Autor: Renan Palhares Torreão Braz (*)
O tratamento da jurisprudência em relação aos filiados às Associações classistas ganhou um novo norte a partir do julgamento do RE 573.232/SC pelo Supremo Tribunal Federal: a representatividade de seus filiados será considerada autorizada expressamente quando chancelada por ata de assembleia ou autorização individual. Cabe refletir, entretanto, sobre a forma de exigência de tais documentos, o momento de apresentação e a vinculação da lista de filiados rotineiramente apresentada quando do ajuizamento de ações coletivas.
A convergência de direitos homogêneos entre indivíduos torna útil — até necessário — o ajuizamento de demandas coletivas. Quando a coletividade de interessados na demanda se encontra no âmbito de uma classe ou categoria funcional, o patrocínio de tal pleito, em fase de conhecimento, deve ser feito por entidades associativas ou sindicais, reconhecidas para tanto pela Constituição da República/88.
A Constituição [1] traz permissivos específicos sobre o tema, como se vê pelos seus artigos 5º, XXI e LXX, e 8º, III. Regula, portanto, a forma de atuação das associações, dos sindicatos e, em especial, a impetração de Mandado de Segurança Coletivo, cada qual com suas peculiaridades.
A amplitude da sentença coletiva em relação ao seu universo de beneficiários gera discussões. Se, por um lado, a ampliação do espectro de beneficiários poderia ensejar a admissão de filiados que se associaram após o ajuizamento de determinada demanda, por outro, a restrição ou diminuição dessa atuação coletiva poderia resultar o esvaziamento da finalidade das próprias demandas coletivas.
Tal esvaziamento implicaria sobrecarga ao Judiciário para julgamento da mesma matéria repetidas vezes, bem como traria campo fértil à prolação de decisões díspares sobre o mesmo tema para situações semelhantes, até idênticas.
O debate acerca da legitimidade e extensão da atuação coletiva, conforme a prática forense e a evolução jurisprudencial, circunda os seguintes elementos: previsão no estatuto da entidade; previsão em ata de Assembleia Geral realizada para deliberações; formação listas de filiados à entidade; e outorga de procurações judiciais ou autorizações. O julgamento, em 14 de maio de 2014, do Recurso Extraordinário 573.232/SC pelo Supremo Tribunal Federal se insere nesse contexto.
Até então, a orientação jurisprudencial relativa ao tema compreendia que “as entidades associativas recebem autorização dos estatutos ou da assembleia-geral. Não é possível exigir autorização de cada um, individualmente, porque, nesse caso, a própria finalidade da associação se esvaziaria” (STF, AO 152, DJU de 03/03/2000, voto do Min SIDNEY SANCHES).
Pelo RE 573.232/SC, a Suprema Corte objetivou perquirir a extensão do termo “quando expressamente autorizadas” (Art. 5º, XXI, CR/88), tendo estabelecido que o ajuizamento de ações coletivas por Associações seria viabilizado por autorizações individuais específicas ou por ata de assembleia, evitando, assim, que futuros filiados pudessem ser beneficiados por demanda já em curso.
Logo, o STF afastou a orientação de que a simples previsão no Estatuto da entidade de classe conferiria a todos os seus filiados a legitimidade para a execução do título executivo.
À luz do texto constitucional, fez-se distinção entre a representação processual — modalidade de defesa dos interesses dos filiados assumida pela Associação, por estar vinculada à “autorização expressa” –, e a substituição processual — modalidade figurada pelos Sindicatos e pelos impetrantes de Mandado de Segurança Coletivo, de maneira que, para essas hipóteses de substituição, as restrições estipuladas pelo RE 573.232/SC não são aplicáveis.
A mudança de paradigma registrada pelo precedente deve ser vista com cautela. A aplicação do novo entendimento às ações ajuizadas há mais de uma década — como comumente se encontra pela Justiça Federal —, isto é, àquelas manejadas sob a égide de outro entendimento jurisprudencial, ou ao seu cumprimento de sentença, poderia fulminar uma pretensão justa e válida de milhares de postulantes.
Com razão, esse entendimento foi recentemente adotado pelo Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. ASSOCIAÇÃO. REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL. NECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO EXPRESSA. ALTERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA. NECESSIDADE DE EXCEPCIONALMENTE FACULTAR-SE A REGULARIZAÇÃO DA AUTORIZAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL DA UNIÃO PARCIALMENTE PROVIDO. RECURSO ESPECIAL DA ASSOCIAÇÃO AUTORA PARCIALMENTE PROVIDO.
[…]
2. Em regra, a emenda da inicial, voluntária ou por determinação do juízo, só é possível até a estabilização processual, que ocorre com a citação do réu.
