Autora: Damares Medina (*)
Em 2007, ao julgar o mandado de injunção sobre a greve no serviço público e oferecer uma sentença de caráter aditivo, o STF ultrapassou uma linha divisória que o transformou em um tribunal político, mais preocupado em resolver as grandes questões do pais. O fato é rememorado por Moreira Alves, em rara entrevista, de 2011, na qual ele via um tribunal diferente daquele que integrara. Para o ministro, “o problema é saber se a Constituição outorga esse poder ou se ele foi criado pelo tribunal. Se foi criado pelo tribunal, é uma tendência. E sendo uma tendência da grande maioria, ela deve ser seguida, até porque há uma modificação na orientação da Corte”[1].
Em 2016, o STF e suas decisões avançaram a passos largos na tendência antevista por Moreira Alves. Algumas decisões se destacaram: a possibilidade de execução da pena após condenação em segunda instância (HC 126.292 e ADC 43 e 44)[2]; a suspensão da posse de Lula como ministro chefe da Casa Civil (MS 34.070 e 34.071); a suspensão do mandato de Eduardo Cunha (AC 4.070); o tráfico privilegiado deixou de ser considerado crime hediondo (HC 118.533); o aborto até o 3 mês de gestação foi descriminalizado (HC 124.306); Renan Calheiros foi liminarmente afastado da presidência do Senado e depois apenas da linha sucessória da presidência da República (ADPF 402)[3]; o Projeto de Lei de Iniciativa Popular sobre as 10 medidas de combate à corrupção voltou à Câmara dos Deputados para reiniciar o seu trâmite (MS 34530)[4].
Nessa hermenêutica aberta dos princípios constitucionais, tendemos a aplaudir as decisões que vão ao encontro de nossas preferências ideológicas e criticar aquelas que as contrariam, mas todas integram o perfil ativista de um tribunal que cria e recria a Constituição, à sua imagem e semelhança.
As decisões possuem fios condutores: atestam a criatividade dos ministros em oferecer interpretações inovadoras da Constituição e expõem a falta de coesão interna. Esse ambiente decisório dá margem ao surgimento crescente de decisões discrepantes sobre temas semelhantes[5] e à perda da força cogente do precedente constitucional, com o seu consequente descumprimento.
O quadro de instabilidade decisória e de insubordinação jurisprudencial intra corporis serve de desestímulo para a adoção de uma cultura de precedentes externa corporis. O alicerce da jurisprudência fundada em precedentes constitucionais vem sendo corroído já no âmbito do STF, em um decisionismo casuísta retroalimenta a sobrecarga processual da corte, que é cada vez mais instada a se pronunciar de novo sobre temas que já decidiu.
Nesse peculiar contexto, buscamos suporte em alguns dos modelos de análise do comportamento judicial oferecidos pela literatura, para observar o tribunal sob múltiplos enfoques: a perspectiva legal (legal model), a atitudinal (atitudinal model), a estratégica (rational choice) e o modelo do novo institucionalismo (new institutionalism).
Em uma perspectiva normativo-legal, a alteração que mais impactou o Supremo de 2016 entrou em vigor em maio de 2015: a Emenda Constitucional 88, que aumentou de 70 para 75 anos o limite de idade para a aposentadoria compulsória. Sem o advento da EC 88/15, a composição do STF de hoje seria outra, já que os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio completariam 70 e seriam compelidos a deixar o tribunal, aquele ainda em novembro de 2015 e este em junho de 2016.
A ideia de prolongar o tempo dos ministros na corte vinha atrelada ao fato de que o partido da Presidente da República (PT) havia indicado 8 dos 11 ministros do STF. Havia o receio de que a aposentadoria compulsória de mais dois ministros desse origem a um tribunal fortemente alinhado com os interesses de um dos poderes da República, no caso o Executivo, que acabaria responsável pela indicação de 10 dos 11 ministros do STF[6].
Ao que tudo indica, tal receio não se confirmou. O modelo de escolha[7] e a garantia de vitaliciedade dos ministros são elementos que podem ter contribuído para o alto grau de independência do STF. Os votos contrários dos ministros recém indicados pela presidente Dilma Rousseff, nos processos que impugnaram o impeachment, são um dos sinais dessa independência[8].
O modelo atitudinal coloca em voga as orientações ideológicas do juiz e como elas influenciam as suas decisões. Tal prisma assume ênfase em cortes que adotam o modelo per curiam de pronunciamento, no qual o tribunal emite uma única decisão.
No Brasil, adotamos um modo seriatim de entrega da prestação jurisdicional, no qual cada ministro emite o seu voto publicamente, transmitido inclusive pela TV Justiça, fazendo com que a ideologia e preferências políticas de cada julgador possam ser mais explicitamente identificáveis. Além desse aspecto, há uma intensa interlocução entre os ministros e as partes dos processos em tramitação na corte, em audiências unilaterais[9], especialmente com representantes de entes públicos. Por fim, é usual que ministros do STF participem de uma grande gama de eventos e de toda sorte de entrevistas[10].
É em razão desse ambiente que nos parece simplista a crítica que se faz ao modelo seriatim, como se fosse ele o responsável por suposta fragmentação da força emanada pelos precedentes do STF. De pouco adiantaria a adoção de um modelo per curiam, ou o fim da transmissão ao vivo das sessões do pleno pela TV Justiça, se os ministros continuassem a expressar publicamente (fora da Corte e dos autos, em diversos meios de comunicação) suas opiniões acerca dos colegas[11] ou dos processos submetidos à Corte[12].
