Autores: H. David Rosenbloom e Peter A. Barnes (*)
Em Washington, profissionais da área fiscal – e alguns nem tão versados assim – estão se entretendo com uma nova diversão intelectual – o chamado “destination-based cash flow tax” (DBCFT). Ok, o acrônimo requer alguns esclarecimentos. Não obstante, o aspecto mais relevante a ser considerado é que este possível substituto do atual modelo de tributação da renda das pessoas jurídicas representa a oportunidade mais estimulante que a arena tributária já teve em muitos anos para debater teorias econômicas.
A proposta – que traz aspectos fiscais já conhecidos, mas que nunca foram articulados dessa maneira anteriormente – requer determinados ajustes chamados de “border adjustments”. De acordo com essas regras, (a) por um lado, rendimentos auferidos por contribuintes norte-americanos decorrentes de exportação são isentos de tributação nos Estados Unidos (muito embora os respectivos custos de produção dos bens e serviços exportados sejam dedutíveis), e (b) por outro lado, pagamentos realizados em contrapartida à importação de bens e serviços são indedutíveis para fins de apuração da base de cálculo do imposto de renda norte-americano.
A proposta contém ainda elementos baseados no regime de caixa: despesas de capital – por exemplo, edifícios ou maquinário – são imediatamente e integralmente dedutíveis da base de cálculo do imposto de renda, no lugar de serem depreciados ao longo dos anos, como ocorre sob a legislação atual. Ao contrário, no DBCFT, a dedutibilidade das despesas de juros é eliminada em relação a muitos contribuintes (embora presumimos que essa eliminação não atingiria o setor de serviços financeiros). A alíquota do imposto de renda das pessoas jurídicas é reduzida do atual patamar de 35% para algo em torno de 20%, ou talvez 15%.
Há muito o que ser falado sobre essa proposta, que tem sido francamente apoiada pelo congressista Kevin Brady e pelos republicanos na Câmara dos Deputados. Ainda é um pouco precoce prever se o Senado acompanhará esse movimento. O presidente do Comitê Financeiro do Senado, Orrin Hatch, tem perfilhado uma orientação um tanto distinta, focada na integração da tributação do imposto de renda das pessoas físicas e jurídicas.
O atributo mais pitoresco do DBCFT decorre do referido “border adjustment”. Esse atributo remete a um aspecto essencial, e frequentemente debatido, dos tributos sobre valor-agregado que muitos países – não os Estados Unidos – adotaram há décadas em seus sistemas.
A expressão “valor agregado” é suficiente para causar arrepio na maior parte dos políticos norte-americanos, já que os democratas acreditam que esse modelo de tributação é regressivo e os republicanos o encaram como uma máquina de fazer dinheiro (e a possibilidade de gerar receitas expressivas através de ajustes simples, como mero aumento de alíquotas, é uma tentação que os Republicanos sempre buscaram evitar).
Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, observou em certa oportunidade – não inteiramente em tom de chacota – que, se os democratas percebessem que o imposto sobre valor agregado é uma máquina de fazer dinheiro e os republicanos entendessem seus efeitos regressivos, ele seria implementado imediatamente – mas isso ainda não aconteceu. O “border adjustment” foi idealizado e direcionado a incentivar as exportações e frear as importações. E, à primeira vista, parece ter sido feito sob medida para atingir esses objetivos.
Defensores do DBCFT sustentam que a realização de “border adjustments” contribuiriam para a eliminação de controvérsias envolvendo preços de transferência. Se uma sociedade norte-americana adquire produtos de uma afiliada estrangeira por preços superiores aos praticados no mercado, isso apenas aumentará seu nível de despesas não dedutíveis, não gerando, contudo, qualquer erosão na sua base tributável.
Da mesma forma, se uma sociedade norte-americana vende produtos para uma afiliada estrangeira por preços inferiores aos de mercado, essa empresa simplesmente estará renunciando a sua chance de auferir mais rendimentos isentos.
Note-se, entretanto, que ainda haverá sim problemas com a manipulação dos preços praticados; o que ocorre apenas é que os incentivos serão invertidos. Em particular, sob o DBCFT, uma sociedade norte-americana poderia exportar seus produtos para afiliadas por um preço indevidamente alto, aumentando sua renda isenta e diminuindo o lucro tributável das afiliadas estrangeiras; poderia ainda importar bens e serviços de suas afiliadas por preços reduzidos, gerando tanto uma diminuição das suas despesas indedutíveis, bem como dos lucros tributáveis das afiliadas estrangeiras.
Certamente parece que a implementação do DBCTF aumentaria dramaticamente o custo dos produtos e serviços produzidos fora dos Estados Unidos. Se um importador norte-americano não puder deduzir tais custos no cômputo da base de cálculo do imposto de renda, essa despesa adicional seria potencialmente repassada para os consumidores, ou mesmo reduziria a lucratividade, ou ainda acarretaria ambos efeitos.
