Autora: Deborah Portilho (*)
Afinal, o que são complementos de nomes para a Anvisa?
Qualquer um que atente para esta pergunta poderá pensar que a resposta é muito óbvia; porém — acreditem — ela não é tão óbvia quanto parece. De fato, entende-se por “complemento” algo que seja adicionado, acrescido ao “principal”, literalmente complementando seu sentido. Contudo, na prática, os complementos de nome de medicamentos nem sempre são complementos propriamente ditos e sim um outro nome/marca usado em conjunto com o nome principal. Além disso, de acordo com a definição oficial dada pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) da Anvisa 59/2014, os complementos de nome deveriam ser “palavras”. Entretanto, existem inúmeros complementos formados por siglas e também por letras isoladas.
Considerando que a definição oficial de complemento de nome — imprecisa e incompleta, como será demonstrado adiante — pode ser prejudicial para a análise que a própria Anvisa precisa fazer em relação aos nomes de medicamentos, como também impactar nos direitos das empresas farmacêuticas sobre suas marcas e até confundir o consumidor, faz-se necessário que o assunto seja debatido por todos os interessados.
Pois bem, de acordo com a definição constante no artigo 4º, III, da RDC 59/2014, “complemento de nome” é uma “palavra empregada como designação complementar, de uso não exclusivo, ao nome do medicamento”. Assim sendo, para exemplificar, nos medicamentos Tylenol Bebê, Tylenol Criança, Tylenol Gotas (todos da Janssen-Cilag), as palavras “bebê”, “criança” e gotas” se encaixam perfeitamente na definição supracitada. E quanto ao Tylenol DC? Se o complemento tem que ser uma palavra, então, pela literalidade do texto, a sigla DC — que corresponde às iniciais da expressão “dor de cabeça” — não seria considerada complemento de nome?! Certamente essa questão precisa ser esclarecida e, por conseguinte, incluída no texto da resolução, de modo que outras empresas farmacêuticas também possam fazer uso dessa e de outras siglas que representem termos de uso comum no segmento.
Contudo, a questão das siglas e letras isoladas serem consideradas, ou não, complementos de nome não é o maior problema com relação à definição constante do citado artigo 4, III, mas sim o fato desse dispositivo ser incisivo sobre a não exclusividade de uso dos complementos de nome. Com efeito, alguns termos/nomes que seriam tidos como complementos, tais como Emulgel e Sport Ice (respectivamente em Cataflam Emulgel e Cataflam Sport Ice) são, na realidade, marcas registradas perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). O problema é que, se esses nomes forem tratados como meros complementos pela Anvisa, terceiros poderão obter o registro sanitário de seus produtos, utilizando uma marca registrada no INPI, em nome de outra empresa. E, na realidade, isso já ocorreu em relação à marca registrada Emulgel (da Novartis), quando do registro sanitário dos produtos Fenaflan Emulgel (do Laboratório Teuto), que posteriormente foi alterado para Fenaflan Gel e o Zig Emulgel (dos Laboratórios Reunidos Paraná), cujo registro encontra-se vencido.
Como se verifica, pressupor que uma palavra acrescida a um nome/marca de medicamento seja um mero “complemento de nome” e, consequentemente, não tenha exclusividade de uso pode ferir direitos adquiridos de terceiros e também confundir o consumidor com relação à origem dos produtos que ostentem uma mesma marca secundária.
Passando-se então à questão do uso de letras isoladas, e partindo-se do pressuposto que, tal como as siglas, elas também devem ser consideradas “complementos de nome”, é possível observar uma discrepância em relação ao que se verifica no mercado e o que estabelece a RDC 59/2014, em seu artigo 16, § 2º: “[é] vedada a utilização do mesmo complemento de nome com significados distintos”. De fato, apesar de essa proibição ser lógica e correta sob o ponto de vista sanitário, observa-se que, na prática, existem diversos medicamentos que ostentam letras idênticas, com significados distintos.
Esse é o caso, por exemplo, da letra “D”, utilizada tanto em medicamentos de prescrição, quanto de venda livre (MIPs), com, pelo menos, cinco significados diferentes.
