Autor: Eduardo José da Fonseca Costa (*)
O direito probatório é o signo supremo da perene precariedade dos julgamentos humanos. Isso porque a busca pela verdade em estado de pureza bruta está condenada a uma quintúplice indigência fundamental:
i) a finitude compreensiva do juiz (que não é onisciente nem onipotente, sendo o direito probatório o clímax representativo da imanência, da historicidade e do limite indisponíveis em que mergulhado o juiz “fatual”, a experiência normativa privilegiada que nos abre para a atmosfera existencial da finitude judicial);
ii) o modo privativo da verdade no processo (porquanto a determinação privativa do tempo — da qual o direito probatório é eterno prisioneiro — faz com que a desocultação historial do passado só se realize sob a dinâmica do precário, a partir de uma coletânea porosa dos vestígios sobreviventes não engolidos por Κρόνος) (o que mostra que a verdade no processo é — como bem sublinha o jurista italiano Luigi Ferrajoli — um “tipo particular de verdade histórica”);
iii) o modo de ser corruptível do jogo processual (o que não existe pode ser forjado com ou sem dolo; por exemplo: falsa memória intrusiva e involuntária da vítima ou da testemunha; falsidade documental, falsidade ideológica; o que não se perdeu na e pela corrosão do tempo pode, embora nem sempre deva, ser deliberadamente deturpado ou recoberto — exemplo: falso testemunho, falsa perícia, ocultação de corpo de delito, autoacusação falsa, silêncio ou mentira no interrogatório);
iv) a opacidade da facticidade (a prova não é um espelho plano dos fatos, um mediar de conhecimento absoluto sobre eles, mas é ela mesma um acontecer fático, motivo por que a facticidade tanto do fato-da-prova quanto do fato-provando já os torna praticamente irredutíveis a uma translucidez irrestrita: fechamento e encobrimento pertencem à facticidade — exemplo: fato-provando só mostrável por perícia meramente aproximativa; vivência distorcida do fato-provando por testemunha sem cultura suficiente para interpretá-lo, com autismo leve ignorado, ou com desordens de processamento auditivo central não diagnosticadas);
v) a oclusão temporal da descoberta (a roda da verdade gira ad æternum, razão por que é preciso definir, fixar um fim, interromper esse “processo-sempre-a-caminho”, fechar o projeto de apropriação dos fatos, mediante uma decisão, um “corte preclusional”, que não permite às partes um eterno movimento probatório de descoberta, não obstante esse fechamento por vezes anteceda o ponto otimal de maturação da abertura) (afinal, “Φυσις χρύπτεσθαι φιλεί” — Heráclito, Fragmento 123).
Dessa penúria quíntupla, talvez a mais desprezada seja a finitude compreensiva do juiz. A grande lacuna do direito probatório em especial e do direito processual em geral — seja como ciência dogmática, seja como normatividade positivada — jamais foi a negligência com uma dimensão mais epistêmica, mas não estar a finitude do juiz nele previamente entendida como dado pré-teórico fundamental.
Sempre faltou ao processo estruturar a aclaração dos fatos em função das limitações humanas do juiz e estruturar as limitações humanas do juiz em função da aclaração dos fatos. Sempre lhe faltou ser preocupação, zelo, cuidado. A camada antepredicativa da finitude do juiz é o nível prévio à objetividade da processualística e, portanto, o reduto primário de toda e qualquer experiência processual, a raiz originária-originante de uma matriz para a processualidade, a nascente fundante da estruturação da investigação teórico-processual. Noutro dizer: a desenvoltura epistemológica da dogmática processual deve começar seus trabalhos já nos a priori antepredicativos do mundo (onde se dá o movimento pré-teórico genético da vida fática) e do ser-no-mundo (onde a finitude do homem constitui a base pré-teórica fundante da perquirição científica).
Lembre-se que o juiz não se compreende na relação com o mundo desde um ponto de vista externo, como se fosse um ente confinado que precisasse romper um encapsulamento e transcender a própria consciência para alcançar o mundo. Por trás dessa visão extrinsecalista está o viciado esquema cognitivo sujeito-objeto, interior-exterior, experiência subjetiva-realidade objetiva.
Como bem pontua Heidegger, o ser-aí [Dasein] já está numa relação essencial de familiaridade [Vertrauheit] com a totalidade significativa que constitui o mundo, uma vez que já é sempre junto a ele. Daí já-ser-no-mundo [Schon–In-der-Welt-sein], ser-lançado-no-mundo [geworfen-entwerfende In-der-Welt-sein], estar dispersado em um mundo, compreensivamente junto aos entes, ser-junto-aos-entes-intramundanos [Sein-bei-innerweltlich-begegnendem Seiendem] (o que dispensa a construção de “pontes epistemológicas” entre o ser-no-mundo e o mundo). Mas ele também é um ser-com-outros [Mit-sein-mit-Anderen], pois de modo compartilhado está sempre junto aos demais seres-aí. Por conseguinte, é um ser-em [In-sein] e um ser-com [Mitsein]. Nesse sentido, o juiz/ser-aí é um ens finitum, imerso na historicidade da vida fática com outros entes e atirado projetivamente na finitude do mundo que o cerca.
