Advocacia-Geral da União na era dos “robôs-advogados”

Autor: Rommel Macedo (*)

 

Em sua obra Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman observa que o progresso “não é mais uma medida temporária, uma questão transitória, que leva eventualmente (e logo) a um estado de perfeição […], mas sim um desafio e uma necessidade perpétua e talvez sem fim”.[1] Nesse contexto, adota-se uma “nova mentalidade de ‘curto prazo’, que substituiu a de ‘longo prazo” [2], de modo que “as principais fontes de lucro […] tendem a ser, numa escala sempre em expansão, ideias e não objetos materiais”.[3]

Assim, o trabalho humano vem sendo desafiado por uma realidade profundamente instável, considerando os enormes avanços tecnológicos das últimas décadas. Essas mudanças alcançam, inclusive, as mais tradicionais áreas de atuação, historicamente assentadas numa relação de confiança entre profissionais e clientes. É nesse panorama que surgiu a expressão “advogado-inteligência-artificial” ou “robô-advogado”, a ser analisada neste artigo.

Não é nos tradicionais dicionários jurídicos que se encontrará uma definição para o inovador termo “robô-advogado” (derivado do inglês “robot lawyer”). Este conceito, permeado pela fluidez das modernas expressões, vem designando os sistemas de inteligência artificial desenvolvidos para exercer certas atividades jurídicas.

Evidentemente, a noção de “advogado-inteligência-artificial” ou “robô-advogado” ainda carece de uma definição técnica mais precisa. De toda forma, não parece adequado confundir uma profissão com os instrumentos tecnológicos desenvolvidos para auxiliá-la. Assim, deve-se evitar alguns equívocos conceituais, antes mesmo de se examinar o impacto que os novos sistemas informatizados estão acarretando.

Inicialmente, sob uma perspectiva tecnológica, talvez seja exagero falar em “robô-advogado”. Isso porque, de acordo com Maja Matarić, “robô é um sistema autônomo que existe no mundo físico, pode sentir o seu ambiente e pode agir sobre ele para alcançar alguns objetivos.”[4] Por conseguinte, “os robôs que existem no computador são simulações. Eles não têm realmente de lidar com as verdadeiras propriedades do mundo físico, porque simulações nunca são tão complexas quanto o mundo real. Portanto, embora haja uma grande quantidade de robôs simulados no ciberespaço, um robô de verdade existe no mundo físico”.[5]

Já sob um prisma estritamente jurídico, o termo “robô-advogado” também não parece o mais adequado, considerando a legislação brasileira em vigor. Isso porque o exercício da advocacia é disciplinado pela Lei 8.906, de 1994, segundo a qual:

Art. 1º São atividades privativas de advocacia:

I – a postulação a órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais;

II – as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.

[…]

Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Diante desses comandos legais, cabe indagar: qual o enquadramento normativo das atividades realizadas pelos “robôs-advogados”? Em resposta a esse questionamento, cabe primeiramente relembrar que os advogados podem exercer funções:

a) contenciosas: englobando as atividades postulatórias, em processos judiciais e extrajudiciais;

b) consultivas: envolvendo as atividades de consultoria e de assessoramento jurídicos.

No que tange às atividades contenciosas (de natureza postulatória), é evidente a impropriedade do termo “robô-advogado”. Afinal, não é legalmente viável que alguém seja representado por um “robô”, que atue no exercício da profissão de advogado (judicial ou extrajudicialmente). A rigor, os programas informatizados que respondem questionamentos jurídicos ou elaboram petições constituem verdadeiros bens comercializáveis.

Por outro lado, o advogado é um profissional que presta serviços, tendo uma relação jurídica com seu cliente e sendo legalmente responsável por sua atuação. Eis por que, nas atividades postulatórias, a expressão “robôs-advogados” não parece a nomenclatura mais acertada, pelo menos à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Na verdade, trata-se apenas de sistemas de inteligência artificial, utilizados por aqueles que atuam em processos judiciais e extrajudiciais.

Passando às atividades de consultoria e assessoramento jurídicos, as conclusões são bastante semelhantes. Os denominados “robôs-advogados” não prestam “serviços” propriamente ditos (marcados pela relação jurídica entre advogados e clientes). O que ocorre é, somente, a utilização das funcionalidades dos programas informatizados, seja no esclarecimento de dúvidas jurídicas, seja na formulação de pareceres e manifestações afins. Na euforia que envolve os avanços tecnológicos, não se pode chegar ao ponto de confundir o profissional com as ferramentas utilizadas em sua atuação, por mais inovadoras que sejam.

