Autora: Luciana Ferreira Bortolozo (*)
A globalização, impulsionada neste século pela internet, vem propiciando o frenético desenvolvimento cultural com a ampliação da comunicação entre culturas diversas e, consequentemente, a disseminação de conhecimentos, ideias e tradições culturais de uma maneira instantânea, jamais vista. No mesmo caminho, a cultura industrial extremamente capitalista patrocina a utilização, em larga escala, de bens culturais como mercadorias ou mesmo para fins de entretenimento.
Nesta seara é que comunidades menos favorecidas alegam apropriação de aspectos de suas culturas por grupos mais influentes, protestando que o valor do bem cultural apropriado é desvalorizado de forma significante, o que causaria prejuízos à comunidade detentora do bem.
Especialmente em nosso país, a identidade de cada brasileiro é marcada pela vasta diversidade cultural. O Brasil fora povoado por uma imensa variedade de etnias, de africanos a europeus, apresentando costumes, tradições, religiões, crenças, conhecimentos e técnicas extremamente multifacetadas e heterogêneas.
Não se pode olvidar que há recriação de patrimônio cultural ao longo do tempo, o qual passa constantemente por atualização ou mesmo modernização. Inclusive, neste sentido e na circunstância de recriação de patrimônio, grupos sociais que não os “proprietários” da bagagem cultural eventualmente se apropriam de bens culturais de grupos diversos como elementos de sua identidade.
Para a especialista no assunto Susan Scafidi, em seu livro “Who Owns Culture?” (2005), esse ato de “tirar” propriedade intelectual, expressões ou artefatos culturais, história e maneiras de conhecimento de uma cultura que não a sua é denominado como apropriação cultural.[1]
Ainda, no entendimento de Sturken e Cartwright (2005), para que exista apropriação de bens culturais, esta deve ter sido feita sem autorização do grupo a que pertence o elemento cultural. Para os autores, o termo apropriação é, em essência, “roubar”, é ainda o processo de “pegar emprestado” e alterar o significado de produtos culturais, slogans, imagens e elementos de moda[2].
De fato, a troca de experiências culturais existe desde que o mundo é mundo. No entanto, a problemática surge no momento em que indivíduos pertencentes a grupos sociais dominantes se utilizam de particularidades culturais de grupos menos favorecidos, sem que façam parte do grupo ou mesmo tenham qualquer entendimento sobre a cultura, ainda mais considerando que tal bem apropriado é, na maioria das vezes, sagrado para a comunidade e explorado, por outra, na moda, como entretenimento ou para fins comerciais.
É o caso de corporações que se utilizam de fatores culturais de comunidades tradicionais com fins comerciais, como a indústria da moda que muitas vezes se inspira em tendências baseadas em diferentes culturas encontradas ao longo do continente, tais como a indígena, folclórica, nordestina e de povos imigrantes, bem como agências de turismo, as quais fazem o uso não autorizado de expressões culturais, tais como danças e festas, para promoção de viagens.
Para Susan Scafidi (2005), alguns produtos culturais podem ser livremente compartilhados com o público em geral, contudo, alerta a possibilidade de desvalorização de certos bens quando apropriados, chamando a atenção, como exemplo, para a distinção entre o dano que poderia ser causado pela popularização da dança e ritmo caribenhos e a gravação sem autorização e distribuição de um canto sagrado nativo americano[3], sendo o último em maior proporção.
Verdade é que a linha entre apropriação cultural e utilização de elementos culturais com fins de inspiração e admiração é muito tênue e é aonde mora o debate.
As discussões nas mídias internacionais são avançadas, principalmente nos Estados Unidos. Já no Brasil, o tema está criando corpo e os debates online estão acalorados e, para que eventualmente sejam criadas leis específicas ou códigos sociais e morais de conduta, deve ser fomentada a discussão em nível nacional, fora das redes sociais.
Casos emblemáticos
Elvis Presley é apontado como apropriador das músicas, atitudes e movimentos de danças da cultura negra, assim como o rapper Eminem e diversos outros artistas.