Interessante exemplo de episteme radicada na finitude do ser-aí e voltado justamente aos movimentos dessa finitude é a chamada Psicologia Comportamental Cognitiva. Em 1974, no artigo pioneiro Judgment under uncertainty: heuristics and biases, os psicólogos israelenses Daniel Kahneman e Amos Tversky identificaram atalhos equivocantes — sistêmicos, previsíveis e, assim, evitáveis — que a mente cria para simplificar a tomada de decisões sob situações de incerteza a partir de informações complexas. Esses atalhos foram chamados de “vieses cognitivos” [cognitive biases]. A partir de então, torrentes investigativas desenvolveram modelos de “racionalidade limitada” [bounded rationality] a fim de retificar o modelo decisório de “racionalidade total ou plena” [full rationality] subjacente à Economia Neoclássica e à Análise Econômica do Direito.
Daí surgiram duas novas disciplinas: 1) a Behavioral Economics (que estuda o efeito dos vieses sobre as decisões dos agentes econômicos); 2) a Behavioral Law and Economics (que estuda esse efeito sobre as decisões dos agentes jurídicos). Logo apareceu a Behavioral Economics of Procedure Law e, com isso, uma radiografia dos vieses que acometem o juiz (i.e., uma ciência empírico-comportamental da fragilidade cognitivo-decisória do juiz).
Vejam-se algumas desses vieses cognitivo-judiciais: a) “heurística de representatividade” [representativeness bias] (o juiz tende a uma valoração inadequada da prova oral, impressionado por gestos, atitudes, perturbações e surpresas dos atores em audiência); b) “ancoragem e ajustamento” [anchoring-and-adjustment] (o juiz tem dificuldade de ignorar a prova ilícita); c) “viés de confirmação” [confirmation bias] (o juiz da liminar tende a confirmá-la na sentença, ignorando contra-argumentos, contra-fundamentos e contraprovas); d) “viés de grupo” [in-group bias] (o juiz tende a supervalorizar laudos de peritos oficiais e arrazoados de advogados públicos e representantes do Ministério Público, tendo em vista que são agentes públicos tanto quanto ele juiz).
Se bem que não haja ainda pesquisa de campo específica, suspeita-se que o juiz da prova de ofício tenda a supervalorizá-la porque é “sua” (na medida em que a literatura sobre BL&E é imensa, sugiro duas excelentes obras coletivas sobre o tema: RACHLINSKI, Jeffrey John (coord.). Behavioral Law and Economics. v. I a III. Edward Edgar: Northampton, MA, 2009; ZAMIR, Elyal e TEICHMAN, Doron (coord.). The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law. New York, NY: Oxford University Press, 2014).
Daí se vê que modelos procedimentais fundados na identidade física, na imediatidade e na oralidade, por exemplo, tendem a distorcer a cognição sobre os fatos e as provas e provocar quebras inconscientes de imparcialidade. Nesse caso, sendo mais prescritiva que descritiva, a BL&E propugna um design precaucional redutor da magnitude das ilusões cognitivas [debiasing].
Guthrie, Rachlinski e Wistrich propõem uma especialização funcional dos juízes, a que dão o nome de “divided decision-making strategy”: juízes destinados só ao gerenciamento do caso (judges functioned solely as case managers) e outros destinados apenas ao julgamento propriamente dito (judges functioned solely as adjudicators) (Inside the judicial mind. Behavioral Law and Economics. v. III. Coord. Jeffrey J. Rachlinski…, p. 51; Blinking on the bench: how judges decide cases. Cornell Law Review. 2007. v. 93, p. 42. No mesmo sentido: GALLO, Jaime Afonso. Las decisiones em condiciones de incertidumbre y el derecho penal. InDret – Revista para el análisis del derecho. n. 4, 2011, p. 21).
A proposta é similar à do “procedimento judicial funcionalmente escalonado”, de Glauco Gumerato Ramos, que propõe “um juiz para a urgência, um para a instrução e um para a sentença, que deve atuar na respectiva etapa de competência” (Sistema de enjuizamento escalonado (ou procedimento judicial funcionalmente escalonado): repensando o modelo de processo. RBDPro n. 71, jul./set. 2010, p. 65). Noutras palavras: “o juiz da urgência não pode ser o mesmo da sentença; ou, ainda, o juiz da instrução e/ou da prova de ofício não poderá ser o mesmo da resolução do mérito” (Ibidem, p. 67).
De acordo com o autor, “essa dinâmica é necessária para que não se viole a imparcialidade decorrente da garantia do devido processo legal” (Ibidem, p. 67). Em sentido similar Arturo Muñoz Aranguren, para quem é “inimaginable para nuestra actual conceptuación del derecho procesal, por ejemplo, la posibilidad de que una misma persona instruya y decida una causa penal, sin riesgo de quedar gravemente condicionada su imparcialidade” (La influencia de los sesgos cognitivos en las decisiones jurisdiccionales: el fator humano. Una aproximación”. InDret – Revista para el análisis del derecho. Barcelona. n. 2, 2001, p. 12).