Segundo economistas, entretanto, isso não seria motivo de preocupação. Produtores locais dos Estados Unidos poderiam suprir esse vácuo e fornecer produtos norte-americanos em substituição àqueles que atualmente são adquiridos do exterior. Ademais, o dólar norte-americano se fortaleceria, e o custo dessa moeda para os consumidores de produtos importados se reverteria em um patamar próximo do nível atual, uma vez que, em tal cenário, o dólar forte compraria muito mais produtos estrangeiros.
Nós somos céticos. A indústria norte-americana do varejo, sem contar os experientes operadores de câmbio, parecem concordar conosco. A produção de alternativas locais para substituir artigos importados soa como algo positivo na teoria, mas existem muitos produtos estrangeiros – roupas de baixo custo, sapatos, TVs, bananas – para os quais não há uma alternativa realista disponível nos Estados Unidos em qualquer futuro próximo. Ajustes nas taxas de câmbio, por outro lado, também exigem certo tempo; e o que acontece com os importadores nesse ínterim?
Adicionalmente, um fortalecimento do dólar norte-americano pode ser favorável aos importadores, mas é ruim – na verdade, muito ruim – para os exportadores. Um dos principais objetivos do DBCFT é reforçar as exportações. Um dólar caro atua precisamente na direção oposta.
Não é possível para os Estados Unidos ter as duas coisas ao mesmo tempo. Até a mais avançada literatura em matéria econômica ainda não encontrou uma fórmula para fortalecer o dólar para os importadores e deixá-lo inalterado para os exportadores.
Além disso, praticamente todo o crescimento experimentado pelas grandes empresas norte-americanas tem ocorrido no exterior. Não raro, outros países insistem em alguma produção local, diminuindo a demanda por exportações dos Estados Unidos. Com efeito, o DBCFT parece ter sido formulado com o pensamento voltado para o setor industrial. Entretanto, o desenvolvimento mais significativo nas exportações norte-americanas não tem ocorrido na manufatura, mas sim nos setores de serviços e intangíveis.
As análises que fundamentam o DBCFT parecem presumir um mundo estático, no qual os Estados Unidos promulgam uma legislação para estimular a produção norte-americana e o resto do mundo fica inerte, sem oferecer qualquer contrarresposta. Isso parece altamente improvável. Como Jean-Paul Sartre observou em relação ao futebol, “tudo é complicado pela presença do outro time.” A mesma lógica é verdadeira no contexto da tributação internacional.
Tampouco as supostas vantagens administrativas do DBCFT são capazes de se sustentar quando examinadas mais de perto. A proposta admite que as empresas deduzam despesas relacionadas às exportações em que pesem os respectivos rendimentos serem isentos de tributação. Esse modelo implica prejuízos fiscais estruturais que podem ser utilizados para zerar a renda auferida com a venda, para compradores norte-americanos, de bens e serviços produzidos internamente nos Estados Unidos.
Esse resultado não é justificável e seria um suicídio político, porquanto propiciaria às grandes empresas exportadoras uma vantagem fiscal significativa quando comparadas a empresas operando exclusivamente no mercado interno norte-americano. Não há motivo para eliminar a tributação incidente sobre a renda produzida localmente. Ainda nesse contexto, considerando que os contribuintes deverão realizar uma alocação das despesas incorridas entre as suas atividades exportadoras e suas atividades puramente domésticas, haveria controvérsias comparáveis àquelas referentes aos ajustes de preços de transferência.
Os riscos inerentes ao DBCFT poderiam valer a pena se não existissem alternativas disponíveis. Contudo, há muitas outras propostas bem desenvolvidas em Washington para a implementação de reformas em matéria de tributação internacional.
O DBCFT poderia conduzir a uma nova era de glória econômica nos Estados Unidos, bem como às conquistas de exportação de outrora. Por outro lado, poderia provocar a falência de inúmeras empresas, a criação de um caos econômico interno, e o começo de uma guerra comercial. Com a economia norte-americana atualmente funcionando muito bem (desemprego baixo, salários reforçados, mercados atingindo recordes, crescimento superior à maior parte dos países desenvolvidos), tentar a sorte com o DBCFT faz realmente algum sentido?
* Colaboração de Flávia Cavalcanti, advogada do Ulhôa Canto, Rezende e Guerra e doutora em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo.
Autores: H. David Rosenbloom é membro do Caplin & Drysdale em Washington, DC, e diretor do Programa de Tributação Internacional da New York University School of Law.
Peter A. Barnes é consultor do Caplin & Drysdale e Senior Fellow da Duke University.