualidade dos argumentos desenvolvidos, estruture o debate “de baixo para cima” nas diferentes instâncias judiciárias (sobre o tema, sugiro a leitura da extensa série de artigos publicados pelo professor Lênio Luiz Streck na ConJur).
Nesse sentido, estar-se-ia diante de uma responsabilidade comunitário-forense, de uma tarefa difusa de tipo poli-interacional (no fundo, em certa medida, a debate teórico-jurídico entre os transcendentalistas e os hermeneutas ao redor do problema dos precedentes no Brasil é uma reprodução da própria disputa filosófico-metódica entre a fenomenologia de Husserl e a fenomenologia de Heidegger; sobre essa disputa, v., e.g.: STEIN, Ernildo. Introdução do pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 43 e ss.; TUGENDHAT, Ernst. Der Wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger. 2. ed. Berlin: De Gruyter, 1970).
Ora, não se pode olvidar que estão imersos concretamente na finitude, na vida e numa historicidade indisponíveis: (a) os tribunais e os juízes que o compõem; (b) os casos que eles julgam; (c) os textos de direito positivo que interpretam; (d) as normas jurídicas que consequentemente aplicam; (e) a jurisprudência que daí se consolida; (f) os enunciados que condensam essa jurisprudência. Muito longe de um ver teórico-objetivante, o ver dos tribunais superiores é um ver hermenêutico-compreensivo, que se debruça inelutavelmente sobre casos práticos “em suas súbitas e precárias contingências” (Ernildo Stein). Mais: debruça-se e re-debruça-se, num movimento circular de leitura e re-leitura, num “processo sempre a caminho”, do qual o tribunal nunca se liberta.
O ponto de partida é constantemente reinstalado, não raro sob renovadas perspectivas, fazendo da compreensão jurisprudencial um constante e inacabado constructo. Isso já mostra, por exemplo, que a uniformização de jurisprudência, sem qualquer pretensão de definitividade, só deve ocorrer sob meditada maturidade. É preciso que o tribunal já está cercado do máximo de perspectivas possíveis ao redor da mesma questão, após um debate reflexivamente radical travado desde as instâncias inferiores; caso contrário ele terá de desdizer-se de sempre em sempre.
Ainda assim, essa uniformização – porque marcada por um contexto histórico, social, político e econômico – já nasce sob o signo inextricável da temporalidade e, portanto, da temporariedade (o problema se agrava quando cada novo ministro não se curva à massa jurisprudencial preexistente e decide caprichosamente revisitá-la sob o crivo da sua incontida personalidade, empurrando a temporalidade estável para as valas da fugacidade descartável).
Ainda que elevado aos píncaros da hierarquia judiciária, todo tribunal superior tem mundanidade. Não é ele o próprio mundo; tampouco o contém. O mundo não está no tribunal, mas este está naquele, sendo o mundo, não o tribunal, o lugar onde se instala a significância ou significatividade [al.: Bedeutsamkeit].
Dela emergem as condições de possibilidade de todas as significações, significados, significantes, simbolizações, comunicações etc. (sobre a relação entre mundo e significância: STEIN, Ernildo. Mundo vivido: das vicissitudes e dos usos de um conceito da fenomenologia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 59 e ss.). Nesse sentido, inserido no mundo, o tribunal mergulha e re-mergulha com toda a sua condição histórica entre os casos práticos e, a partir da facticidade deles próprios, é ele compreendido e se compreende.
O caso concreto é o súbito e eterno começo da dimensão original dos tribunais; é o dado espesso que, conquanto inobjetivável pela enunciação do verbete, sustenta o chão da cotidianidade dos juízes; é o “alfa e o ômega” – parafraseando Hans-Georg Hgh Gadamer – de todo o conhecimento jurisprudencial. Não sem razão a Constituição Federal de 1988 imputa ao STF e ao STJ, mesmo quando lhes define as competências recursais excepcionais (artigos 102, III, e 105, III), o julgamento de causas.
O refúgio à dimensão sublime das teses jurídicas não passa de uma ingenuidade, que não salva os tribunais superiores de sua condição concreta de prudencialidade (prudência aqui entendida como habilidade de interpretar-aplicar um texto normativo em função das partes, dos argumentos por ela levantados, das circunstâncias do caso prático, dos propósitos em jogo, etc.). Afinal de contas, todo julgamento é um valer-para, não um valer-em-si.