No Brasil, a marca Osklen se envolveu em fortes críticas sociais quando comercializou uma camiseta com a palavra “Favela” como estampa, na medida em que seu público alvo é a classe média e alta e, consequentemente, seus consumidores não têm consciência da vida sofrida na favela, sendo que a venda e uso desse item é considerado desrespeitoso pelos moradores dessas comunidades.
Agências de turismo são comumente miras de ataque, pois se utilizam de imagens e elementos pertencentes ao frevo, que é uma forma de expressão musical, coreográfica e poética que surgiu no final do século XIX no Carnaval de Pernambuco e é considerado patrimônio histórico e artístico nacional, devidamente registrado no Livro de Registro das Formas de Expressão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional[4].
A revista de moda Vogue se deparou com sérios julgamentos ao escolher como tema de seu baile anual a cultura africana. Foi fortemente criticada, uma vez que modelos, artistas e designers, em sua maioria brancos, se vestiram com adereços inspirados na cultura da África, apropriando-se de acessórios tais como o turbante e até mesmo pinturas corporais. Os comentários de desaprovação incluíram ser o uso de fantasias inspiradas na moda africana um ato de desrespeito, haja vista que adereços africanos são elementos de “empoderamento” do povo negro.
É possível verificar inúmeras discussões em mídias sociais a respeito do turbante, um ornamento utilizado por várias culturas ao longo do globo, mas que também é considerado um símbolo de luta dos negros, atualmente utilizado nas capas de revistas, vestidos por modelos brancas de cabelos lisos.
No mesmo sentido, encontra-se a utilização de “dreadlocks” e tranças descendentes da cultura negra em cabelos que não de negros. Membros da cultura negra alegam que a apropriação desses elementos por brancos serviria tão somente como item de beleza, estilo e moda. Contudo, os referidos bens teriam o condão de reafirmar as vozes e identidade da cultura negra, considerados fortes símbolos de resistência, os quais carregam uma tremenda história de sofrimento, segregação e luta. Portanto, a apropriação cultural, nestes casos, diminuiria significativamente o valor dos bens, reforçando ainda o poder da cultura branca sobre a negra.
No mesmo diapasão está a utilização do cocar por indivíduos que não são membros da cultura indígena, pois também seria um elemento que carrega a história desse povo. O assunto é tão importante que alguns festivais americanos proibiram o uso de cocares indígenas nos eventos, basicamente pelo fato de que o adereço é símbolo religioso dos aborígenes, merecendo respeito e utilização consciente.
Inclusive, a ativista membro da “Cherokee Nation” e responsável pelo blog Native Appropriation[5], Adrianne Keene, explica que a utilização do adereço promove um estereótipo inadequado das culturas nativas, que há uma história de genocídio e colonialismo envolvida e, ainda, ressalta que o cocar é algo que deve ser recebido por merecimento e que possui profundo significado espiritual[6].
Como se vê, em virtude de ser um tema delicado ao colocar em jogo, de um lado, a eventual degradação de culturas populares e, de outro, o desenvolvimento cultural como um todo, o tema demanda a atenção da sociedade.
Argumentos pró e contra
Nas redes sociais e blogs muito se discute a respeito do tema.
Os argumentos explorados pelos defensores da necessidade de regulamentar o fenômeno da apropriação cultural englobam a história por detrás da cultura apropriada, tal como a escravidão e colonização, utilizando alegações no sentido de que a apropriação de elementos é realizada sem que haja conhecimento da nuances históricas dos bens, com consequente diminuição ou esvaziamento do significado do elemento cultural apropriado, além do fortalecimento da indústria cultural capitalista, vez em que os “apropriadores” lucram com a venda de objetos e aspectos culturais.
Por outro lado, argumentos não faltam pelos que são contra a existência de qualquer tipo de regulamentação do fenômeno da apropriação, na medida em que defendem o multiculturalismo e intercambio de culturas, que a troca de elementos culturais engrandece as sociedades, trazendo aprendizado de novos significados culturais e servem como inspiração e referência para industrias do comercio, o que demonstraria o enaltecimento da cultura.
Considerando que o fenômeno da apropriação engloba controvérsias acerca de assuntos extremamente delicados, tais como raças, crenças e valores culturais, as discussões podem se tornar ofensivas.
