Lei complementar 157/2016 limita autonomia de municípios

Autora: Betina Treiger Grupenmacher (*)

 

Além da inconstitucionalidade da incidência de ISS sobre streaming, sobre a qual já tivemos oportunidade de nos manifestar anteriormente [1], a recém publicada Lei complementar 157/2016 que alterou a LC 116/03, veicula outros tantos atropelos ao texto constitucional, ao mitigar a competência tributária plena dos municípios, no que concerne à instituição do ISS.

Uma das novas regras introduzidas pela LC 157/2016 é a fixação da alíquota mínima para o ISS em 2%, tal disposição apenas sedimentou o preceito antes veiculado pela Emenda Constitucional 37/02, que estabeleceu tal limitação de forma provisória até que lei complementar disciplinasse o disposto nos incisos I e III do § 3º do artigo 156 da Constituição Federal. Em razão de tal norma de transição, os municípios já vinham observando tal limitação desde a promulgação da referida EC, ou pelo menos deveriam fazê-lo.

Pensamos que os municípios são, no sistema brasileiro, entes federativos e federados, o que significa que integram o pacto federativo e, nessa linha de entendimento, a adoção de práticas concorrenciais em relação à cobrança de tributos, com a concessão de isenções ou redução da carga tributária, pode representar risco ao pacto federativo.

É verdade que impor uma alíquota mínima de ISS a ser observada, agride o princípio da autonomia municipal, no entanto, o que ocorre, concretamente, nesse preciso caso, é uma antinomia, um conflito aparente entre os princípios federativo e o da autonomia municipal, hipótese em que, segundo avaliamos, há de prevalecer o princípio federativo, o que nos permite concluir que a limitação em questão não está em confronto com o texto constitucional.

Para justificar tal raciocínio é necessário contextualizar a introdução de tal regra no ordenamento jurídico, a fim de que fique demostrado que a providência se mostrou necessária em face das fartas hipóteses em que vários municípios, antes da edição da EC 37/02, reduziam fortemente a carga tributária de ISS, com vistas a atrair empresas prestadoras de serviços para seus territórios. Tais condutas formam responsáveis, em um determinado período histórico, por acirrada guerra fiscal entre os Municípios, o que instaurou, em um determinado período histórico, acirrada guerra fiscal entre eles, e diante da ausência de uma regra constitucional semelhante àquela aplicável aos Estados — como é o caso do disposto no artigo 155, inciso XII, “g” da Constituição Federal —, tendente a prevenir a beligerância entre eles, concluímos que era, de fato, necessária a fixação de uma alíquota mínima para o ISS.

Pensamos, no entanto, que tal hipótese se aplica apenas às situações em que os municípios instituem concretamente o ISS, o que não significa que, nessas mesmas situações, não possam estabelecer benefícios, desde que demonstrem que as renúncias foram consideradas nas estimativas de receita orçamentária e que não afetarão a meta de resultados, indicando ainda como os respectivos montantes serão compensados, nos estritos termos do que prevê o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) [2].

Partindo de tal premissa, importa ressaltar que as inovações introduzidas pela LC 157/2016 vão muito além de fixar a alíquota mínima, vedam ainda, de forma absoluta, a concessão de incentivos e benefícios fiscais em relação ao ISS, considerando, inclusive, ato de improbidade administrativa as ações da administração fazendária tendentes a “conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário” [3], acarretando, inclusive, perda da função pública e suspensão de direitos políticos pelo prazo de cinco a oito anos e multa de até três vezes o valor do benefício financeiro ou tributário. [4]

Não há dúvidas de que o legislador complementar buscou dar plena efetividade às medidas implementadas, apenando rigorosamente aqueles que descumprirem as novas regras por ele criadas, no entanto cremos que algumas de tais limitações são excessivas e inconstitucionais por agredirem o exercício pleno da competência tributária municipal.

O legislador complementar, ao vedar, terminantemente, a possibilidade de concessão de incentivos e benefícios fiscais, excedeu a prerrogativa que lhe atribuiu o constituinte derivado, por meio da EC 3/93, que estabeleceu que lei complementar poderia regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais seriam concedidos e revogados, ou seja, a Constituição Federal não proíbe de forma definitiva a concessão de incentivos e benefícios fiscais, apenas estabelece a possibilidade de que a lei complementar os regule, pois pela dicção do artigo 156, § 3º, inciso III, há autorização para redução da carga tributária, desde que seja objeto de disciplina pela lei complementar.

Destacamos, inclusive, que também a LRF não veda categoricamente as renúncias fiscais, apenas impõe em seu artigo 14, como destacamos, que haja a demonstração de que as renúncias tributárias foram consideradas na estimativa de receita da lei orçamentária e que não afetam as metas de resultados, devendo ainda estar acompanhada de medidas de compensação. [5]

Reduções de carga tributária devem, por certo, ser concedidas com bastante parcimônia, eis que não raro são anti-isonômicas e prejudiciais à arrecadação, no entanto, se observado o disposto no artigo 150, § 6º da Constituição Federal [6], ou seja, o princípio da legalidade, são admissíveis, sobretudo nas hipóteses de extrafiscalidade, como é o caso da tributação fixa para autônomos e sociedades de profissionais, cujo propósito é incentivar o desempenho da atividade intelectual, consideradas as limitações e dificuldades naturais inerentes a tais atividades.

Embora, de fato, a tributação fixa, que não é, esclarecemos desde logo, tributação por meio de aplicação de alíquota fixa — já que não há qualquer alíquota que incida sobre o faturamento e sim o estabelecimento de montante fixo devido a titulo de ISS —, não observe o princípio da capacidade contributiva, é certo que o respeito à referida garantia cede diante da extrafiscalidade, ou seja, não se observa o princípio em questão, quando a cobrança de impostos tem natureza extrafiscal, como é o caso do ISS devido por autônomos e sociedades de uniprofissionais.

Assim, as regras veiculadas pelos artigos 8º-A, § 1º, 10-A e 12-A da LC 116/03, introduzidas pela LC 157/2016, são inconstitucionais, a uma por agredirem excessivamente o princípio da autonomia municipal e a duas por estarem em confronto com o disposto no artigo 156, §3º, inciso III da Constituição Federal, destacando-se afinal que, inclusive, a referida LC não revogou expressamente os artigos 11 e 14 da LRF.

 

 

 

 

Autora: Betina Treiger Grupenmacher é advogada, professora associada de Direito Tributário da UFPR, pós-doutora pela Universidade de Lisboa, doutora pela UFPR e visiting scholar pela Universidade de Miami​.


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