A intensificação dessa postura em 2016, levou o ministro Teori Zavascki a “manifestar profundo desconforto pessoal” com o que ele chamou de fenômeno banalizado e generalizado, no qual “juízes, em desacordo com a norma expressa da Lei Orgânica da Magistratura, tecem comentários públicos sobre decisões de outros juízes sobre processos em curso”. Para ele “infelizmente, esse é um fenômeno que não depõe a favor da instituição”[13].
Sob a perspectiva estratégica, que destaca a posição que o juiz ocupa no contexto institucional no qual são proferidas as suas decisões, em 2016 tivemos dois importantes acontecimentos: o atípico deslocamento da presidência do STF para a presidência do processo de impeachment da Presidente da República, em tramitação no Senado Federal, e a mudança na presidência do STF, em setembro, com a posse da ministra Cármen Lúcia, em sucessão ao ministro Ricardo Lewandowski.
No primeiro mês sob a presidência da ministra Cármen Lúcia, assistimos a um giro jurisprudencial no STF, em três importantes julgamentos: 1) o ministro Gilmar Mendes concede medida liminar para suspender todos os processos que tratem da ultratividade das normas de acordos e convenções trabalhistas (ADPF 323); 2) o STF nega o direito de desaposentação, ao contribuinte do Regime Geral de Previdência Social (RE 381.367; RE 661.256 e RE 827.833); e 3) o STF determina o corte dos dias parados dos servidores grevistas (RE 693.456).
Em conjunto, essas decisões representaram um profundo alinhamento do tribunal com o governo que sucedeu a presidente impedida, alinhamento esse que se seguiu em julgados posteriores do tribunal, expondo um STF que passou a condicionar a constitucionalidade à governabilidade do país.
O modelo do novo institucionalismo enfatiza a pressão de outros atores, inclusive da opinião pública, no processo decisório da Suprema Corte. Nessa perspectiva podemos inferir profundas mudanças no papel do STF no sistema judiciário brasileiro.
Além da reação do STF em face do descumprimento, pelo presidente do Senado, à liminar concedida na ADPF 402, em 2016, nossa mais alta Corte viu-se atraída pela força gravitacional do foro de Curitiba.
Ao contrário da AP 470 (o chamado mensalão), durante a qual os olhos da nação se voltaram para o STF, sob a presidência do então ministro Joaquim Barbosa, na “lava jato”, todas as atenções voltam-se para o juiz Sérgio Moro, que tem sob a sua batuta a regência de um sensibilíssimo concerto. Essa inversão de papéis[14] — cujo protagonismo migra do STF e do procurador-geral da República para um juiz federal e procuradores que integram a força-tarefa da “lava-jato” — foi possibilitada por uma mudança no desenho institucional: o desmembramento dos processos nos casos em que algum corréu não detêm prerrogativa de foro no STF (o contrário do que ocorreu na AP 470).
Um dos mais emblemáticos exemplos da reatividade do STF é a resposta do tribunal à publicização de áudios de interceptação telefônica (inclusive conversas gravadas com detentores de prerrogativa de foro) e de acordos de delação premiada. Ora os ministros do STF decidem com fundamento em escutas telefônicas publicizadas e emitem desagravos, ora falam na nulificação de delações em razão de sua publicização. O traço comum dessa postura suprema é a sensação de que o tribunal está a reboque dos atos do juízo da persecução penal.
Em conclusão, desde 2012 a agenda da sociedade brasileira tem sido tomada pelo combate à corrupção. Ao contrário dos países desenvolvidos, nos quais os debates político e social giram em torno de uma pauta de valores, dos impactos da inovação, das mudanças demográficas e tecnológicas na sociedade, no Brasil temos nos ocupado com seguidos escândalos de corrupção, instabilidade institucional, inflação, déficit fiscal e instabilidade macroeconômica. Ao invés da agenda nacional se ocupar com o futuro que queremos, ela é voltada para os erros do passado.
Nesse adverso contexto, quando salientamos, ainda em março de 2016, que o STF tinha a sua frente uma pauta desafiadora[15], não imaginávamos a grandeza dos desafios que o tribunal enfrentaria.
Na imensidão de processos que foram decididos em 2016, vimos que o tribunal avançou na produção de sentenças aditivas, oferecendo inovadoras interpretações às mais diversas e complexas questões constitucionais que lhe foram colocadas, intensificando uma tendência ativista inaugurada ainda em 2007.
No STF de 2016, assistimos a um quadro de instabilidade decisória, de falta de coesão interna e de insubordinação jurisprudencial que servem de desestímulo para a adoção de uma cultura de precedentes.
Observamos uma mudança qualitativa na visibilidade do tribunal perante a sociedade. Se à época do julgamento da AP 470 as disputas se davam internamente, em acalorados embates no plenário do STF, no ano em que a “lava jato” deflagrou 18 fases, as disputas do STF migraram para as manchetes de jornais.
Resta-nos perquirir acerca das motivações dos ministros do STF ao exporem publicamente suas opiniões e críticas em relação aos processos e aos colegas que os julgam.
A perda da centralidade do STF em um julgamento das dimensões e da amplitude da “lava jato”, cujo protagonismo passou a ser exercido pela primeira instância, restando ao Supremo um papel de coadjuvância reativa, é uma das respostas possíveis para esse novo grau de exposição dos ministros da Corte.
Por fim, é certo que a Constituição Federal de 1988 outorgou ao STF a sua guarda, e não a governabilidade do país. Logo, esperamos que nos próximos anos o tribunal possa alcançar o equilíbrio na aplicação de sua hermenêutica aberta dos princípios constitucionais, sem se afastar do único código válido para legitimar suas decisões: a constitucionalidade.
Autora: Damares Medina é advogada, doutora em Direito, professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e coordenadora de pesquisa do Instituto Constituição Aberta (ICONS).