Nesse sentido, o controle metódico da razão interpretativa, que transita entre o texto e a norma, se torna “a” questão fundamental no equacionamento do problema dos precedentes obrigatórios [rectius: enunciados], pois permite i) que sejam controlados o funcionamento e os resultados da argumentação desenvolvida pelos tribunais, ii) que se lhes imponha um ônus argumentativo mais pesado no processo de superação de seus próprios enunciados e, em consequência, iii) que se aumente a extensão temporal de seus entendimentos. Com isso os enunciados ganham uma força ex auctoritate argumentorum, conferindo aos tribunais superiores uma legitimação destranscendentalizada (tanto mais democrática quanto mais polifônica a participação argumentativa dos interessados na causa sub judice) e obstando que do “alto de seu horizonte” decidam sob a intransparência do voluntarismo.
De toda forma, é necessário pôr a nu que faltam aos juízes e tribunais brasileiros (mais: faltam a toda nossa comunidade jurídica) as bases hermenêutico-compreensivas de um “modo de ser” pré-positivo, que radica nas profundezas onto-lógicas da convivência social (não se fixando vulgarmente, pois, na rasa superfície explicativa do sócio-lógico, do antropo-lógico, do psico-lógico, do polito-lógico, do economo-lógico, do ético-lógico, etc.).
Essa matriz originária-originante – que não se conquista mediante análise empírica da realidade ou reconstrução idealista – implica um saber-querer-poder identificar precedentes, um saber-poder-querer construí-los, um saber-querer-poder aceitá-los, um saber-querer-poder submeter-se a eles, um saber-querer-poder superá-los, um saber-querer-poder lidar com os seus componentes, um saber-querer-poder interpretá-los, um saber-querer-poder aplicá-los. Sem esse “modo de ser”, adquirido por habituação histórico-prática e para trás do qual não se pode recuar, o modelo de precedentes sofre de uma privação, perdendo-se numa impropriedade.
Todavia, sendo esse “modo de ser” a condição-limite de possibilidade existenciária, não se pode esperar que a mera positivação do aludido modelo seja bastante à instauração dessa condição. Afinal, nenhum ôntico é ontologicamente autofundante. Aliás, não é possível à positivação dos precedentes obrigatórios, sem despotenciar o “modo de ser” da tradição brasileira do Civil Law, potenciar no país o intrusivo “modo de ser” do Common Law.
Logo, não se pode esperar que a vigência do CPC-2015 – para o bom rendimento da isonomia, da eficiência, da segurança e da boa-fé – traga sozinha à luz um “sistema de precedentes obrigatórios”, constituindo-o fenomenologicamente como manifestação. É ingênuo supor que, sem possuir o apropriado “modo de ser”, os tribunais superiores acatem a exortação ético-política do artigo 926 do Código e, com isso, conformem as suas jurisprudências às marcas da uniformidade, da estabilidade, da integridade e da coerência (os últimos informativos de jurisprudência do STF e do STJ têm revelado isso à exaustão).
Esse “modo de ser” é prius ontológico sem o qual o tal “sistema” não se movimenta de dentro para fora, não existe [existir, do latim “ek” + “sistere” = lançar-se para fora]. Em suma: “um sistema de stare decisis não surge de um dia pro outro ou por determinação legislativa” (ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 574); entretanto, havendo determinação legislativa à míngua de condições existenciárias, há o risco de que algo imprevisto ecloda: uma monstruosa anomalia que atente ainda mais contra a isonomia, a eficiência, a segurança e a boa-fé.
Decerto daqui a alguns anos, não sem algum tom de amargura, os transcendentalistas (os “commonlistas” a que alude Lênio Streck) – todos eles grandes processualistas, dignos da mais absoluta reverência – queixar-se-ão que as suas respeitáveis doutrinas jamais foram entendidas, assimiladas e praticadas pelo mundo forense em geral e pelos tribunais brasileiros em particular. Mas, na verdade, é mais provável que infelizmente o mundo forense em geral e os tribunais brasileiros em particular jamais hajam sido bem compreendidos, absorvidos e vivenciados pelos transcendentalistas…
Autor: Eduardo José da Fonseca Costa é juiz federal e doutor em Direito (PUC/SP). Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).