3. Todavia, diante das expectativas geradas por entendimento anterior, existente inclusive no STJ, no sentido da desnecessidade da autorização expressa e diante da natureza da ação coletiva que congrega interesses de partes que normalmente não poderiam vir diretamente ao Judiciário, revela-se razoável conceder à associação autora a oportunidade de excepcional emenda da inicial após a citação do réu e mesmo após a sentença para regularização da sua legitimidade ativa mediante a apresentação de autorização assemblear e relação de associados.
4. A assembleia para autorização da ação poderá ser efetuada na atualidade, tratando-se de convalidação da autorização para propositura da ação efetuada no passado.
5. A lista de representados, todavia, só poderá contemplar pessoas que já eram associadas da parte autora ao tempo da propositura da ação, uma vez que quem não era associado não poderia nem em tese autorizar expressamente a propositura da ação.
[…]
(STJ, Segundo Turma, AgRg no REsp 1.424.142/DF, Relator Ministro HERMAN BENJAMIN, julgado em 15 de dezembro de 2015, DJe 04.02.2016, grifos aditados)
Outro aspecto controvertido decorrente do julgamento do RE 573.232/SC se refere à qualidade da lista de filiados que instrui a ação coletiva: se seu rol de beneficiários seria exemplificativo ou exaustivo.
A melhor leitura da letra da lei, bem assim da jurisprudência mais atual, traduz que a juntada de tal lista é feita de forma exemplificativa e, assim, não restringe, por si só, os beneficiários da demanda. De acordo com o RE 573.232/SC, o que se deve investigar é se os beneficiários interessados eram filiados à época do ajuizamento da ação.
Logo, ainda que eventuais interessados fossem filiados à determinada entidade, porém, por qualquer motivo, não fossem incluídos pela referida listagem, estes não se confundiriam com os “caronas”, aludidos nos autos do RE 573.232/SC, isto é, com os filiados que ingressaram na Associação após o ajuizamento da ação e que, portanto, não autorizaram o manejo da demanda coletiva.
Configurado esse cenário, os associados teriam autorizado o ajuizamento da demanda coletiva que lhes beneficiasse por ocasião de Assembleia Geral prévia, estando ou não na listagem que futuramente seria colacionada aos autos do processo.
O objetivo da Suprema Corte naquele julgamento era justamente impedir que novos associados fossem beneficiados por ações já em andamento, para as quais, por razões óbvias, não deram autorização expressa.
A compreensão do precedente em questão vai além da mera leitura de sua ementa ou trechos específicos. Nesse ponto, importa resgatar o cerne do debate travado no precedente, como se lê à folha 56 do inteiro teor do RE 573.232/SC, onde consignado o voto do ministro Teori Zavascki, um dos componentes da maioria prevalecente naquele julgamento:
Pois bem, se é indispensável, para propor ação coletiva, autorização expressa, a questão que se põe é a que diz com o modo de autorizar “expressamente”: se por ato individual, ou por decisão da assembléia de associados, ou por disposição genérica do próprio estatuto. Quanto a essa questão, a resposta que tem sido dada pela jurisprudência desde Supremo Tribunal Federal é no sentido de que não basta a autorização genérica da entidade associativa, sendo indispensável que a declaração expressa exigida pela Constituição (artigo 5º, XXI) seja manifestada ou por ato individual do associado ou por deliberação tomada em assembleia da entidade. (grifos aditados)
De fato, quando instada a se debruçar com profundidade sobre o tema em questão, a corte não deu importância à listagem de filiados, mas sim à forma como conferida a autorização expressa. É o que se constata, também, por meio do voto da ministra Rosa Weber (folha 60 do inteiro teor do RE 573.232/SC), que acompanhou a divergência do ministro Marco Aurélio:
Cuida-se de execução em que o juízo de primeiro grau excluiu da relação jurídico-processual pessoas físicas, à compreensão de que não são beneficiárias do título executivo, o que, à luz do art. 5º, LXX, da Constituição da República, consoante a jurisprudência sedimentada desta Suprema Corte, merece endosso, enquanto solução mais adequada ao caso e aos institutos jurídicos envolvidos, uma vez exigível, em se tratando de associação, a autorização individual dos associados ou da assembleia da entidade para o ajuizamento da demanda, de todo insuficiente a só previsão estatutária. (grifos aditados)
Da mesma forma, em reflexão sobre o artigo 5º, XXI, da Constituição, o Ministro Luiz Fux resume a questão com exatidão (folha 62 do inteiro teor do RE 573.232/SC): “Então, essa é a verdadeira razão de ser desse dispositivo: exigir essa autorização expressa”.
