Autor: Carlos Alberto Marques Soares (*)
Ao examinarmos o tema, urge que façamos breves considerações preliminares sobre alguns aspectos sociológicos que envolvem a violência, a impunidade e seus efeitos.
Robert Andrey, externando sua análise evolucionista aplicada à Antropologia, denominou a época contemporânea, perfeitamente aplicável aos nossos dias, de A Idade do Álibi (O Contrato Social).
Constituía no dizer do autor “uma filosofia que, durante décadas, nos induz a acreditar que as faltas humanas sempre devem ser atribuídas a alguma outra pessoa que a responsabilidade por comportamentos prejudiciais à sociedade deve invariavelmente ser atribuída à própria sociedade; que os seres humanos nascem não apenas perfectíveis, mas idênticos, de maneira que quaisquer divergência desagradável deve ser o produto de um meio desagradável (…)” Tal filosofia preparou, em todo seu esplendor, a virtuosa justificação própria de minorias violentas e, do mesmo modo, preparou com mão delicada a culpa e o espanto da vítima.
Ingressando no mito romântico jacobino, que veio trazer consigo uma característica controversa, pois ao mesmo tempo em que se dizia revolucionário era pacifista, progressista e anticientífica, protetor do criminoso e humanista, condenador da ordem social e adorador do sangue, pregando as delícias do amor livre, mas exaltando a violência terrorística e anárquica.
Freud argumentava que a agressividade é fruto da “repressão”, provocada pelo detestável superego, que representa o imperativo moral da autoridade paterna.
Jean-Jacques Rousseau, em seu álibi, nos dizia que ninguém é culpado, a culpa é do outro. A culpa é exógena, é fruto desagradável da repressão, das circunstâncias, das estruturas, da instituição, da propriedade, da ideia de lucro, da economia de mercado, do dinheiro ou de um Estado tirano e corrupto. O homem é bom, em suma. Eu sou bom. Péssimo é quem assim me fez, quem me criou, quem me educou, quem me formou, me deu consciência e responsabilidade moral. O homem está alienado. Foi a civilização que me desnaturalizou. Minhas más ações não resultam de um eu autêntico, mas de um eu que foi reformado, por uma “falsa consciência”, fabricada por uma sociedade a qual, ela sim, é responsável pelos defeitos, imperfeições e transgressões porventura manifestados ou perpetrados.
Essa Era, ou Idade do Álibi como chamavam, abre lugar para outro fato social que seria no dizer dos mestres A Idade da Permissividade.
Platão já previa o problema que, ultrapassada a permissividade, emergiríamos, fatalmente, no despotismo. Disse o sábio que quando a cidade se corrompe, de nada adiantam as muralhas: os portões ficam abertos e os bárbaros se precipitam ao assalto.
O que temos visto nas grandes cidades, especialmente nas capitais, não teria certa semelhança com a sentença platônica?
A criminalidade tomando conta dos grandes centros e os cidadãos de bem, amedrontados, refugiam-se em suas casa guarnecidas de cercas elétricas, portões de aço, circuitos internos de tv, carros blindados, etc…
Nos sistemas democráticos, a justiça é a função primária do Estado. Assim sendo, ela vem de cima. Ela deverá ser imposta pelos governantes que eles próprios haverão de ser justos e deverão, pois, ser os primeiros a respeitarem as leis e, em consequência, os primeiros a sofrerem exemplar punição quando transgredirem as supremas regras da ética e das leis.
Quando no vértice da pirâmide social reina a impunidade, estende-se o desmando e a corrupção progressivamente para baixo, em contagiosa avalanche.
A nosso entender a onda de violência, reinante na atualidade, está diretamente relacionada com os maus exemplos de impunidade nos mais elevados escalões. Dizem os mestres que o que ali é preguiça mental, inépcia, apatia administrativa, covardia, roubo descarado dos cofres públicos, junto ao povo, é assalto, sequestro, trombadinhas, arrastões, corrupção da polícia e o caos urbano.
O legalismo estabelecido pelo due process que serviu para tornar a sociedade americana exemplar tem causado, a meu sentir, em países em crescimento como o nosso, chancela para a impunidade.
E muitos se escudam no que mencionamos acima como sendo a filosofia da Idade do Álibi, buscando justificar suas condutas antissociais e delituosas, culpando, pura e simplesmente, a sociedade, os poderes constituídos, seus pais, seus patrões ou chefes ou seus vizinhos. A mídia sempre destacou tais assertivas.
Inegavelmente, o sistema prisional brasileiro, apesar de melhor que nas décadas passadas, ainda está muito longe de atingir os objetivos maiores da sociedade, de regenerar os reclusos e devolvê-los à sociedade sadia, aptos a reintegrá-la como homens de bem.
