Autor: Thiago Baldani Gomes De Filippo (*)
Em julgamento histórico, no dia 29 de novembro de 2016, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no bojo do Habeas Corpus 124.306-RJ, por maioria, entendeu que a interrupção voluntária da gravidez até o 3º mês de gestação é conduta atípica, não se configurando o crime de aborto.
Os argumentos que constam do voto-vista do Min. Luís Roberto Barroso fundamentam-se, basicamente, na tutela da autonomia sexual da mulher, na proteção de sua integridade física e psíquica, na promoção do princípio da igualdade e na atenção à máxima da proporcionalidade, com referências ao direito comparado, em especial ao Direito dos Estados Unidos[1].
Sem embargo, cremos que a decisão redundou em indevido ativismo, porque, no Brasil, parece não haver razões histórias para esse desfecho; tampouco aludida criminalização deve soar ilegítima, diante dos interesses jurídicos envolvidos e que se apresentam em rota de colisão. Passemos a analisar cada um desses prismas.
Historicamente, durante o período colonial, muito embora o aborto não tivesse sido criminalizado pelas Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), leis extravagantes exigiam proceder sumário no caso de “mulheres infamadas de fazer mover outras ou os médicos, cirurgiões ou boticários que dão remédio para este efeito com dolo mau”[2]. Além disso, uma provisão de dom Sebastião de 12.03.1603 acionava o regime de quadrilheiros, espécie de polícia de costumes, para que mulheres acusadas de fazer mover com beberages fossem denunciadas a juízes e corregedores[3]. Por óbvio, a criminalização do aborto se harmonizava aos interesse políticos da metrópole portuguesa de preencher os vazios demográficos da nova terra[4], além de se comprazer à doutrina católica de proteção à vida desde a concepção, dogma que, diferentemente de outras religiões, acompanhou o cristianismo desde a sua origem, de modo a equiparar o aborto ao homicídio, na medida em que o “feto, ser indefeso, dev[eria] ser protegido dos que pretend[essem] eliminá-lo”[5].
Após a independência, durante o período imperial, o Código Criminal de 1830 tipificou o aborto[6], mas, curiosamente, deixou de prever o crime de autoaborto, o que ocorreu somente com a entrada em vigor do Código Penal Republicano de 1890;[7] normas estas que se mantiveram fiéis até a entrada em vigor do Código Penal de 1940. Com isso, o diploma atual prevê o crime de autoaborto ou aborto consentido (artigo 124) e o aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante (artigo 125) ou com essa concordância (artigo 126). Em nenhuma hipótese existe a fixação de prazo para a realização das manobras abortivas. A menção à 12ª semana de gestação, que se confunde com os três meses indicados no voto do Min. Barroso, apenas constava da redação original do Anteprojeto do Código Penal (PL 236/2012), relativamente à inexistência de crime “se, por vontade da gestante até a 12ª semana de gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade”. Tratava-se de hipótese que, na prática, implicaria a absoluta descriminalização do aborto no início da gestação, que acabou por não prevalecer, após as diversas reuniões da comissão especial de senadores, presidida pelo senador Eunício Oliveira (PMDB-CE).[8]
Tão somente esse fato serviria para abalar a decisão do STF, porque serviu para atalhar as discussões legislativas. Porém, ainda mais sintomático, é a constatação de que nossas leis nunca condicionaram a licitude de abortos à fase da gravidez.Para traçarmos um paralelo, permitam-nos uma comparação com o Direito dos Estados Unidos, exemplo muito citado pelo voto-vista.
Ao contrário do Brasil, na época da colonização dos EUA, o entendimento prevalecente no ordenamento jurídico da metrópole inglesa redundava na possibilidade de serem criminalizados os abortos tão somente após a constatação visual da existência de movimentos fetais (the act of quickening)[9]. Antes dele, as interrupções das gestações não eram consideradas problemas do Estado, mas questões afetas apenas às mulheres e suas famílias, fortemente monitoradas pelas comunidades locais e associações religiosas.[10] A doutrina do quickening passou a ser largamente aplicada pelas cortes dos EUA no século XVII[11] e encampada sob o plano legislativo, ainda que não previssem qualquer punição às gestantes que praticassem a conduta, de modo que a primeira lei dos EUA a punir o autoaborto entrou em vigor no Estado de Nova Iorque, apenas no ano de 1845[12].
Com o passar do tempo, a doutrina do quickening sofreu abalos profundos, por conta do recrudescimento das 40 leis estaduais editadas entre 1860 e 1880, que criminalizavam o aborto em qualquer período da gravidez.[13] Quase 100 anos depois, o Código Penal Modelo (1962)[14] tipificou o aborto e previu três causas de justificação: (1) se, mediante diagnóstico médico, que a gravidez apresenta risco à vida ou à saúde da gestante; (2) se o feto é portador de uma anomalia irremediável; (3) se a gravidez resulta de estupro.[15] Em meio a profundas divergências entre estados liberais e conservadores, a Suprema Corte decidiu o célebre caso Roe w. Wade[16], assentando-se que o desenvolvimento fetal comporta estágios e a cada qual se destina proteção estatal diversa, conforme a evolução da gravidez. Assim, até o final do primeiro trimestre, as gestantes possuem o direito de optar pelo aborto, desde que haja acompanhamento médico, e esse direito não pode ser negado ou dificultado por leis estaduais. Desse ponto até o momento da chamada viabilidade de vida extrauterina, leis estaduais podem regular o procedimento do aborto, desde que essa regulamentação se relacione à saúde materna. Por fim, após esse marco, leis estaduais podem proibir o aborto, desde que excepcionem a prática para a preservação da vida ou da saúde da mulher. No ano de 1992, no julgamento de Planned Parenthood v. Casey[17], esses parâmetros rígidos dos trimestres foram substituídos pela ideia da viabilidade fetal.
Pois bem. A criminalização do autoaborto e do aborto consentido, ainda que ocorra em período gestacional inicial, não se mostra absolutamente ilegítima, porque o bem jurídico tutelado é a vida humana, cuja dignidade penal é evidente[18]. A justificativa de não ter se formado o sistema nervoso central no início da gravidez não rechaça o fato de haver vida independente no ventre materno, ainda que em processo de formação. Mesmo que se esteja diante de potencialidade de vida plena, a tutela da vida assenta seus alicerces sobre o postulado da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição), cuja intangibilidade autoriza a conclusão de que não há se falar em direitos humanos se não houve proteção ao seu direito mais básico, o direito à vida, pressuposto para o exercício de qualquer outro interesse ou pretensão.Aliás, se as mortes das gestantes que se submetem a procedimentos abortivos insalubres fosse o fundamento mais relevante para a atipicidade do autoaborto e do aborto consentido, esta descriminalização não deveria se jungir aos três primeiros meses, porque quanto mais avançada é a gravidez, maiores os riscos de sua interrupção. Obviamente, deve haver políticas públicas de conscientização e atendimento, que não obnubilam a legitimidade do tipo penal.
Com isso, os nascituros têm direitos ou, pelo menos, direito a ter direitos[19], o que implica no reconhecimento, como regra, da ilicitude das interrupções voluntárias de gestações. A possibilidade do exercício da tutela penal, ainda que se trate de vida intrauterina, decorre da essencialidade desse bem, de incontestável valor, que deve ser inviolável desde a sua origem. Conferir às gestantes o direito absoluto ao aborto, de modo a compreender que os fetos sejam simples partes de seu corpo, equivale a conferir-lhes o poder de vida e morte sobre terceiros[20], medida que se choca com qualquer sistema jurídico que deposite no ser humano a sua centralidade.
Por outro lado, não cremos que a discussão acerca da legitimidade dos tipos penais de autoaborto e de aborto consentido envolva o princípio da isonomia ou o princípio da laicidade do Estado. Quanto ao primeiro, as diferenças fisiológicas entre homem e mulher autorizam o discrimen[21]. No que se refere ao princípio da separação entre Estado e igreja, é certo que as maiores religiões ocidentais defendem a vida, o que não significa dizer que o Estado, ao tutelá-la, esteja adotando qualquer postura religiosa. É lógico que posturas governamentais contrárias ao aborto não podem fincar seus fundamentos em princípio religioso algum, mas em parâmetros eminentemente normativo, mas nada obsta que haja coincidência entre os valores tutelados pelo Estado e aqueles considerados sagrados pelas religiões. Aliás, é isto o que ocorre, por exemplo, quando o Direito protege valores caros ao cristianismo, ao tipificar os crimes de homicídio[22], furto[23], estelionato[24], falso testemunho[25] etc., que por questões ético-culturais acabam por se tornar juridicamente relevantes.
Evidentemente, como um contraponto ao direito de nascer dos nascituros, está o direito à liberdade de escolha da gestante, sua autonomia, direitos sexuais e reprodutivos. A liberdade também está intimamente ligada à dignidade humana, principalmente no que diz respeito à autonomia de cada qual para exercer sua vontade e desenvolver a sua personalidade, sem que exista interferência indevida do Estado ou de qualquer outra pessoa.
Portanto, em face da colisão entre vida e liberdade, aprioristicamente, deve prevalecer a primeira, reservando-se a prevalência da autonomia da mulher em hipóteses pontuais, relacionadas à interrupção de uma gravidez indesejada, não apenas por violação de sua dignidade sexual, como no caso de estupro (artigo 128, II, Código Penal), ou, mediante analogia in bonam partem, a partir do manejo de uma técnica de reprodução assistida não consentida. Além do mais, também não nos parece razoável prevalecer a vida do feto quando este padecer de uma enfermidade incompatível com a vida extrauterina, tal como a anencefalia[26] ou síndrome de Edwards e Potter, para citarmos alguns exemplos. Em tais casos, afasta-se, em princípio, a tipicidade penal, à luz da teoria da imputação objetiva, tal como desenvolvida por Roxin[27] posto ausente a característica da desaprovação do risco, considerada a ponderação entre interesse de proteção de bens jurídicos e interesse geral de liberdade[28]. Nesses casos, a incompatibilidade com a vida extrauterina autoriza a conclusão de que deve prevalecer a liberdade da gestante, afastando-se, portanto, o caráter da desaprovação do risco a que se pretende,conduzindo-se à atipicidade.
De todo o modo, trata-se de questões evidentemente polêmicas, intimamente vinculadas às ideologias, crenças e aspirações de cada qual, redundando na necessidade de uma discussão mais ampla possível, como condição para a alteração de tipos penais, incriminadores ou permissivos.
Autor: Thiago Baldani Gomes De Filippo é juiz de Direito da 2ª Vara Criminal, do Júri e da Infância e Juventude da Comarca de Assis. Mestre em Direito Comparado pela Samford University, Cumberland School of Law e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).