Autor: Gilberto Valente Martins (*)
Na madrugada de quarta-feira (30/11) a Câmara dos Deputados, quando discutia as propostas das dez medidas de combate a corrupção, projeto de lei de iniciativa popular, com mais de dois milhões de assinaturas, foi aprovada emenda com o propósito claro de intimidação dos agentes que atuam no sistema de justiça, juízes e membros do Ministério Público.
A intenção de alguns parlamentares, especialmente daqueles que estão “prestando conta com a justiça” [1], era chumbar todas as propostas ou desfigura-las por completo. “Ouvindo a voz do povo que vem das ruas” como afirmou o presidente da República em entrevista coletiva, juntamente com os chefes das duas casas legislativas, resolveram não levar a diante a ideia de incluir a anistia do caixa dois.
Assim como foi apontado anteriormente pelo ministro Carlos Ayres Britto [2], quanto a pretensa anistia legislativa do caixa dois, devemos analisar alguns aspectos da emenda apresentada que objetiva intimidar a magistratura e o Ministério Público brasileiro, em clara demonstração de vindita, sob o aspecto de sua constitucionalidade.
Pela emenda, que introduziu o “título dos crimes de responsabilidade dos magistrados e membros do Ministério Público” pretendem os parlamentares tipificar condutas absolutamente inadequadas para serem tratadas pelo direito penal. O autor da proposta buscou criminalizar regras de condutas vedadas já disciplinadas nas legislações em vigor, todas com tratativas de natureza administrativa. A título de exemplo, os casos de suspeição e impedimento tratados nos Códigos de Processo Civil e Processo Penal, pretende-se, agora, criminalizar tais condutas em caso de serem inobservadas pelos juízes.
Na emenda consta no artigo 39, item 2.
“São crimes de responsabilidade dos magistrados.
2. proferir julgamento, quando por lei, seja impedido ou suspeito na causa”
A regra constitucional que impede o magistrado de ter participação político partidária, pela emenda, passaria a ser crime, assim como também, quando o mesmo for desidioso no cumprimento dos deveres do cargo. Temos ainda outros casos de natureza impeditiva do magistrado que querem alguns deputados criminaliza-las. Vejamos o pretenso tipo, em gestação, do item 7 – exercer atividade empresarial ou participar de sociedade empresária, inclusive de economia mista, exceto como acionista ou quotista. Para os promotores e procuradores tipificações semelhantes foram elencadas no artigo 40.
Esses casos, que hoje são tratadas como condutas vedadas, inclusive na própria Constituição e na Lei Orgânica da Magistratura Nacional e na do Ministério Público, são puníveis com sanções administrativas. Registre-se que assim tem sido feito, especialmente pelo CNJ e CNMP.
Para os membros do Ministério Público, desfigurando todas as regras e princípios que regem o sistema acusatório, a Câmara dos Deputados aprovou a criminalização de atos que hoje tornam obrigatório o início da ação penal, ao estabelecer no artigo 40 do item 12 – “oferecer denúncia contra pessoa física ou jurídica sem os elementos essenciais à condenação, assim reconhecido por decisão judicial colegiada de segunda instância”.
Caso essas regras venham a ser aprovadas já nascem com o vício insanável de inconstitucionalidade, legitimando o Supermo Tribunal Federal, diante de provocação de iniciativa do Procurador-Geral da República, retirá-las do ordenamento jurídico, ou, exercendo o controle difuso, permitir que todo juiz ou tribunal deixem de dar-lhe eficácia.
Aos magistrados, cabem, quando da aplicação da lei, distribuindo justiça, verificar a adequação da norma ao texto constitucional. Esta verificação vertical da norma, de adequação com os preceitos da Carta Magna deve ser exercido todas as vezes que for questionada. Havendo conflito deve ser expurgada do ordenamento jurídico ou deixada de ser aplicada, perdendo sua eficácia.
Todo tipo penal tutela um bem jurídico. Portanto a indagação que se faz necessária é saber qual o bem jurídico tutelado por esses dispositivos. Eles são dignos de serem protegidos pelo direto penal?
O que se percebe dessa emenda legislativa que tornou desforme as dez medidas contra a corrupção é que os parlamentares que votaram pela aprovação do projeto, querem verdadeiramente “tutelar a proteção da corrupção”. Será que por já ter sido afirmado por profissionais [3] e pelo próprio procurador-geral da República, Rodrigo Janot [4], que operam com o direito penal, de que em alguns setores da administração pública existe uma corrupção endêmica, se vai agora impedir seu combate?
Deixando de lado toda teoria jurídica do direito penal, que exige o elemento subjetivo do crime — dolo ou culpa — as tipologias apresentadas pela emenda não são descritas com precisão, verificando-se a total falta de tecnicidade na elaboração da norma pretendida, além de deixar dúvidas latentes ao não permitir que se consiga identificar se tais tipos são de resultado ou de mera conduta, se de dano ou de risco. Mais inadequado, para dizer o mínimo, quando criminaliza “ofender o decoro”. E o que devemos entender como “decoro”? Será que é o decoro do parlamentar? Serão tuteladas pelo direito penal as normas morais como honradez, dignidade ou pundonor? Exclusivamente quando praticadas as ofensas por magistrados e membros do Ministério Público? Quando o juiz condenar um denunciado ou um réu em ação de improbidade e os mesmos obterem reforma no tribunal, ele responderá criminalmente por ter abalado a reputação. É isso que querem os Deputados.
Por esses exemplos estamos diante de tipos penais abertos e abstratos ao extremo [5].