Nesse sentido, pode-se observar que, além de ser usada para identificar os suplementos de Vitamina D, como nas marcas Colevit D (da EMS), Font D (da União Química) e DoseD (do Laboratório Aché), entre outras, a letra D é utilizada ainda para diferenciar medicamentos, tais como Allegra (da Sanofi Aventis) e Claritin (da Merck Sharp & Dohme), que possuem efeito anti-histamínico, dos medicamentos Allegra D e Claritin D (dessas mesmas empresas), os quais, além do efeito anti-histamínico, possuem ação descongestionante — daí o emprego da letra “D”, como complemento dessas marcas.
Um terceiro uso da letra D é encontrado em alguns medicamentos apresentados em comprimidos dispersíveis ou solúveis, como é o caso do antimalárico Coartem-D (da Novartis) e dos anti-inflamatórios Cataflan D (também da Novartis) e Fenaflan D (do Teuto). Já algumas empresas utilizam a letra D para identificar a presença de um fármaco adicional (geralmente iniciado com D) na composição de outro produto da mesma família de medicamentos. Exemplos de empresas que fazem uso dessa prática são a Latinofarma em seus medicamentos Tobracin (tobramicina) e Tobracin-D (tobramicina + dexametasona) e a Eurofarma em seu Kóide (betametasona) e Kóide D (betametasona + maleato de dexclorfemiramina).
Um quinto uso da letra D, identificado na pesquisa feita para este artigo, é deveras interessante. Com efeito, a letra D utilizada como complemento do nome/marca Novaldex (da AstraZeneca) significa apenas que o Novaldex D tem o dobro de miligramas de citrato de tamoxifeno, quando comparado ao Novaldex. Nesse sentido, a bula dos produtos disponibilizada on-line pela empresa deixa claro que a diferença entre eles é apenas a dosagem: “Novaldex — comprimidos revestidos de 10 mg em embalagens com 30 comprimidos e Novaldex D — comprimidos revestidos de 20 mg em embalagens com 30 comprimidos .
Como se verifica, apesar de a RDC 59/2014 vedar a utilização do mesmo complemento de nome com significados distintos, apenas com relação à letra D como complemento foi possível identificar cinco usos diferentes. De qualquer forma, em vista dessa proibição, seria de se esperar que a referida norma exigisse, em contrapartida, uma uniformidade no uso de complementos, ou seja, ela deveria impedir o uso de complementos distintos com o mesmo significado. Entretanto, como a resolução não traz essa previsão, cada empresa adota o complemento que julgar mais adequado.
Para ilustrar essa afirmação, nem todos os medicamentos vendidos sob a forma de comprimidos dispersíveis são identificados pela letra D. O Laboratório Aché, por exemplo, adotou as letras DI, para identificar seu diclofenaco dispersível: o Biofenac DI, diferenciando-o, assim, do Biofenac (comprimidos comuns) e do Biofenac C.L.R. (comprimidos de crono liberação regulada).
Diante do exposto, pode-se concluir que, a menos que a RDC 59/2014 seja reeditada para corrigir não apenas esses, mas vários outros problemas, não há como a Anvisa, por meio de sua Coordenação de Bulas, Rotulagem e Medicamentos Clones (CBREM), responsável, entre outros, pela observância das normas dessa RDC, colocar ordem na casa.
Assim sendo, cabe aos interessados — empresas, profissionais da área, advogados e a própria CBREM — suscitar essa e outras discussões relacionadas ao texto da RDC 59/2014, de modo que a Diretoria Colegiada da Anvisa possa tomar as providências necessárias para o aperfeiçoamento das normas relativas aos nomes de medicamentos. Só assim poderemos ter certeza de que todas as definições e regras dessa importante resolução não apenas pareçam óbvias, mas de fato sejam.
Autora: Deborah Portilho é advogada especializada na área de marcas, professora de Direito de Propriedade Industrial do LL.M. Direito Corporativo do IBMEC/RJ, sócia-diretora da D.Portilho Consultoria, Auditoria & Treinamento em Propriedade Intelectual e integrante da Comissão de Propriedade Industrial e Pirataria da OAB-RJ.