Autores: Lenio Luiz Streck e Rafael Giorgio Dalla Barba (*)
No longínquo ano de 1748 o Barão de Montesquieu escreveu o seguinte: “No governo republicano, é da natureza da Constituição que os juízes sigam a letra da lei. Não há cidadão contra quem se possa interpretar uma lei quando se trata de seus bens, de sua honra ou de sua vida.” A sua importância não vem do seu título de nobreza, mas da ideia de que o Poder Público, para que tenha qualquer legitimidade, deve pressupor uma separação das suas funções básicas como modalidades de freios e contrapesos. A razão é (ou deveria ser) fácil de compreender: em um Estado Democrático, aquele ente estatal que tem a função de julgar casos sob a lei, não deve criá-las.
Mas no Brasil de 2016 parece que as coisas não funcionam “bem assim”. O nível de ativismo judicial consegue superar suas próprias “façanhas” a cada dia. Dessa vez, o ativismo ultrapassou qualquer limite que ainda restava daquilo que Montesquieu havia nos deixado. No voto-vista do Habeas Corpus 124.306/RS, de lavra do ministro Roberto Barroso, é possível perceber a dimensão do ativismo em terrae brasilis. E, veja-se: não se trata nem de entrar no mérito da decisão. Não é isso que queremos discutir. O que querermos é discutir as condições de possibilidade de o direito sobreviver à moral e à política.
Um aviso prévio. Discutir Teoria do Direito significa compromissos teóricos e epistêmicos. Não se trata de saber qual a opinião política-ideológica dos juízes. Do contrário, aceitando essa premissa, não resta mais nada para o Direito. Fechemos as Faculdades. Do que adianta discutir princípios, separação de Poderes, interpretação jurídica, se, ao fim e ao cabo, o Direito depende exclusivamente das preferências pessoais do juiz? “Ah, mas isso é assim mesmo” dirão alguns (ou muitos). É mesmo? Então devemos assumir, se formos minimamente sinceros, que (i) não faz sentido nenhum permitir que decisões políticas sejam transferidas da esfera legislativa para a jurisdicional, sob pena de alienarmos nossa cidadania por completo; (ii) o poder jurisdicional dos juízes não tem qualquer legitimidade política, na medida em que não a recebem pelo voto popular; (iii) o Direito fracassou, pois não conseguiu criar uma teoria da decisão que possa impedir que as decisões judiciais sejam tomadas a partir de critérios puramente privados.[1]
Mas qual é, especificamente, o problema do voto do ministro Barroso? Para respondermos a essa pergunta, temos de começar pela sua própria correção. Isso porque não se trata de um, mas de diversos problemas graves na exposição do voto do ministro. Não se trata (apenas) de problemas de conteúdo, mas da própria estrutura formal de como a decisão foi obtida. O que agrava ainda mais a situação.
Em seu voto, o ministro Roberto Barroso se utiliza do “princípio da proporcionalidade” (sic) para “estruturar a argumentação de uma maneira racional, permitindo a compreensão do itinerário lógico percorrido e, consequentemente, o controle intersubjetivo das decisões”. Bom se assim o fosse. Além dos problemas próprios da “proporcionalidade” ou da “ponderação”,[2] o que se vê no voto é uma simplificação da teoria alexyana cumulado com argumentos retóricos dos quais não respeitam o mínimo de exigência aos parâmetros institucionais do Direito, como coerência e integridade.
Sigamos. O fundamento central do voto seria uma ponderação entre o bem jurídico protegido pelos artigos 124 e 126, “vida potencial do feto” em face de “diversos direitos fundamentais da mulher” (sic), feita em nome do “princípio da proporcionalidade” da teoria de Robert Alexy. Já de início, podemos referir que a própria utilização da nomenclatura “princípio da proporcionalidade” é empregada de forma equivocada. Na famosa Teoria dos Direitos Fundamentais,[3] a proporcionalidade é uma máxima utilizada como método para aplicar a colisão entre princípios. Trata-se da máxima da proporcionalidade (Verhältnismäßigkeitsgrundsatz). E isso não é apenas uma discussão semântica. Na medida em que a máxima da proporcionalidade é o critério para determinar o peso da colisão entre princípios, como poderia ser, ela mesma, um princípio? Aliás, Virgílio Afonso da Silva alerta para o fato de que, ainda que tivéssemos apenas as opções “regra” ou “princípio”, seria mais adequado enquadrar a “máxima da proporcionalidade” como regra (ou melhor, uma metarregra)[4]. Ademais, o próprio Alexy considera que “As três máximas parciais são consideradas como regras”.[5] Evidente, pois princípios para Alexy são mandamentos de otimização e, dessa forma, podem ser aplicados em maior ou menor grau. Como o critério que julga a otimização dos princípios colidentes poderia ser, ela mesma, otimizada?