É fato que a discussão do RE 573.232/SC não aborda minimamente a controvérsia da referida listagem, uma vez que a necessidade ou consequência do envio de listagem de filiados no momento do ajuizamento pela Associação é matéria que extrapola o debate travado no precedente; este, limitado apenas à forma em que conferida a autorização expressa prevista no artigo 5º, XXI, da Constituição.
Ainda no tocante à aludida listagem, lembre-se que a exigência de juntada de lista de beneficiários em ação coletiva surgiu apenas com o advento da MP 1.798-1/1999, isto é, após o ajuizamento de diversas demandas coletivas ainda em tramitação. Não deve, logo, constituir comando capaz de retroagir em prejuízo ao universo de ações propostas por associações até então.
O recente precedente do STJ, adiante transcrito, elucida com precisão o tema:
[…] ASSOCIADOS NA DATA DA PROPOSITURA DA AÇÃO. COISA JULGADA ASSEGURADA. APRESENTAÇÃO DE LISTA NOMINAL. ADVENTO DA MP N. 1.798-1/1999. IMPOSSIBILIDADE DE RETROAÇÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO N. 573.232/SC. JULGADO QUE NÃO SE AMOLDA AO CASO DOS AUTOS. INAPLICABILIDADE. […]
[…]
8. Com efeito, o caso dos autos não se amolda ao julgado do Supremo Tribunal Federal, pois cuida de execução, cuja ação de conhecimento foi proposta por associação – ASSUPE e transitou em julgado sem que fosse discutida qualquer tese de ilegitimidade. In casu, o pleito inaugural foi acolhido integralmente para beneficiar todos os filiados da SUCAM em Pernambuco – ASSUPE com o reajuste de 84,32% de março de 1990 – Plano Collor, afigurando-se imutável a coisa julgada formada naquela fase processual.
9. No precedente do Supremo Tribunal Federal, RE n. 573.232, o título judicial havia limitado o alcance subjetivo da decisão ao legitimar apenas os associados que houvessem dado, na data do ajuizamento da ação, autorização para postular em seu nome e que constassem da lista de beneficiários, ou seja, nesse caso, foi garantida a coisa julgada formada na fase de conhecimento do respectivo processo.
10. A exigência de juntada de lista de beneficiários em ação coletiva surgiu apenas com o advento da MP n. 1.798-1/1999, não devendo atingir as ações anteriormente ajuizadas e que, inclusive, possuem trânsito em julgado anterior.
11. Desse modo, correta a interpretação dada no sentido de que só possuem legitimidade para a execução versada os servidores que se encontravam filiados à ASSUPE no momento da propositura da ação de conhecimento. Assim como também errônea seria a conclusão no sentido de se considerar como parte legítima apenas aqueles associados que expressamente autorizassem a postulação em seu nome e constassem da lista de beneficiários, pois assim se desprezaria a coisa julgada nascida da ação de conhecimento.
Agravo regimental provido para dar parcial para provimento ao recurso especial da ASSERFESA, reconhecendo a legitimidade para a propositura da ação executiva aos servidores que, no momento do ajuizamento da ação cognitiva, lograram comprovar estarem associados à ASSUPE.
(AgRg no AgRg nos EDcl no REsp 1160663/PE, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 02/08/2016, DJe 10/08/2016)
No mesmo sentido, “o Superior Tribunal de Justiça firmou orientação no sentido de que ‘…possuem legitimidade para a execução todos os servidores que estavam filiados à ASSUPE no momento da propositura da ação de conhecimento, independentemente de constarem na primeira lista apresentada…”. AgRg no REsp 1264728/PE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/10/2015, DJe 09/10/2015
Constata-se que, se a própria necessidade de autorização expressa tem sido flexibilizada em favor da segurança jurídica de demandas que remontam à época em que a construção jurisprudencial exigia apenas previsão estatutária, como visto, muito maior deve ser a cautela em relação às referidas listas de filiados, que sequer foram tidas como relevantes no julgamento do RE 573.232/SC.
O tema instiga reflexões e estimula debates jurídicos diversos. A pretensão de se colocar a questão a partir de alguns de seus desdobramentos visa a demonstrar que o RE 573.232/SC, apesar de apontar um norte na temática do patrocínio de demandas coletivas por entidades associativas, não soluciona o universo de questões supervenientes.
Nesse contexto, é de bom tom repisar que as alterações jurisprudenciais poderão impactar severamente interessados que aguardam décadas desde o nascimento de sua pretensão até sua satisfação final, o que recomenda a adoção de prudência na condução do tema, em especial, no que toca à dita autorização expressa e à listagem de filiados envolvendo as demandas associativas.
Autor: Renan Palhares Torreão Braz é sócio do Torreão Braz Advogados. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília e bacharelando em Ciências Contábeis pela Universidade de Brasília.