Decerto, os programas de inteligência artificial possuam enormes vantagens, conforme se vê numa matéria recentemente publicada:

ROSS, o “advogado-inteligência-artificial”, ou “robô-advogado”, começa a trabalhar em breve […]. Não se espera que ele atue em tribunais tão cedo. Por enquanto, ele só vai atuar no escritório, operando como fonte inesgotável de informações para os 50 advogados da divisão de falências da banca.

[…]

Ao contrário da revolução industrial, que tirou emprego dos trabalhadores, os entusiastas do “robô-advogado” acham que a máquina irá melhorar muito o trabalho dos advogados, principalmente no que se refere à economia de tempo com pesquisas em um corpo enorme – e sempre crescente – de literatura jurídica, para preparar um caso.

Esse computador cognitivo pode fazer inferências da literatura jurídica, selecionar o que for relevante para um caso, formular hipóteses e gerar respostas sustentadas por referências e citações, segundo as publicações. Assim, os advogados podem dedicar seu tempo analisando os detalhes mais complexos dos casos e da legislação mais relevante. [6]

Como se vê, o referido “robô-advogado” consiste apenas numa “fonte de consulta avançada, como se fosse uma biblioteca virtual que adquire novos conhecimentos conforme eles surgem e com a vantagem de aprender, progressivamente, a se relacionar com os advogados com o tempo — e com o uso. Isto é, passa a dar respostas mais próximas do que eles esperam”. [7]

Traçados esses esclarecimentos, percebe-se a natureza instrumental dos “robôs-advogados”, os quais, por mais complexas que sejam suas funcionalidades, não podem ser confundidos com os profissionais advogados (cuja atuação é legalmente fiscalizada pela Ordem dos Advogados do Brasil). Como bem afirma Gustavo D’Andrea:

[…] alguma coisa poder ser satisfatoriamente executada por robôs não é motivo para permitir que ela se torne uma atividade livre para qualquer empreendedor curioso que esteja com vontade de inovar. Uma vez que a liberdade deve envolver, necessariamente, a responsabilidade, como conceber um serviço jurídico automático gerenciado por alguém que não é submetido ao controle disciplinar do órgão de classe apropriado?[8]

Conforme elucida Tercio Sampaio Ferraz Junior, “as normas demarcam posições socialmente relevantes dos sujeitos”.[9] Tomando por base essa doutrina, não há como considerar os “robôs-advogados” sujeitos de direito, de modo que as relações jurídicas são verdadeiramente entabuladas entre: os advogados que utilizam esses sistemas informatizados, os respectivos clientes e as demais pessoas físicas e jurídicas que eventualmente participem dos processos judiciais ou extrajudiciais.

Poder-se-ia alegar que essa concepção jurídica não seria adequada aos novos tempos, marcados pela emersão de sofisticadas formas de inteligência artificial. Ocorre que, mesmo na visão futurista de Martine Rothblatt, reconhece-se que os “critérios de ‘autonomia e empatia” constituem balizas para uma teoria dos direitos, que resguarde seres dotados de “razão e consciência”.[10] Por óbvio, ao menos no atual estágio evolutivo, os robôs ainda não atendem a esses critérios, característicos apenas da pessoa humana.

Não obstante algumas imprecisões conceituais, é certo que o avanço tecnológico é um processo inexorável, com enormes impactos na atuação dos advogados. A crescente velocidade no processamento das informações, mediante o uso de modernos programas de computador, implica a redução do número de advogados necessários para atender às diversas demandas. Afinal, com o auxílio de eficientes sistemas informatizados, um único advogado pode desenvolver um volume de tarefas que, anteriormente, requeriam vários profissionais para sua consecução.

É justamente nesse cenário que se insere a Advocacia-Geral da União (AGU), “instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo” (artigo 131 da Constituição Federal de 1988).

