Autor: Filipe Coutinho da Silveira (*)
Desde 1998 vige no Brasil a Lei dos Crimes Ambientais — Lei Ordinária 9.605 — que regulamentou, por meio do artigo 3º, a responsabilidade penal da pessoa jurídica. A partir de então, tem se tornado cada vez mais frequente a preocupação dos departamentos jurídicos de corporações empresariais em fixar estratégias de atuação em matéria penal, campo este outrora desconhecido no mundo empresarial.
Especialmente nos casos das grandes multinacionais é bastante comum perceber o enorme desconforto em reuniões em que tópicos de matéria criminal-ambiental estejam em pauta. Em uma ponta, fica evidente a preocupação sobre a possibilidade de aplicação da pena de prisão; em outra, o inconformismo de ver um executivo com atuação no sudeste ser processado criminalmente por um fato ocorrido no norte do país, onde sequer possui atuação específica; e por fim, nada causa maior consternação do que a dificuldade de solucionar os conflitos existentes por meio de soluções reparadoras. Explico.
No Brasil, a constatação de inconsistência legal-ambiental provavelmente resultará em três procedimentos distintos para averiguação do mesmo fato, quais sejam: administrativo, criminal e cível, sendo que cada um desses procedimentos será presidido por uma autoridade pública diferente, observando-se as suas competências de atuação.
Os problemas residem nos casos em que a empresa ou empresário têm o interesse em resolver pacificamente os conflitos, pois, muitas vezes, em nome do princípio da independência de instâncias, a aceitação das cláusulas e condições de termos de ajuste de conduta oriundos da administração indireta não será, necessariamente, aproveitada ou considerada no caso das formulações das propostas dos institutos despenalizadores, como suspensão condicional do processo e transação penal, previstos na legislação criminal.
Há casos, ainda, em que a própria autoridade ambiental federal discorda dos termos propostos pela autoridade ambiental estadual ou municipal e, também, as situações em que o Ministério Público não aprova os termos e condições apresentados pelas autoridades ambientais administrativas (federal, estadual e municipal) e, assim, promove suas próprias condições ou ajuíza as ações judiciais que entende pertinentes.
Nesse emaranhado de situações, é comum que os departamentos jurídicos dos grupos empresariais indaguem: sendo o mesmo fato, o acordo celebrado na ação penal não extingue o procedimento administrativo? E o acordo celebrado no âmbito administrativo não ilide a propositura de ação penal? E se o Ministério Público entender que o acordo administrativo é insuficiente, ele não poderá ajuizar ação civil pública?
A princípio a resposta para tais questionamentos sempre será negativa, pois, as instâncias penal e administrativa são independentes, sendo que a única vinculação admitida ocorre quando, na seara criminal, restar provada a inexistência do fato ou a negativa de autoria. De igual forma, não se poderia, sob pena de limitar a atuação funcional, impedir que o Ministério Público promova eventuais procedimentos necessários caso verifique, por exemplo, que o Termo de Ajuste de Conduta celebrado no âmbito administrativo esteja aquém do esperado considerando-se a gravidade do dano ambiental produzido.
Por conta desse cenário, as estratégias de atuação mais comuns adotadas na defesa dos interesses daqueles que sofrem a persecução penal estatal está fundamentalmente relacionada à atividade do contencioso jurídico, baseada nos seguintes elementos: (a) imprecisão da lei 9605/98 e dos conceitos jurídicos nela existentes; (b) morosidade do judiciário; (c) problemas de construção de prova, seja para definição de autoria, seja para definição de materialidade; e (d) nulidades processuais. Na grande maioria dos casos, a solução consensual ficaria relegada a um segundo plano.
Todavia, em 8 de novembro de 2016 ocorreu, no Superior Tribunal de Justiça, o julgamento do Recurso Especial 1.524.466/SC, o qual constituiu importante precedente para um novo olhar sobre a administração da justiça e para definição de uma possível nova estratégia para solução dos conflitos criminais-ambientais.
O referido julgamento analisou a seguinte situação fática: uma empresa foi autuada por descumprimento da lei ambiental. Em decorrência disso, instaurou-se processo administrativo próprio e foi encaminhada ao Ministério Público Federal representação para fins penais que, por seu turno, foi utilizada como elemento informativo para a propositura da ação penal competente. Posteriormente, a empresa autuada celebrou com a autoridade ambiental Termo de Ajuste de Conduta e, na sequência, com base no referido TAC a empresa aceitou a proposta apresentada pelo Parquet nos autos da ação penal-ambiental para aceitação dos institutos despenalizadores (transação penal) previstos na legislação de regência.