Fazendo uma analogia reductio ad absurdum seria o mesmo que tornar crime a conduta de um parlamentar que venha a ter um projeto de lei de sua autoria rejeitado no Congresso Nacional, ou até mesmo que embora aprovado seja declarado inconstitucional pelo STF.
Assim, justifica-se enfrentar os aspectos que tornam as pretendidas regras claramente inconstitucionais. Esse vício diz respeito à dignidade da norma penal. Se existindo um bem jurídico a ser protegido, ele é merecedor de tratativa pelo direito penal?
Em nenhum momento, em qualquer hipótese, no corpo da nossa retalhada constituição, quis o constituinte originário ou derivado [6] elevar as condutas vedadas tanto para a magistratura como para o Ministério Público a categoria de norma penal. Certamente isso se deu em razão de que as leis que já regulamentavam os citados dispositivos que antecediam a própria reforma constitucional, já sancionavam no âmbito administrativo, podendo, em alguns casos, ser aplicada a Lei 8.429/93 — Lei de Improbidade Administrativa.
As estruturas legais para proteção aos bens jurídicos jamais poderão assentar-se somente no Direito Penal, pois sua intervenção somente está legitimada quando os outros setores ou ramos do direito se mostrem ineficientes para a proteção ou controle social. A proposta originária, que criminalizava condutas extremamente ofensivas para a sociedade e que mereciam nova tratativa, com penas maiores como a corrupção, foram afrontosamente reprovadas. Assim como outras regras que permitiriam avanços no combate à improbidade e lavagem de dinheiro, como a ação de extinção de domínio e o teste de integridade.
A reprovação das condutas apontadas certamente não é merecedora de punição de natureza criminal. A teoria da intervenção mínima do direito penal é perfeitamente adequada para esse caso. O direito punitivo disciplinar atende o interesse do Estado de forma a gerar os efeitos da repressão ao ilícito. As palavras da Professora Ana Claudia Lucas [7] são lições que refletem esse entendimento. Vejamos:
“Assim por força deste princípio, num sistema normativo-punitivo – como é o Direito Penal – a criminalização de comportamentos só deve ocorrer quando se constituir meio necessário à proteção de bens jurídicos ou à defesa de interesses juridicamente indispensáveis à coexistência harmônica e pacífica da sociedade.
Não pode o Direito Penal servir de instrumento único de controle social, sob pena de banalizar-se a sua atuação que deve ser subsidiária, último remédio, última alternativa, a ‘ultima ratio’.
A observância do Princípio da Intervenção mínima se constitui decorrência imediata do chamado Garantismo Penal, consubstanciado na aplicação constitucional do Direito Pena e, por isso, não se deve tolerar que ele sirva de instrumento único de controle social, sob pena de banalizar-se a sua atuação, que deve ser subsidiária, último remédio, última alternativa, a ‘ultima ratio’.
Em tempos de expansão desmedida e descontrolada do Direito Penal, em que se experimenta um processo de administrativização ou de excessiva intervenção deste setor do Direito, faz bem lembrar do Princípio da Intervenção Mínima, e refletir sobre o seu verdadeiro alcance.”
Podemos afirma que os tipos penais que foram aprovados pela Câmara dos Deputados não são merecedores de dignidade penal. Como dignidade penal, devemos entender pela teoria politico-criminal e dogmática básica uma unidade e consistência capaz de conduzir ao entendimento da necessidade de previsão de comportamento ilícito-típico, culposo e digno de pena.
Sobre dignidade penal, na capitulo da “punibilidade e coerência da penal” o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Jorge de Figueiredo Dias [8] , discorre:
“…O que ela constitui, sim – dir-se-á -, é um critério ou princípio regulativo cujo significado não pode reduzir-se a uma só daquelas categorias, antes necessariamente se estende a todas elas: pois torna-se evidente, logo à partida da construção, que só pode ser crime o comportamento que ser revele digno de punição; o que significa que a dignidade penal é principio regulativo de todas as categorias – antes de tudo do ilícito-típico, mas também da culpa e da punibilidade – e, como tal, critério ubíquo e imanente à totalidade da doutrina geral do crime e do sistema respectivo. Não nos parece, porém, que o argumento proceda em definitivo. Decerto que a dignidade penal é um requisito conatural ao crime como um todo e, por isso, princípio regulativo de toda a construção e de todo o sistema; tal como o é, por exemplo, a exigibilidade, ligada à velha máxima ad impossibilia nemo tenetur. E todavia: tal como a exigibilidade, sendo princípio regulativo de todas as categorias constitutivas do crime, nomeadamente a do tipo de ilícito, não deixa de precipitar-se de forma específica e autónoma, enquanto princípio normativo ou decisório, na categoria da culpa jurídico-penal; assim também se deve aceitar que a ideia da dignidade penal, sem prejuízo da sua ubiquidade e imanência, se assuma como elemento fundamentador e compreensivo par excellence da categoria dos pressupostos de punibilidade.”
Devemos levar em conta, para fins de verificação da adequação vertical dos pretendidos tipos penais perante a Constituição se esses elementos constitutivos da norma estão presentes. A proteção inadequada do suposto bem jurídico que se pretende não se apresenta, em nenhum dos dispositivos acrescidos pela emenda do Deputado do PDT Weverton Rocha.
O que a sociedade assistiu foi uma das maiores afrontas ao preceito do paragrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, que estabelece que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Além de impedir o aprimoramento dos instrumentos de combate à criminalidade econômica, a emenda que deformou o projeto de iniciativa popular, se aprovada, poderá colocar o sistema de justiça brasileiro totalmente ineficiente e incapaz de reprimir a corrupção Brasil.
Autor: Gilberto Valente Martins é membro do Ministério Público do Pará, ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça e mestre em direito penal pela Universidade de Coimbra.