É necessário cautela ao avaliar se determinado acontecimento pode ou não ser caracterizado como apropriação cultural, sob pena de inversão de valores, pois praticamente tudo o que é vivenciado e se faz envolve algum tipo de elemento cultural “apropriado”, tal como aquela música que se ouve, o taco mexicano que se come e a saia indiana que se veste.
De rigor que seja banida a ideia de que a mera utilização de elementos culturais de uma cultura diversa será sempre prejudicial e negativa, sob pena de censura de ideias e criações. Não se pode generalizar e banalizar o fenômeno, sob pena de ser configurado o exagero em detrimento da evolução cultural de toda a nação.
O professor da Universidade de Columbia John McWhorter, em uma matéria para o New York Times[7], asseverou que “pegar emprestado” aspectos de outra cultura é da natureza humana, explicando que, através do estudo da história da humanidade, se conclui que quando grupos diferentes se uniram, eles se imitaram. Afirma, ainda, que as histórias da Europa, China ou Índia se tratam de apropriações culturais, tipicamente descritas com palavras e dinâmicas diversas.
A questão não é simples. Pelo contrário, é frágil e complicada, pois abrange a análise de diversas facetas, histórica e cultural, humana, econômica e jurídica. A partir daí, emergem alguns questionamentos:
No caso da utilização do Frevo pelas agências de turismo, será que haveria apropriação cultural ou se poderia dizer que o turismo colabora com a manutenção do sucesso da dança em Pernambuco?
Seria condenável, socialmente, a utilização de turbante por povos brancos? Seria uma gafe transformá-lo em um item de moda? A alegação de que é um elemento da cultura negra e a diminuição do significado e valor do bem em face da comercialização do acessório pela indústria da moda possui embasamento? Mesmo considerando que o referido bem cultural foi utilizado, além da África, no oriente médio e outras civilizações antigas, possuindo diversos significados ao longo do tempo?
Seria prática ofensiva a utilização de fantasias referentes à indígenas? A perpetuação, sem autorização, de práticas, conhecimentos e técnicas milenares e secretas de determinados povos violaria algum tipo de direito inerente à cultura?
Qual seria o limite permitido de apropriação de bens culturais, considerando a importância para a educação e o desenvolvimento da cultural da sociedade?
Em consulta à internet, é possível constatar a condenação, constante, de atos que, pelo menos neste momento, não são considerados como ilícitos pela legislação brasileira e, apesar de reconhecer a necessidade de regulamentação de aspectos jurídicos conectados à cultura de comunidades tradicionais, há certa dificuldade em adequar o fenômeno ao panorama jurídico brasileiro, sobretudo por que há embaraço em aferir a quem recairia eventuais direitos sobre o bem cultural apropriado, na medida em que, geralmente, o bem advém de culturas milenares, senão originais de outros países ou mesmo de uma fusão de culturas diversas, não sendo possível, por exemplo, a verificação da autoria.
De fato, nas palavras de Susan Scafidi (2005), produtos culturais, o folclore e o conhecimento tradicional são fundamentalmente resultado de uma autoria em grupo[8], sendo que maior problema de todos é como regular o acesso público a bens culturais de determinado grupo e quem deveria se beneficiar economicamente da distribuição desses bens.[9]
Fato é que o debate nacional deve ser fomentado e, antes da efetiva criação de marcos regulatórios específicos ou aperfeiçoamento de leis que possuam interface com a temática, seria interessante um debate fora das redes sociais para, quem sabe, a criação de uma cartilha ou manual de boas maneiras, pois a troca de experiências, com bom senso e sensibilidade, é inevitável e positiva à toda a sociedade.
Corroborando a assertiva, nas palavras do antropólogo Lévi Strauss, “Uma cultura não se desenvolve a não ser no contínuo e constante relacionamento com as demais, o que envolve todos os intercâmbios culturais.”. Verdade é que, como um povo culturalmente miscigenado, é necessário se colocar no lugar do outro, estar aberto ao diálogo, a ouvir, aceitar e respeitar as diferenças culturais.
Autora: Luciana Ferreira Bortolozo é graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2012). Advogada atuante nas áreas de Direito Digital, Eletrônico e Propriedade Intelectual no escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados.