Poder público não burla precatórios com pagamento voluntário em arbitragem

Autores:  Marcelo Mazzola e Rafael Carvalho Rezende Oliveira (*)

 

Questão instigante e ainda não pacificada versa sobre a possibilidade de pagamento, por parte do Poder Público, de obrigação pecuniária decorrente de processo arbitral, sem a necessidade de precatório. Não temos a menor pretensão de exaurir o tema, mas apenas trazer reflexões para contribuir com o debate, à luz do atual mosaico normativo e de princípios que regem a matéria. Afinal, o direito é dinâmico e está em constante evolução.

Inicialmente, parece não haver dúvidas de que, quando o credor do Poder Público é obrigado a executar judicialmente a obrigação pecuniária fixada em sentença arbitral, o pagamento deve respeitar o sistema de precatórios previsto no art. 100 da Constituição Federal. D

a mesma forma, é tranquilo o entendimento de que não haverá necessidade de expedição de precatório ou de RPV (Requisição de Pequeno Valor), quando o ente integrante da Administração Pública for uma sociedade de economia mista ou uma empresa pública, uma vez que as referidas entidades administrativas são pessoas jurídicas de direito privado e estão excluídas da incidência do regime constitucional de pagamento de débitos, oriundos de sentenças judiciais transitadas em julgado desfavoráveis às pessoas de direito público.[1]

A controvérsia efetivamente se instala quando a discussão gira em torno da possibilidade (ou não) de o Poder Público, em decorrência de uma sentença arbitral,[2] realizar o pagamento de forma espontânea, sem a necessidade de precatório.

A doutrina se divide sobre o tema. Leonardo Carneiro da Cunha[3] e Leonardo Lício do Couto,[4] por exemplo, entendem que uma sentença arbitral que imponha uma condenação pecuniária ao Poder Público deve seguir a sistemática do precatório ou do RPV, à luz do artigo 100 da Carta Magna. Caso contrário, haveria uma burla ao sistema de pagamento previsto na Constituição, criando uma casta privilegiada de credores do Poder Público, o que violaria os princípios da isonomia, da impessoalidade e da moralidade.

Por outro lado, alguns doutrinadores entendem que não haveria a necessidade de expedição do precatório. Gustavo Shmidt, por exemplo, entende que, assim como o Poder Público está autorizado, pela via administrativa, a promover a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro de um contrato administrativo, pode reconhecer a dívida cristalizada em sentença arbitral e efetuar o pagamento de forma espontânea, dispensando a execução do título na esfera judicial, desde que haja “previsão na lei orçamentária anual, na linha do disposto no art. 167, II, da Constituição da República”.[5]

Na mesma linha, Adilson Abreu Dallari reconhece que, se houver interesse público, o pagamento pelo Poder Público pode ser feito de forma voluntária, exigindo-se o precatório apenas na hipótese em que houver recusa no adimplemento espontâneo.[6]

Por sua vez, Flavio Willemann entende que, via de regra, a sentença arbitral não poderá autorizar o pagamento imediato de valores sem a obediência ao procedimento do precatório judicial, mas, excepcionalmente, a obrigação pecuniária prevista na sentença arbitral poderá ser satisfeita sem a expedição de precatório judicial, “desde que exista previsão legal e contratual neste sentido, estabelecendo, inclusive, que os valores serão suportados por fundos públicos ou privados criados para esta finalidade – tal qual acontece com as PPPs – e/ou com a destinação específica de bens que serão afetados a esta finalidade (garantia real)”.[7]

Pois bem, assentados alguns posicionamentos doutrinários, cabe agora nos posicionar. De plano, adiantamos que não vemos qualquer ilegalidade ou violação ao texto constitucional no caso de pagamento espontâneo pelo Poder Público (obrigação pecuniária fixada em sentença arbitral), com a dispensa do precatório.[8]

Atualmente, há relativo consenso sobre a possibilidade de utilização da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis envolvendo a Administração Pública (art. 1º, § 1º, da Lei 9.307/96, dispositivo incluído pela Lei 13.129/15, c/c art. 3º, § 1º, do novo CPC).[9] Essa possibilidade, aliás, está em linha com a tendência do Direito Administrativo contemporâneo de valorizar a consensualidade das atividades administrativas, de estimular os métodos alternativos de resolução de conflitos (art. 3º, §§ 2º e 3º, do novo CPC) e, de certa forma, criar condições mais atraentes para o investimento privado na área pública.[10]

Para tanto, é condição sine qua non que o ente público possua dotação orçamentária disponível para efetuar o pagamento do valor imposto na sentença arbitral. Caso contrário, caberá à parte vencedora executar a sentença arbitral, considerada título executivo, perante o órgão jurisdicional competente.

Não é novidade o fato de a Administração Pública realizar pagamentos sem a necessidade de precatório. Como se sabe, o Poder Público pode celebrar acordos (desapropriação, por exemplo), reconhecer dívidas e efetuar outros pagamentos devidos sem a necessidade de submissão à regra constitucional do precatório.

E não se diga que esses pagamentos seriam apenas em situações envolvendo autocomposição administrativa. Mesmo em hipóteses de heterocomposição de conflitos levadas a efeito por órgãos não judiciários, o pagamento espontâneo do montante devido dispensa a necessidade de precatório, tal como ocorre, por exemplo, no cumprimento das decisões provenientes dos órgãos e entidades administrativas.

A arbitragem também é considerada um método de heterocomposição de conflitos, já que o árbitro, terceiro e imparcial, por convenção privada das partes envolvidas, decide o conflito, sem a interferência do Estado-juiz.[11]

Nesse sentido, o pagamento imediato da importância devida, com recursos provenientes de dotação orçamentária específica para atendimento da respectiva sentença arbitral, não prejudica os beneficiários de precatórios, pois a dotação orçamentária destinada ao pagamento de precatórios não será afetada.

Por outro lado, entendemos que o artigo 100 da Carta Magna não materializa óbice ao pagamento voluntário pelo Poder Público dos valores fixados em sentenças arbitrais. O dispositivo constitucional fala em “sentença judiciária”. A expressão merece reflexão.

Depois de alguma controvérsia inicial sobre a natureza jurídica da arbitragem, tem prevalecido o seu caráter jurisdicional (art. 42 do novo CPC). Com efeito, há muito o exercício da jurisdição deixou de ser monopólio da atividade estatal.[12]

Ainda que a sentença arbitral seja um título executivo judicial (arts. 31 da Lei 9.307/96 e 515, VII, do novo CPC), isso não significa possa ser classificada como uma “sentença judiciária” proferida por um juiz togado integrante do Poder Judiciário. A equiparação como título executivo judicial decorre de mera opção legislativa, sendo, na verdade, uma forma de facilitar a execução da sentença arbitral e, assim, incrementar o uso da arbitragem, dispensando a necessidade de homologação judicial da sentença arbitral para sua execução, tal como constava no art. 1.041 do CPC/1939.

Não se pode, de forma automática, equiparar os sistemas, trazendo a reboque a imposição constitucional do precatório, apenas pelo fato de a sentença arbitral também ser classificada como título executivo. Nesse ponto, vale lembrar que muitos institutos, procedimentos e regras do processo judicial não se aplicam ao procedimento arbitral, como, por exemplo, a remessa necessária (na arbitragem o julgamento é de instância única, sem previsão de recurso, na forma do art. 18 da Lei 9.307/96), os prazos processuais diferenciados da Fazenda Pública, as isenções de taxas e emolumentos, as disposições específicas sobre os honorários sucumbenciais, sem falar na inexistência de vinculação dos árbitros ao Conselho Nacional de Justiça, entre outros.

Da mesma forma, muitas regras da arbitragem não têm aplicabilidade no processo judicial (escolha do julgador, existência de prazo fixado em lei para a prolação da sentença, possibilidade de julgamento por equidade em casos que não envolvam a Administração, etc.). Além disso, vale lembrar que o árbitro – que somente será considerado agente público para fins penais (art. 17 da Lei 9.307/96) – não goza das prerrogativas inerentes aos juízes togados e sua nomeação independe de concurso público.

Sob outro prima, o afastamento da regra do precatório no cumprimento espontâneo da sentença arbitral não coloca em risco o princípio da impessoalidade ou da igualdade que norteia a regra prevista no art. 100 da Constituição Federal. Isso porque, a própria forma arbitral de solução de controvérsias decorre diretamente da lei e, nas relações contratuais, deve ser considerada pelos interessados que participam da licitação pública. Vale dizer: todos os interessados em celebrar contratos com a Administração Pública têm ciência prévia da possibilidade de utilização da arbitragem para solução de eventuais controvérsias oriundas da avença e receberão tratamento igualitário no processo licitatório ou no processo simplificado para contratação direta.

Registre-se, ainda, que, na área pública, algumas sentenças arbitrais condenatórias não exigem a expedição do precatório. É o que dispõe, por exemplo, o art. 11 do Decreto 8.465/2015: “Em caso de sentenças arbitrais condenatórias que envolvam questões relacionadas às receitas patrimoniais e tarifárias da autoridade portuária, os créditos e as obrigações correspondentes serão atribuídos diretamente à autoridade portuária”. Nessa hipótese, quando a administração portuária for exercida por empresa estatal, dotada de personalidade jurídica própria e submetida ao regime jurídico de direito privado – como é o caso da Companhia Docas de São Paulo (Codesp)[13] e da Companhia Docas do Rio de Janeiro (CDRJ) –, não incide o art. 100 da Constituição.[14]

Igualmente, nos casos em que as pessoas jurídicas de direito público instituírem fundos com o objetivo de garantir os pagamentos de suas obrigações contratuais, o precatório será afastado e o credor privado direcionará sua pretensão ao fundo, e não à pessoa de direito público. É o que ocorre, por exemplo, com o Fundo Garantidor de Parceria Público-Privada (FGP), previsto no art. 16 da Lei 11.079/04, considerado sujeito de direito e de natureza privada, cuja finalidade é garantir os pagamentos assumidos pelo Parceiro Público (Poder Concedente) em relação ao parceiro privado (concessionária) nas Parcerias Público-Privadas (PPPs).[15]

Em resumo, exigir que o cumprimento das sentenças arbitrais seja judicializado, com a execução forçada do título executivo e a expedição do precatório, atenta contra a própria finalidade da arbitragem (pensada como método adequado de resolução de conflitos) e viola o princípio da razoabilidade (art. 8º do novo CPC). Sob a ótica do princípio da eficiência e da análise econômica do direito, a referida exigência representa verdadeiro desestímulo à utilização desse meio alternativo, não acompanhando a tendência de desjudicialização dos conflitos e de racionalização da prestação jurisdicional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Autores:  Marcelo Mazzola é advogado e sócio do escritório Dannemann Siemsen, mestrando em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordenador da Comissão de Mediação da OAB-RJ. Também é perito judicial e mediador na CMED-ABPI e no CBMA.

 Rafael Carvalho Rezende Oliveira é advogado, árbitro e sócio fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados. É professor de Direito Administrativo do IBMEC, da Emerj e do Curso Forum, de cursos de pós-graduação da FGV e Cândido Mendes, pós-doutor pela Fordham University School of Law (Nova York), doutor em Direito pela UVA-RJ, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ, especialista em Direito do Estado pela Uerj e membro do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro.


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