A eficiência policial que, melhorou a vista d’olhos, luta para afastar de seus quadros os agentes corruptos e desviados de caráter e ética.
Para onde vão esses homens que receberam do Estado um treinamento policial, tático e de combate ao crime? Seriam eles presas fáceis para o recrutamento pelo crime organizado que tem suas células até no interior dos muros das prisões, onde de lá comandam sequestros, assaltos e outros crimes de natureza hedionda.
No âmbito das Forças Armadas a situação é extremamente preocupante por diversos motivos, especialmente, o de que não temos presídios militares federais.
O militar federal ao delinquir é julgado de modo bem rápido, o que não ocorre nos julgamentos criminais nas justiças comum, estadual ou federal.
Acontece, que a nossa Justiça especializada, na atualidade, tem se mostrado extremamente rígida e suas decisões impõem, por consequência legal, a imediata exclusão do militar das fileiras do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Em muitas ocasiões, e contrariando preceito legal, as praças sub judice são excluídas antes mesmo do trânsito em julgado e, absurdamente, antes do cumprimento da sanção aplicada.
Para alguns, a meu sentir equivocadamente, a pena tem a finalidade de “servir de exemplo à tropa”. O que deve servir de exemplo é a resposta do Estado-Juiz, sempre célere e justa, em retribuindo à conduta antissocial do agente, com uma sanção proporcional que vise recuperar o apenado, reconduzindo-o à sociedade sadia.
Nas Forças Armadas temos um efetivo aproximado de 310 mil homens (200 mil Exército, 55 mil Marinha e 55 mil Aeronáutica)
Anualmente, o Exército tem em seus quadros um efetivo variável incorporado de aproximadamente sessenta mil homens, enquanto que nas outras Forças mais de 10 mil.
Esses homens são na sua maioria conscritos, jovens que se incorporam às Forças Armadas, sendo que alguns buscam seguir a carreira militar, através de engajamentos sucessivos até atingir a estabilidade. Em sua grande maioria, após o término do serviço militar obrigatório, retornam à sociedade civil.
Evidente, que entre esses militares, pouquíssimos vêm a cometer delitos, já que as transgressões disciplinares são aplicadas interna corporis.
Desses, e dos militares profissionais, podemos afirmar que quando cometem algum delito têm a pronta resposta do Judiciário castrense, entretanto, com relação às praças não estáveis, na maioria das vezes, são excluídas das fileiras do Exército precipitadamente ou durante a instrução criminal e, certamente, após o trânsito em julgado da condenação em primeira instância.
Como não temos presídios militares, nossos réus condenados à prisão, sem a suspensão condicional da pena, são conduzidos às prisões civis e, muitas vezes, em condenação por crimes propriamente militares.
Entendemos que seria imprescindível e urgente a criação de presídios militares federais em todos os Estados brasileiros, especialmente naqueles em que tenham auditorias militares.
Com isso, evitaríamos lançar os nossos condenados, especialmente os jovens conscritos, ao inadequado convívio carcerário, ao invés de darmos um tratamento sócioeducativo e laborativo ao militar condenado.
Após o cumprimento da pena, aí sim, devolveríamos o ex-militar à sociedade, possivelmente recuperado.
Como consequência, estaríamos afastando-o do assédio do crime organizado que, por certo, tem ávidos propósitos de recrutá-lo, como também os policiais civis ou militares que já têm preparo profissional no manuseio de armas e custeado pelo Estado.
A mídia tem, a todo instante, divulgado significativo equívoco ao informar que a polícia teria apreendido com bandidos armas das “Forças Armadas”.
Entretanto, não são armas pertencentes às Forças Armadas e sim armas privativas das Forças Armadas, em face do calibre e tipo de armamento. Pois, as mesmas são adquiridas no “mercado negro” ou por meio de contrabando.
Os índices, pelo menos no Exército, são baixos, desde de 1998 até 2006, porque tivemos 156 armas roubadas, furtadas ou extraviadas e dessas foram recuperadas 95.
No interior dos quartéis, a presença de elementos militares que possam ter ligação com o crime organizado é ínfimo, ou quase nenhum, e disso decorre da circunstância que os oficiais, especialmente os comandantes, estão sempre atentos às condutas dos subordinados, no interior das unidades, bem como na vida civil e familiar.
Além do supracitado cuidado, vige entre os próprios colegas um alerta constante acerca da conduta dos camaradas, o que tem desestimulado a investida do crime organizado no assédio aos militares, oficiais ou praças.