Além disso, embora a teoria alexyana seja complexa, uma coisa parece bem evidente: regras, por se tratarem de mandamentos de definição (definitive Gebote), aplicam-se por subsunção; princípios, por sua vez, têm natureza de mandamentos de otimização (Optimierungsgebote), pois ordenam que algo seja realizado em máxima medida em relação às possibilidades fáticas e jurídicas. Para Alexy, “a ponderação é a forma característica da aplicação dos princípios”.[6] Ora, os tipos penais tanto do artigo 124 como do 126 são, nos termos de Alexy, regras. Portanto, aplicam-se por meio de subsunção, ao velho estilo “tudo-ou-nada” (all or nothing fashion). Se o ministro Barroso utilizou Alexy para fundamentar sua decisão, o mínimo que se exige seria coerência e fidelidade à teoria do autor que ele mesmo utiliza, não é mesmo?
Mas para não acabar por aqui com a coluna (e com a refutação da fundamentação do voto), vamos supor que as regras das quais se questiona a constitucionalidade, por estarem amparadas pelo princípio constitucional da proteção à vida, entrassem em colisão com “diversos direitos fundamentais da mulher” (para usar as palavras do ministro). Teríamos que utilizar a máxima da proporcionalidade, em suas três submáximas parciais (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) para resolver essa colisão. Como bem salienta Virgílio Afonso da Silva, tais submáximas devem ser aplicadas de forma subsidiária, ou seja, primeiro se avalia a adequação, depois, a necessidade, e, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito. É possível que a análise da proporcionalidade termine na mera observância da adequação, sem necessitar que se chegue às duas últimas submáximas.[7] Mas nada disso se vê no voto do ministro.
Ademais, a máxima da proporcionalidade — subdividida em três submáximas parciais —, como é apresentada no voto, é realizada de forma inadequada e inapropriada. Vejamos. A submáxima da adequação, ao seguir a lógica da eficiência de Pareto, procura eliminar os meios empregados pelo legislador que, além de não proteger a finalidade a qual se destinam, prejudicam outros bens jurídicos tutelados pela ordem jurídica. Para Barroso, a tipificação do crime do aborto teria “duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro;”. Ora, se o bem jurídico tutelado é a vida do nascituro, que outro meio poderia ter sido utilizado pelo legislador para alcançar tal finalidade? Se o número de abortos praticados no país é um argumento válido para afastar a meio legal escolhido para proteção à vida, por que não seguimos esse mesmo raciocínio para os demais crimes contra a vida? Afinal, somos o país que nos últimos anos alcançou a meta de 60 mil homicídios anuais. Não se mede a adequação de meios para obtenção de fins por meio do seu grau de eficácia social, do contrário, a própria noção de norma jurídica “iria por água abaixo” na medida em que a sua concretização ficaria à mercê das condições contingenciais e aleatórias. O que o ministro Barroso fez foi um retorno ao realismo jurídico por meio de uma equivocada interpretação da teoria dos princípios de Alexy.
Vamos à submáxima da necessidade. Em linhas gerais, essa submáxima determina que havendo dois meios adequados a promover determinado princípio (leia-se finalidade), deve ser escolhido aquele que interfira menos intensamente possível a outros princípios que possam ser atingidos. O ministro Barroso entende que “é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas”. É possível mesmo? Todavia, como é possível afirmar tão categoricamente que a descriminalização de tais tipos penais poderiam evitar novos abortos? Uma coisa é descriminalizar. Outra é dizer que isso evitaria novos abortos. Afinal, qual é a prognose? Mais: Isso deve ser realizado pelo Judiciário? Mais ainda: a submáxima da necessidade pressupõe que o meio correto a ser empregado seja aquele que protege determinado bem jurídico e interfere o menos possível em outro(s). Pois bem. Ainda que o Estado implemente políticas de educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo a mulheres (o que, repetindo, não cabe ao Judiciário avaliar), de que maneira tais medidas protegeriam o bem jurídico “vida” tutelado pela norma penal? Mesmo com tais políticas públicas, não haveria nenhum mecanismo jurídico para proteger a vida do nascituro. Passando a ser lícita a conduta, a vulnerabilidade do feto aumenta expressiva e inexoravelmente, já que o Direito nada mais tem a dizer sobre isso.[8]
Por fim, à submáxima da proporcionalidade em sentido estrito. Nessa submáxima é apresentada por Alexy a famosa lei do sopesamento (ou lei da ponderação) (Abwägungsgesetz), com a seguinte redação: “quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, maior deverá ser a importância da satisfação do outro”.[9] Conforme o voto-vista, o direito constitucional à vida se trata, ao fim e ao cabo, de uma questão de compensação. In verbis:
“[…] em relação à proporcionalidade em sentido estrito, é preciso verificar se as restrições aos direitos fundamentais das mulheres decorrentes da criminalização são ou não compensadas pela proteção à vida do feto.”
Ocorre que a ponderação do ministro Barroso já pressupõe que a criminalização do aborto protege insuficientemente os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, sua autonomia, integridade e a igualdade de gênero. Acrescenta que a criminalização gera “custos sociais para o sistema de saúde”, que “decorrem da necessidade de a mulher se submeter a procedimentos inseguros”.
A grande questão é: como o ministro Barroso verifica o peso do princípio de proteção à vida em relação ao da autonomia da gestante? Como se demonstra que o grau de não-satisfação de um princípio é proporcional ao da importância da satisfação do outro? Existiria um cálculo, uma fórmula pela qual possamos ter acesso a essa realidade a ele — ministro — tão evidente? Não se trataria, simplesmente, de um juízo ideológico-pessoal?
Veja-se: é claro que a mulher tem direitos sexuais e reprodutivos, bem como à autonomia, integridade física e psíquica e de ser tratada com igual consideração e respeito. Não é disso que se trata. Não se trata de uma ponderação do “direito ‘x’ versus o direito ‘y’”. É pressuposto básico de um Estado de Direito que este se encarregue da proteção da vida dos seus cidadãos. Esses direitos dos quais se levantam não abarcam a possibilidade do indivíduo (independentemente da sua sexualidade) retirar a vida de um terceiro. Como se diz popularmente, “a liberdade de ação de um termina quando começa a de outro”. E isso já sabemos desde que o liberalismo político estava engatinhando. Do contrário, deveríamos concluir, por coerência argumentativa, que através de argumentos principiológicos abstratos possam ser justificadas violações gravíssimas a bens jurídicos concretos e reais. Na verdade, por intermédio da lei do sopesamento, esconde-se a facticidade atrás da abstratalidade semântica de conceitos como “dignidade sexual”, “direitos reprodutivos” ou “autonomia”, que, por sua força simbólica, acabam, na prática, distorcendo a proteção constitucional a bens jurídicos indispensáveis a qualquer Estado de Direito, como o direito à vida. Aliás, o próprio Alexy refere, como uma das etapas da lei da ponderação, considerar o peso abstrato dos princípios (GPi,jA), o que foi sonegado na ponderação do Supremo.
De igual forma, o argumento utilitarista da geração de despesas e custos para o sistema de saúde, além de se basear um argumento de política (policies) que visam a maximização do bem-estar geral em detrimento dos direitos genuínos do indivíduo contra maiorias — trunfos (trumps), como diz Dworkin em seu Levando os Direitos a Sério —, faz com que o próprio Direito seja submetido à decisões baseadas em argumentos contingenciais, a depender das condições empíricas particulares, o que gerará inevitavelmente arbitrariedade. Não é por acaso que o critério de “três meses” estipulado no voto não é, em nenhum momento, justificado. Alguém poderia perguntar: sim, mas… e por que três e não seis? Ou sete? Esse é o trunfo que o Direito, enquanto norma, tem (ou deveria ter) frente a argumentos sociológicos ou empíricos. Aliás, sobre isso Mathias Jestaedt faz uma brilhante crítica ao Tribunal Constitucional alemão.[10] Afinal, determinado ato normativo é (ou não) constitucional porque sua disposição viola o texto constitucional, em sua dimensão formal ou material e não por meio de argumentos contigenciais; subjetivos, se quisermos ser mais claros.Estes (os argumentos) nada mais são do que modos em que a subjetividade ideológica do juiz encontra um resguardo para poder decidir conforme suas preferências pessoais. Por isso o apego a argumentos de política, como o “custo benefício” para o Estado, a dificuldade de acesso ao SUS ou simplesmente conceitos abstratos cujo conteúdo é preenchido livremente pelo intérprete. Ora, o Direito é, por definição, um mecanismo contrafactual. Ele opera no plano do dever-ser. É deontológico. Se assim não o fosse, não haveria qualquer sentido a noção de norma jurídica, pois sua normatividade ficaria submissa ao subjetivismo do juiz. No caso em discussão, ficou.
Numa palavra, a discussão acerca do modo com que se deve considerar a recepção do crime de aborto em face do direito fundamental à autonomia privada das mulheres pode ser questionado, mas devemos dispensar, inclusive por isso mesmo, toda a retórica da ponderação, se quisermos realmente levar a liberdade individual das mulheres a sério, já que princípios e direitos não são, enquanto normas obrigatórias, ponderáveis; bem como se quisermos enfrentar o problema de saúde pública ali envolvido ou daí decorrente. Inclusive hoje, para começo de conversa, de que modo garantir a possibilidade de aborto pelo SUS ou convênios suplementares, quando os atendimentos são tão demorados (já que o aborto só pode ser feito até três meses de gravidez)? Descriminalizando simplesmente os procedimentos até então “clandestinos” é que não parece ser a “solução” advinda de uma Suprema Corte. E, se fosse, isso deveria vir acompanhado de ampla prognose. Que, por certo, não é do âmbito de competência do Judiciário.
Não se invalida uma lei com argumentos de política; os julgamentos devem ser de princípio. Por isso, é desimportante aquilo que o juiz pensa ou acha pessoalmente acerca do conteúdo da lei. Cada um tem o seu papel na democracia.
Autores: Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados.
Rafael Giorgio Dalla Barba é advogado, mestrando em direito, membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.