Autores: Jessé Torres Pereira Junior e Thaís Boia Marçal (*)
Tornar operante o modelo republicano de boa governança traduz-se em implementar práticas administrativas e institucionais probas, que concretizem o princípio da moralidade como fundamento e corolário ético de planejamento público e privado, a promover o desenvolvimento, que há de ser sustentável – em sua tríplice dimensão social, econômica e ambiental –, eficiente – na equação custo-benefício – e eficaz – na consecução dos planejados resultados de interesse público.
A Lei 12.846/2013 trata da responsabilidade objetiva, administrativa e civil, das pessoas jurídicas por atos lesivos à Administração Pública nacional ou estrangeira, bem como a respeito da responsabilização individual de dirigentes ou administradores das pessoas jurídicas infratoras e de qualquer pessoa que tenha relação com o ato ilícito praticado. Inspiraram-lhe a edição compromissos internacionais a que aderiu o Brasil, notadamente:
- Convention on Combating Bribery of Foreign Public Officials in International Business Transactions, da OCDE, de 1997. Aprovada pelo Congresso Nacional, em 14 de junho de 2000, e promulgada pelo Decreto 3.678, de 30 de novembro de 2000;
- American Convention Against Corruption, da OEA, de 1996. Aprovada pelo Congresso Nacional, em 25 de junho de 2002, e promulgada pelo Decreto 4.410, de 7 de outubro de 2002;
- Convention Against Corruption, da ONU, de 2003. Assinada pelo Brasil, em 9 de dezembro de 2003, e promulgada pelo Decreto 5.687, de 31 de janeiro de 2006.
Os negócios contratados pelo estado constituem sede de direitos e obrigações particularmente sensíveis aos valores da probidade e da boa-fé. Os contratos administrativos de compras, obras e serviços apresentam peculiaridades sempre carentes de proteção em face do interesse público que almejam satisfazer. Desde a Lei Geral das Licitações e Contratações Públicas (8.666/93) que, presente, desde que apurada em processo regular, culpa do particular contratado, o estado contratante é titular da prerrogativa de impor as penalidades previstas em seu art. 87: I – advertência; II – multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato; III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos; IV – declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
O inciso IV, do mencionado artigo 87, da Lei 8.666/1993 trata das condições necessárias para a reabilitação do particular, estabelecendo que esta não será admitida enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição. Em cenário em que a inidoneidade decorreu da prática de atos de falta grave, que poderiam ter sido evitados pela implantação de um programa de compliance, conclui-se que, enquanto tal programa não for implantado, a empresa permanece inidônea e não pode participar de licitação, nem contratar com o poder público. Ou seja, a aplicação da vetusta Lei 8.666/93 há de contar com interpretação que a harmonize, nesse ponto, com a Lei 12.846/13.
O compliance apresenta índole normativa, baseada na legalidade, nos princípios que presidem a Administração Pública brasileira, nos valores éticos e na formação cultural dos integrantes da pessoa jurídica destinatária. Pressupõe procedimentos, bem como a processualização de regras e princípios, exigentes de estruturas operacionais mais densas para a implantação de modelos de vigilância e de investigação privada de ilícitos, além de efetivar sua apuração e punição interna através das estruturas implantadas.
Essa modelagem normativa deve preceder a qualquer outra que se possa pretender inserir no terreno da vigilância, apuração e repressão interna de ilícitos, como medidas de controle e acesso à privacidade das pessoas, incluindo análise de perfil das figuras elencadas na Lei 12.846/13 e o funcionamento de agente operacional efetivo, o compliance officer.
Estabelecem-se limites e procedimentos à inteligência investigatória e à pretensão punitiva privada em face de sujeitos, assegurada à empresa a necessária margem de cooperação com as autoridades públicas. Diversos são os precedentes da Controladoria Geral da União (CGU) em que a probidade foi ressaltada ao se declarar inidônea empresa em que o sócio praticou ato de improbidade.
As pessoas jurídicas devem ser responsabilizadas por ambientes ineficientes, opacos e/ou por organizações defeituosas, imperioso o cumprimento, entre outras exigências: (i) das obrigações antissuborno e de probidade; (ii) de regras de governança ligadas à probidade empresarial, sempre com vistas a cumprir as diretrizes do sistema de compliance brasileiro e internacional.
Programas de compliance não são criaturas da operação “lava jato”, iniciada apenas em março de 2014, ou seja, quase quinze anos depois do primeiro dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil nessa área. Mas ilustra que não basta a punição da sociedade empresária por práticas ímprobas. É preciso compelir que a sua estrutura organizacional interna seja realinhada, a fim de atender a princípios éticos e com respeito à legislação pátria, de modo a que a função social da empresa seja efetivamente cumprida e venha a ensejar a reabilitação, mesmo que haja sido declarada inidônea.
Como sintetizado em edição especial da Revista do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro (60, março de 2015, p. 5), “Para efetivar-se no Brasil, essa nova cultura corporativa terá de superar alguns pontos polêmicos. Quais seriam os limites de uma investigação interna? Ainda persistem dúvidas sobre o direito de invadir e-mails, investigar contas-salário, grampear telefones ou mesmo interrogar funcionários suspeitos… a palavra delação tem, no Brasil, uma carga negativa… que as democracias mais modernas já superaram… Um controle interno mais rigoroso e esquematizado, especificamente nas grandes empresas do setor privado, em suma apresenta desafios que, sob vários aspectos, são muito brasileiros. Atuar como organização ética é muito mais do que cumprir as regras: significa erradicar a cultura de tolerância”.
Autores: Jessé Torres Pereira Junior é desembargador e professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.
Thaís Boia Marçal é advogada e mestranda em Direito da Cidade pela UERJ. Especialista em Direito Público pela UCAM. Pós-graduada em Direito pela EMERJ.