Normas consumeristas prevalecem sobre a Medida Provisória 764/2016

Autor: Vitor Guglinski (*)

 

No apagar das luzes de 2016, o presidente Michel Temer editou a Medida Provisória 764, cujo conteúdo autoriza que os fornecedores de produtos e serviços estabeleçam diferenciação de preços conforme a forma de pagamento a ser utilizada pelo consumidor (dinheiro, cheque, cartão de crédito etc.).

Consta do artigo 1º da referida MP que “fica autorizada a diferenciação de preços de bens e serviços oferecidos ao público, em função do prazo ou do instrumento de pagamento utilizado”.

Na sequência, o parágrafo único do dispositivo estabelece que “é nula a cláusula contratual, estabelecida no âmbito de arranjos de pagamento ou de outros acordos para prestação de serviço de pagamento, que proíba ou restrinja a diferenciação de preços facultada no caput”.

Pois bem, a nosso juízo, a norma em comento não poderia ser mais absurda, eis que, de forma expressa, permite ao fornecedor que infrinja normas protetivas do consumidor inscritas no CDC, além de contrariar outros instrumentos normativos e a jurisprudência consolidada nos tribunais pátrios a respeito da matéria.

De início, destaque-se que Constituição Federal de 1988, em seu Título II, Capítulo I, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais e dos direitos e deveres individuais e coletivos, respectivamente, prescreveu que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (artigo 5º, XXXII), tendo disciplinado, posteriormente, no artigo 48 do ADCT que “o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.

Cumprindo a determinação constitucional, 180 dias após sua publicação, o codex consumerista (Lei 8.078/90) entrou em vigor, dispondo já em seu artigo 1º que “o presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias”.

Numa análise preliminar, é possível observar, então, que a própria Carta Magna conferiu status constitucional aos direitos do consumidor, ao determinar a promoção de sua defesa, na forma da lei (destaquei). Daí dizer-se que o CDC possui vocação constitucional.

Pois bem.

Ainda em âmbito constitucional, o artigo 62 da CRFB/88 autoriza o presidente da República a adotar medidas provisórias, com força de lei, em casos de relevância e urgência, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

Surge, então, questionamento de índole constitucional a respeito da matéria: quais são a urgência e relevância a justificarem a edição da malsinada MP? Ora, flagrantemente nenhuma! José Levi Mello do Amaral Júnior destaca que “é próprio da decretação de urgência não ter âmbito temático pré-definido ou tê-lo definido de modo negativo (pela exclusão de determinadas matérias do seu campo material). Isso porque se destina a dar respostas a situações que escapam à previsibilidade — independentemente da matéria — e que exigem solução urgente” (Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo, Saraiva/Almedina, 2013, p. 1152).

Passando-se à órbita infraconstitucional, a norma também ostenta absurdos jurídicos, especialmente por estabelecer vantagem excessiva para o fornecedor e permitir o aumento injustificado de preços, ao passo que o artigo 39 do CDC disciplina exatamente o contrário em seus incisos V e X. Além disso, como se observa, prevê a nulidade de cláusula contratual que objetive proibir ou restringir a diferenciação de preços facultada ao fornecedor.

A proibição de diferenciação de preços no fornecimento de produtos e serviços é tema relativamente pacificado no ordenamento jurídico nacional. Veja-se que, além das proibições constantes do CDC, há mais de 20 anos o Ministério da Fazenda, por meio da Portaria 118/1994, estabeleceu a proibição de diferenciação de preços entre transações efetuadas com uso do cartão de crédito e as que são em cheque ou dinheiro. No mesmo sentido, há pouco mais de 12 anos o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) emitiu a Nota Técnica 103/2004.

Além das disposições do CDC, da Portaria 118/1994 do Ministério da Fazenda e a Nota Técnica 103/2004 do DPDC, Flávio Tartuce registra que a prática também afronta o disposto no artigo 36, parágrafo 3º, letra d, inciso X, da Lei 12.529/11, que, entre outras disposições, estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, estando expressamente vedada a discriminação dos adquirentes por meio de fixação diferenciada de preços (disponível em: http://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/417311155/breves-comentarios-sobre-a-mp-764-que-trata-de-precos-diferenciados-de-acordo-com-a-forma-de-pagamento. Acesso em 5/1/2017).

Ou seja, há muito é considerada abusiva — e, por isso, vedada — a prática comercial que tenha por escopo diferenciar valores conforme a forma de pagamento escolhida pelo consumidor no momento da compra.

Em defesa da flexibilidade de preços, os fornecedores alegam que, no caso de pagamento por meio de cheque, estão expostos à inadimplência do consumidor, já que existe o risco deste não possuir fundos em sua conta bancária no momento da apresentação da cártula. Argumentam, ainda, que a diferenciação se justificaria nos casos envolvendo pagamentos por meio de cheque pós-datado (ou pré-datado, como preferem alguns). Já nos casos envolvendo pagamento com cartão de crédito, tentam justificar a diferenciação de preços pelo fato de suportarem custos operacionais junto às administradoras de cartões.

Não há dúvidas de que a admissão de diversas modalidades de pagamento é fato que potencializa as vendas do fornecedor. Todavia, não se pode olvidar que esse sujeito da relação de consumo atua assumindo os riscos do empreendimento, sendo certo que, entre os vários riscos assumidos pelo empresário, está incluída eventual inadimplência por parte do cliente, nos casos envolvendo pagamento por meio de cheques, e também as despesas com a estrutura necessária às operações com cartões de crédito, as quais, a propósito, são atuarialmente incluídas no preço final dos produtos e serviços.

Quanto ao pagamento por meio de cartão de crédito, no âmbito do STJ, o ministro Humberto Martins, no julgamento do REsp 1.479.039/MG, bem sintetizou o motivo da proibição de se diferenciar preços, registrando que “o pagamento por cartão de crédito é modalidade de pagamento à vista, pro soluto, implicando, automaticamente, extinção da obrigação do consumidor perante o fornecedor”. Ou seja, nos pagamentos envolvendo cartões de crédito, salvos os casos envolvendo eventual chargeback[1], o risco de inadimplência é zero para o fornecedor.

A respeito da nulidade de cláusula contratual que objetive proibir ou restringir a diferenciação de preços facultada ao fornecedor, anote-se que tal previsão afronta o disposto no artigo 47 do CDC, o qual determina que “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”. Bem assim, considerando-se que a discussão envolve relação de consumo, sempre que essa ocorrer, aplicáveis serão as normas do código consumerista. A esse respeito, destaque-se a lição de Sérgio Cavalieri Filho, para quem o CDC revela-se como uma “sobre-estrutura jurídica multidisciplinar, aplicável em toda área do direito onde ocorrer uma relação de consumo” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998). O mesmo autor esclarece melhor a questão, da seguinte forma:

“Alguns autores preferem falar em minissistema. Não deixa de ser um minissistema, mas prefiro falar em sobre-estrutura jurídica, porque ‘mini’ dá ideia de pequeno, e que é excluído do grande. Atualmente, já se diz que é um minissistema que circula em torno do grande. Essa ideia já se aproxima daquela que me parece a mais correta, de que o Código do Consumidor estabeleceu uma sobre-estrutura jurídica, aquilo que o Direito Francês chama de normas de sobredireito, algo que pode ser aplicado sempre que ocorrerem relações de consumo, quer no direito público, quer no direito privado, quer no direito material, quer no direito processual. Aproveitando a estrutura já existente em todas as áreas do Direito, a ela o CDC sobrepôs os seus princípios e cláusulas gerais destinados a proteger o consumidor” (Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista20/revista20_100.pdf. Acesso em 5/1/2017).

Sendo assim, tem-se mais um argumento para que a MP 764/16 não seja aplicada, fazendo com que prevaleçam as regras do CDC em casos tais, dada a vulnerabilidade do consumidor.

Como dito no início do texto, além de violar as disposições do CDC, a MP em tela também está em desafino com a jurisprudência formada em nossos tribunais, especialmente a do STJ, podendo-se citar os seguintes julgados:

“CONSUMIDOR E ADMINISTRATIVO. AUTUAÇÃO PELO PROCON. LOJISTAS. DESCONTO PARA PAGAMENTO EM DINHEIRO OU CHEQUE EM DETRIMENTO DO PAGAMENTO EM CARTÃO DE CRÉDITO. PRÁTICA ABUSIVA. CARTÃO DE CRÉDITO. MODALIDADE DE PAGAMENTO À VISTA. ‘PRO SOLUTO’. DESCABIDA QUALQUER DIFERENCIAÇÃO. DIVERGÊNCIA INCOGNOSCÍVEL. 1. O recurso especial insurge-se contra acórdão estadual que negou provimento a pedido da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte no sentido de que o Procon/MG se abstenha de autuar ou aplicar qualquer penalidade aos lojistas pelo fato de não estenderem aos consumidores que pagam em cartão de crédito os descontos eventualmente oferecidos em operações comerciais de bens ou serviços pagos em dinheiro ou cheque. 2. Não há confusão entre as distintas relações jurídicas havidas entre (i) a instituição financeira (emissora) e o titular do cartão de crédito (consumidor); (ii) titular do cartão de crédito (consumidor) e o estabelecimento comercial credenciado (fornecedor); e (iii) a instituição financeira (emissora e, eventualmente, administradora do cartão de crédito) e o estabelecimento comercial credenciado (fornecedor). 3. O estabelecimento comercial credenciado tem a garantia do pagamento efetuado pelo consumidor por meio de cartão de credito, pois a administradora assume inteiramente a responsabilidade pelos riscos creditícios, incluindo possíveis fraudes. 4. O pagamento em cartão de crédito, uma vez autorizada a transação, libera o consumidor de qualquer obrigação perante o fornecedor, pois este dará ao consumidor total quitação. Assim, o pagamento por cartão de crédito é modalidade de pagamento à vista, pro soluto, implicando, automaticamente, extinção da obrigação do consumidor perante o fornecedor. 5. A diferenciação entre o pagamento em dinheiro, cheque ou cartão de crédito caracteriza prática abusiva no mercado de consumo, nociva ao equilíbrio contratual. Exegese do art. 39, V e X, do CDC: ‘Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (…) V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; (…) X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”. 6. O art. 51 do CDC traz um rol meramente exemplificativo de cláusulas abusivas, num ‘conceito aberto’ que permite o enquadramento de outras abusividades que atentem contra o equilíbrio entre as partes no contrato de consumo, de modo a preservar a boa-fé e a proteção do consumidor. 7. A Lei n. 12.529/2011, que reformula o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, considera infração à ordem econômica, a despeito da existência de culpa ou de ocorrência de efeitos nocivos, a discriminação de adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços mediante imposição diferenciada de preços, bem como a recusa à venda de bens ou à prestação de serviços em condições de pagamento corriqueiras na prática comercial (art. 36, X e XI). Recurso especial da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte conhecido e improvido” (STJ, REsp 1479039/MG, rel. ministro Humberto Martins, 2ª Turma, DJe 16/10/2015).

“RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA VISANDO À ANULAÇÃO DE AUTOS DE INFRAÇÃO LAVRADOS POR PROCON MUNICIPAL ANTE O RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO AO DIREITO DO CONSUMIDOR PELA PRÁTICA DE PREÇOS DIFERENCIADOS PARA VÁRIAS ESPÉCIES DE PAGAMENTO À VISTA: DINHEIRO, CHEQUE OU CARTÃO, DO MESMO PRODUTO. PRÁTICA ABUSIVA. CONFIGURADA. PRECEDENTES DO STJ: RESP 1.479.039/MG, REL. MIN. HUMBERTO MARTINS, DJE 16.10.2015 E RESP 1.133.410/RS, REL. MIN. MASSAMI UYEDA, DJE 7.4.2010. RECURSO ESPECIAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. 1. A diferenciação de preço na mercadoria ou serviço para diferentes formas de pagamento à vista: dinheiro, cheque ou cartão de crédito caracteriza prática abusiva no mercado de consumo, nociva ao equilíbrio contratual e ofende o art. 39, V e X da Lei 8.078/90. 2. Manutenção das autuações administrativas realizadas pelo PROCON do Municipal de Vitória/ES em face da referida prática abusiva do comerciante Recorrente em seu estabelecimento. 3. Precedentes de outras Turmas deste Tribunal Superior (REsp. 1.479.039/MG, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, DJe 16.10.2015 e REsp. 1.133.410/RS, Rel. Min. MASSAMI UYEDA, DJe 7.4.2010). 4. Recurso Especial do comerciante ao qual se nega provimento” (STJ, REsp 1610813/ES, rel. ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, DJe 26/8/2016).

Finalizando, cabe lembrar que, a teor do previsto no artigo 7º do CDC, os direitos previstos no código “não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade” e, como visto, a MP 764 contraria, veementemente, não só as normas inscritas no CDC, mas também outras de semelhante teor, plasmadas em outros instrumentos normativos, bem como a jurisprudência.

Há quem defenda que o mercado deve se autorregular e, por isso, o Estado não deveria intervir nesse tipo de relação. Contudo, ousamos discordar, uma vez que a defesa do consumidor é um dos princípios fundantes da ordem econômica, conforme etiquetado no artigo 170, V, da CRFB/88, sendo que, de seu turno, a MP 764 estatui verdadeira defesa do fornecedor — parte não vulnerável numa relação de consumo.

 

 

 

 

Autor: Vitor Guglinski é advogado, especialista em Direito do Consumidor. Foi assessor do juiz da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora-MG (2006-2010).

 


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