Urge destacar, entretanto, que a baixa remuneração dos militares das Forças Armadas impõe que não só as praças, mas também oficiais, venham residir em locais periféricos das grandes cidades e até em favelas, possibilitando que traficantes os pressionem com ameaças, pondo em risco não só a sua integridade física como, também, a de seus familiares.
Como vimos, a meu sentir, o ponto mais preocupante tem sido na pronta expulsão do militar delinquente, sem que haja efetiva busca de recuperação do mesmo, o que deveria ocorrer através de acompanhamento por parte de um Juiz de Execução Penal Militar, do Ministério Público e de psicólogos militares.
O militar ao ser condenado e sinta que o Estado, através dos Comandos Militares, o está apenas descartando da vida castrense, sem sequer oferecer-lhe a oportunidade de recuperação, torna-se um revoltado, potencial desempregado e recruta fácil para o crime.
O renomado sociólogo Helio Jaguaribe, num de seus livros, sentenciou que a “potencialidade do criminoso ou do crime organizado é proporcional à fragilidade do oprimido ou da vítima”.
Entendemos com essa sentença que não é o caso dos cidadãos de bem se armarem e enfrentarem a bandidagem. Isso é papel do Estado, este sim deverá desestimular o delinquente, traficante ou não, posto que terá a resposta pronta, eficiente e, de preferência, com potencial bélico e tático superior.
Precisamos refletir e repelir a chamada Idade do Álibi e assumirmos as nossas responsabilidades, buscando melhorar a nossa sociedade e desestimulando o aumento da criminalidade, especialmente a do crime organizado.
Inquestionável para mim é que esse trabalho haverá de ser de todos nós, especialmente dentro de nossas casas com os nossos filhos, nas escolas, dando-lhes educação e sentido de cidadania.
Devemos deixar de eleger políticos corruptos e voltados para o interesse pessoal em detrimento do coletivo.
Von Thünen, analisando em 1875 a expressão “Capital Humano”, dizia que, durante as guerras, as grandes preocupações eram em proteger os equipamentos, os canhões, porque uma perda de canhão era irreparável, pois não haveria tempo de produzir novos. Assim, sacrificam-se vidas em benefício dos canhões. A percepção dele era a seguinte: valoriza-se mais o equipamento do que o capital humano, porque este era fácil de repor, na mentalidade do estrategista, enquanto que o capital físico era difícil.
Trazendo essa análise para os dias de hoje, em nosso país que, graças a Deus não convivemos com guerras, podemos afirmar que cada chefe de família que venha perecer nos grandes centros urbanos face à desmedida ação de criminosos, partícipes em especial do crime organizado, traz à sociedade não só o prejuízo da perda de uma vida, mas, especialmente, o embrião de uma sociedade em que a família e a educação são a sua base.
Pergunto, quanto o Estado não terá que investir na formação ética, moral, profissional para repor essa vida ceifada que representa o efetivo capital humano?
Hoje, com o progresso industrial e a informatização, temos, certamente, de investir no homem e, somente ao priorizarmos o capital humano teremos capacidade de enfrentar o assédio do crime organizado, sem, contudo, deixarmos de aprimorar a capacidade policial no combate à criminalidade.
Victor Hugo já dizia: “Cada escola que se abre é uma prisão que se fecha”.
Entendo que não é bem assim, mas podemos transformar essa sentença em algo mais concreto, ou seja: Para cada homem que o Estado educa, forma e dá emprego, haveremos de ter um núcleo ao seu redor que, por certo, estará afastado da delinquência e do crime organizado.
O papel que as Forças Armadas tem, na nossa sociedade pacífica, está muito além da formação militar para a defesa do nosso território e soberania.
Formamos homens, pautados pelos respeito às leis, ao seu semelhante, sob a égide da disciplina e hierarquia e da conduta ética, daí o bloqueio natural à infiltração do crime organizado em seu meio e, disso decorre a lógica de que o nosso jurisdicionado militar delínque muito pouco e, por consequência, a Justiça Militar da União tem poucos processos.
Afirmo, sem hesitar: “O dia que tivermos as prateleiras repletas de processos na Justiça Militar, o diagnóstico certamente será aterrorizador”.
Gostaria de, ao concluir trazendo a minha modesta opinião em tema tão árido, citar a seguinte sentença que nos sirva de constante alerta:
“A democracia deve se prevenir contra dois perigos extremos: A falta de liberdade que conduz à tirania, e o excesso de liberdade que conduz à anarquia”. (Deoclécio Lima de Siqueira in “Caminhada com Eduardo Gomes”).
Autor: Carlos Alberto Marques Soares é ministro civil aposentado do Superior Tribunal Militar, ex-presidente da Corte 2009/2011. Advogado, consultor e palestrante.