Observe-se, portanto, que o Termo de Ajuste de Conduta celebrado no âmbito administrativo e a proposta de transação penal apresentada pelo Ministério Público Federal foram elaboradas de forma a se complementarem, resolvendo integralmente as questões ambientais objeto da controvérsia, especialmente, o que diz respeito à reparação do dano ambiental. De igual forma, a expressa menção das cláusulas e condições do Termo de Ajuste de Conduta na sentença de homologação da proposta de transação penal revelou, ainda, que o acordo extrajudicial celebrado entre a administração pública e o particular foi validado pelo Poder Judiciário local.
Apesar disso, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), discordando das cláusulas e condições do Termo de Ajuste de Conduta, sob o argumento de que as previsões lá existentes não estariam a proteger e a reparar adequadamente o meio-ambiente, ajuizou Ação Civil Pública com o objetivo de, entre outros, anular o TAC que havia sido celebrado.
Durante 12 anos a questão tramitou no Poder Judiciário Brasileiro. Em primeira e segunda instância a Ação Civil Pública foi provida tendo sido determinada a anulação do Termo de Ajuste de Conduta. No Superior Tribunal de Justiça, o acórdão de segunda instância foi reformado sob o seguinte argumento: o termo de ajuste de conduta celebrado entre a primeira autoridade ambiental administrativa e a empresa acusada foi validado pela transação penal realizada em sede de ação penal pública movida pelo Ministério Público Federal. Dessa forma, a ação civil pública movida pelo Ibama, a qual versa dos mesmos fatos, não possui justa causa para seu processamento, razão pela qual sequer poderia ter sido emitido juízo de procedibilidade da Ação Civil Pública, haja vista que a querela já havia sido pacificada pelo Direito Penal Reparador.
No voto vencedor, ficou assentado que:
“24. Ao que se vê, a legislação brasileira segue uma tendência mundial para a ideologia efetivista, que, desapegada de formalismos estéreis, prestigia a solução de mérito das questões em tempo mais breve possível.
(…)
27. Efetivamente, em virtude da ineficiência da pena de prisão, que, em não raros casos, apenas estigmatiza o indivíduo como inimigo público, introduz-se a figura da composição do dano em matéria penal, que, por meio do acordo, soluciona a mácula aos bens juridicamente tutelados por meio da não prisão, sem necessidade das insondáveis fases processuais, desde o ajuizamento da lide penal até seu módulo executório propriamente dito.
28. Na esfera ambiental, o tópico da composição do dano em sede penal ganha relevo, pois, pelo caráter difuso das condutas lesivas (a poluição ambiental a todos prejudica de alguma maneira), revela-se ainda mais necessária a efetiva reparação das áreas degradadas como forma de pronta solução dos conflitos.
30. Assim dispostos os fatos, verifica-se que, havendo solução integral da demanda ambiental a partir do Direito Penal Reparador, por meio de ato perfeito e acabado – representado pelo instituto da Transação Penal da Lei 9.099/1995, personificação exata da segunda velocidade do Direito Penal – não há justa causa para o ajuizamento de Ação Civil Pública, porquanto, ao que se vê, está completamente esvaziada a pretensão do IBAMA em desconstituir o TAC (…)”
O reconhecimento, portanto, da solução da controvérsia ambiental por meio do Direito Penal Reparador, esvaziando as pretensões perseguidas pela Ação Civil Pública, a ponto de se reconhecer sua completa ausência de justa causa, impedindo, assim, a emissão de juízo positivo de procedibilidade do referido instrumento jurídico, proporciona a abertura de uma nova forma de atuação nos casos criminais-ambientais. Isto é, a busca pela solução consensual e não litigiosa passa a ter um novo significado, na medida em que suas consequências impedirão a ocorrência de novas ações, ainda que de instâncias diversas, garantindo-se, assim, maior segurança jurídica nas decisões sobre aceitação das propostas de solução não litigiosas, máxime, os institutos despenalizadores previstos na legislação de regência.
Por fim, o registro negativo do precedente constituído no julgamento do Recurso Especial 1.524.466/SC, julgado pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, está no fato de que, muito embora tenha-se reconhecido a ausência de justa causa para a Ação Civil Pública, mesmo após mais de 12 anos de tramitação processual, a parte vencida não foi condenada ao pagamento de honorários advocatícios, o que, em última instância, serve como estímulo ao excessivo ajuizamento de demandas perante o Poder Judiciário brasileiro, contribuindo para o seu conhecido congestionamento.
Autor: Filipe Coutinho da Silveira é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados e pós graduado em Ciências Criminais pela Universidade Federal do Pará (UFPA).