Trata-se de providência eficaz, pois impede que as enviesadas impressões do juiz da audiência — nascidas do contato direto e vivo com as partes e testemunhas — sejam co-constituintes irracionais dos fundamentos ocultos da sentença. De todo modo, ainda que os juízes da prova oral e da sentença não sejam os mesmos, é imprescindível que o segundo não tenha contato com a gravação audiovisual da audiência presidida pelo primeiro, já que isso seria via transversa de dar ao sentenciador acesso indesejado a gestos, atitudes, perturbações e surpresas.
Tudo isso indica que o processo carece menos de ativismo epistêmico e mais de garantismo precaucional. Aliás, a ideia de precaução como princípio [Vorsorgeprinzip] não se cinge ao direito ambiental: trata-se de princípio geral do direito. Não sem razão, segundo Juarez Freitas, “o princípio constitucional da precaução […] estabelece (não apenas no campo ambiental) a obrigação de adotar medidas antecipatórias e proporcionais, mesmo nos casos de incerteza quanto à produção de danos fundadamente temidos (juízo de forte verossimilhança)” (O direito fundamental à boa administração pública. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 122).
Logo, é norma que deve igualmente reger o processo. Afinal, é preciso — ante os indícios científicos de que o juiz também se sujeita a vieses — que esse risco seja erradicado ou minimizado até a sobrevinda de mais informações. Entendimento contrário infundiria um temerário sistema processual que assume o risco de juízes inconscientemente parciais que distorcem provas e fatos de maneira sistemática. O mais importante não é verificar in concreto se um juiz logrou ou não manter-se imparcial, mas “defendê-lo da mera suspeita de a não haver conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados” (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 315).
Não se nega que os experimentos sobre vieses ainda precisam de aprofundamento, visto que à maior parte deles faltam a complexidade e a imprevisibilidade dos julgamentos verdadeiros. Como se não bastasse, as pesquisas têm sido mais comuns em jurados e juízes leigos em situação laboratorial in vitro, que não possuem treino nem experiência, do que em juízes profissionais em situações reais de exercício profissional. Além disso, a BL&E é ciência in fieri, que mais se aproxima a uma coleção incipiente de vieses ainda a ser teoricamente unificada, não obstante tenha muito a percorrer. Porém, os trabalhos de campo já realizados indicam que os juízes provavelmente estão sujeitos a ilusões cognitivas; logo, a judicatura deve cercar-se de cuidados institucionalizados, que propiciem mitigação, neutralização ou eliminação mesma dessas ilusões, garantindo uma margem segura de atuação funcionalmente imparcial.
Enfim, conquanto a ideia de boundedly rational judge seja um modelo pendente de testes de falseabilidade, o simples risco de que o modelo seja verídico justifica que os sistemas processuais brasileiros positivos sejam reformados e reinterpretados sob os auspícios da finitude do juiz.
Frise-se que os vieses não aparecem como existenciais constitutivos do Dasein para a hermenêutica heideggeriana e, em consequência, para a analítica existencial (embora possam teorizar-se fora da psicologia como problema propriamente filosófico e elevar-se à finitude como fenômenos originários de primeira ordem com potencial ontológico). Todavia, em se tratando de reflexão que se pretende fenomenológico-hermenêutico, é importante esclarecer que se faz aqui um parêntesis metodológico estratégico. Sustando-se interinamente a “assepsia” do mundo do ser-no-mundo, produzida pelo “ingênuo operar onipotente da metafísica” (Ernildo Stein), procede-se a um espessamento extra-ôntico do juiz/ser-aí, re-enxertando-se nele o psíquico-cognitivo (que, ao fim e ao cabo, nada mais é do que zona, região ou momento positivo do fenômeno ontológico-existencial da finitude do ser-aí).
Com isso se ratifica, agora no plano empírico-científico, o que já se acessara de modo transcendental no plano pré-científico-ôntico: a finitude kantianamente entendida como determinação privativa do conhecimento. Ou seja, as raízes ontológico-existenciais da finitude do ser-aí são corroboradas por experimentos científicos sobre a falibilidade psíquico-cognitiva do juiz.
Uma ciência da vulnerabilidade e da fragilidade [instância fundada-derivada] chancelando uma ontologia existencial da finitude [instância fundante-originária]. E com isso se identifica um ponto de partida pré-dogmático, até então não tematizado, no qual terminam as fraquezas próprias à condição humana do juiz e já começam as possibilidades de um direito processual emancipado de todos significantes absolutos e despóticos. A finitude redime a processualística de todas as grandes mentiras, mormente daquelas perpetradas em nome da Verdade.
Autor: Eduardo José da Fonseca Costa é juiz federal, doutor em Direito (PUC/SP) e presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).