Anualmente, os Advogados Públicos Federais atuam em milhares de processos, de interesse da Administração Pública Federal Direta e Indireta. Na esfera judicial, o alcance dessa atuação é destacado na publicação “Justiça em Números 2016”, do Conselho Nacional de Justiça. Ao abordar especificamente a Justiça Federal, consigna-se que:

No que se refere aos assuntos mais demandados, chama atenção a concentração das ações em assuntos correlatos de natureza previdenciária, tributária ou administrativa, o que pode ser explicado pela competência especial da Justiça Federal para julgar as ações contra a União, suas autarquias […].11 (grifo nosso)

Já na esfera consultiva, a atuação da Advocacia-Geral da União “objetiva garantir a aplicação dos princípios da legalidade e da legitimidade”. Nesse contexto, mostra-se essencial a “uniformidade de entendimentos”, “o que se revela salutar […] às áreas administrativas dos distintos órgãos públicos, as quais passam a contar com orientações jurídicas uniformes, o que lhes garantirá uma atuação em maior conformidade com os preceitos normativos”.[12]

Visando aprimorar sua atuação consultiva e contenciosa, a Advocacia-Geral da União desenvolveu o Sistema AGU de Inteligência Jurídica (Sapiens), o qual foi instituído pela Portaria 125, de 30 de abril de 2014, expedida pelo Advogado-Geral da União. Trata-se do “sistema oficial de informações, documentos e processos eletrônicos no âmbito da Advocacia-Geral da União” (artigo 1º), o qual é de “utilização obrigatória na gestão documental e controle de fluxos de trabalho pelos Membros e Servidores da Advocacia-Geral da União, nos órgãos em que implantado” (artigo 2º).

Com o advento do Sapiens, os Advogados Públicos Federais passaram a compartilhar um mesmo ambiente virtual de trabalho, podendo acessar não apenas as manifestações da respectiva unidade de lotação como também a produção jurídica dos vários outros órgãos da Advocacia-Geral da União. No entanto, esse sistema ainda não possui várias das funcionalidades dos modernos “robôs-advogados”. Por conseguinte, é imprescindível que a AGU catalise seu avanço tecnológico, haja vista o acelerado processo de automação em escritórios de advocacia que litigam contra o Poder Público.

Ocorre que atual momento histórico impõe desafios não somente tecnológicos para a Advocacia-Geral da União. Com efeito, a virtualização e a consequente automação dos trabalhos jurídicos ensejam uma série de reflexões de ordem gerencial, tais como:

a) como mensurar a quantidade ideal de membros nas carreiras da Advocacia Pública Federal?[13]

b) são adequadas as atuais regras de lotação dos membros dessas carreiras nos vários órgão da Advocacia-Geral da União?

c) devem ser mantidos os atuais critérios organizacionais, que definem as competências das diversas unidades da AGU?

d) quais parâmetros devem nortear as despesas da AGU em tecnologia da informação, considerando tanto as demandas jurídicas repetitivas como também aquelas não repetitivas?

e) como aprimorar as atividades de apoio administrativo na AGU, num cenário de crescente informatização?

f) por fim, em relação ao quadro de pessoal da AGU: como definir prioridades na abertura de novos concursos públicos para membros e servidores?

Evidentemente, o escopo deste artigo não é responder a indagações tão amplas, as quais exigem uma série de análises técnicas pelos vários setores da Advocacia-Geral da União. Tais questionamentos se mostram ainda mais oportunos frente à recente Emenda Constitucional 95, de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal, impondo limites para os gastos públicos.

Como bem afirma a milenar explanação de Sun Tzu, tão adotada nos planejamentos estratégicos de grandes corporações: “as mensurações das coisas dão lugar às avaliações; estas, aos cálculos; da comparação dos cálculos, se antevê a possibilidade de vitória”.[14] Tais palavras se mostram profundamente atuais, haja vista a seguinte perspectiva traçada por Yuval Noah Harari: “o século XXI será dominado por algoritmos”, ou seja, pelo conjunto metódico de passos que podem ser usados “na realização de cálculos, na resolução de problemas e na tomada de decisões”.[15]

Portanto, é essencial que a Advocacia-Geral da União prossiga não apenas com seus avanços tecnológicos como também desenvolva mecanismos gerenciais inovadores, num contexto de crescente automação dos processos e de acentuadas restrições orçamentárias.

 

 

 

 

 

 

Autor: Rommel Macedo  é Advogado da União e Mestre em Direito. Foi Conselheiro Seccional e Presidente da Comissão da Advocacia Pública e do Advogado Empregado da OAB-DF (2010-2012). Foi Coordenador Científico da pós-graduação Lato Sensu em Advocacia Pública, Coordenador-Geral Substituto de Processos Judiciais e Disciplinares da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça, Coordenador-Geral de Análise de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Trabalho e Emprego e Coordenador Jurídico de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério das Comunicações.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento