Autor: Rafael de Deus Garcia (*)
Policiais militares de todo o Brasil têm se deparado com a possibilidade de acessar dados pessoais nos celulares de abordados ou de presos em flagrante. No contexto das Polícia Civil e Federal, em regra, a posse do celular decorre de cumprimento de uma busca e apreensão autorizada judicialmente ou após a apreensão dos bens do preso em flagrante já em sede de delegacia. No entanto, ainda é comum o envio direto do celular para perícia sem a autorização judicial.
De fato, ainda não há uma orientação geral, tampouco uma jurisprudência consolidada, acerca da licitude ou não do acesso a dados pessoais em celulares, tanto em relação ao policial na rua quanto ao em delegacia. Este artigo chega à conclusão de que o acesso policial ao celular, por ser receptáculo de dados pessoais que permitem uma construção narrativa extensa e detalhada sobre a vida privada do indivíduo, é efetiva violação da privacidade, devendo ser considera objeto de tutela judicial.
Ainda assim, é defensável que haja a exceção para casos em que há fundada suspeita – a ser justificada posteriormente – de que a demora na obtenção da ordem judicial represente risco de perecimento de bem jurídico tutelado, como em casos de violência iminente a terceiro, por exemplo.
No entanto, parece razoável a tese de que, quando não há prejuízo algum para a investigação criminal, o acesso aos dados no celular apreendido só seja lícita quando autorizada judicialmente. Assim, garante-se não só o devido processo legal sem nulidades como também a devida proteção a direitos fundamentais.
Dados pessoais no celular como objeto de tutela judicial
Em síntese, dados pessoais são todas as informações codificadas de determinada pessoa. O tratamento desses dados gera uma informação pessoal (ZANON, 2013, p. 164)[1].
O celular é capaz de guardar uma enorme quantidade de dados pessoais, como por exemplo: álbum de fotos, música e vídeos pessoais, mensagens trocadas por e-mails e mídias sociais, comprovantes de transações financeiras, aplicativo de bancos que permitem o acesso aos dados e transações, registro de chamadas, agenda telefônica, agenda pessoal digital, bloco de notas, localizador GPS com histórico, pastas de documentos compartilhadas, histórico de navegação na internet, registro de gravações pessoais e até de conversas etc.
Assim, o acesso a dados pessoais no celular é capaz de gerar uma narrativa extensa e perigosa acerca de um indivíduo. Dessa forma, na medida em que a intimidade está relacionada à personalidade do indivíduo, na sua capacidade de livremente desenvolver seu senso crítico e de autodeterminação, o celular não pode ser divorciado do princípio da intimidade.
O conteúdo de um celular revela não só informações íntimas de seu possuidor, mas também de terceiros. Além disso, o celular não deve ser compreendido como mero receptáculo de dados pessoais, mas também como uma tecnologia que efetivamente altera as formas de ser na sociedade, relacionando-se de maneira próxima com a personalidade, esta devendo ser compreendida como objeto de proteção da intimidade.
Acesso de policias a celulares em decisões judiciais paradigmáticas
No HC 91.867/PA, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, foi decidido que não violava o princípio da intimidade o fato de o policial acessar a lista de telefones no celular de um indivíduo. A referida decisão é eventualmente utilizada como precedente para que policiais possam acessar dados em celulares.
O uso do precedente como uma permissão para o acesso a outros dados pessoais no celular é equivocado, pois ultrapassa os limites da decisão. Além disso, o uso do precedente decorre de uma má interpretação, uma vez que, no caso, o ministro fez a pergunta se o acesso à lista telefônica seria uma violação da intimidade. Por concluir que não, houve a manutenção da licitude da medida policial.
Aplicando-se devidamente o precedente, parece mais adequado fazer-se o questionamento, caso a caso, se o acesso a determinado dado pessoal no celular estaria ou não violando a intimidade.
Mais coerente com o contexto tecnológico atual se deu a decisão no RHC/RO 51.531, de relatoria do Ministro Nefi Cordeiro, STJ, que declarou ilícita prova produzida em decorrência de acesso a dados no celular sem autorização judicial:
Atualmente, o celular deixou de ser apenas um instrumento de conversação pela voz à longa distância, permitindo, diante do avanço tecnológico, o acesso de múltiplas funções, incluindo, no caso, a verificação da correspondência eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional.
Deste modo, ilícita é tanto a devassa de dados, como das conversas de whatsapp obtidos de celular apreendido, porquanto realizada sem ordem judicial.
No mesmo sentido, nos Estados Unidos da América, paradigmática foi a decisão no caso Riley v. California, 573 US, 2014. Sobre a utilização de informações obtidas sem mandado judicial em celular, a Corte Suprema entendeu, unanimemente, que a busca de conteúdo de celular sem mandado judicial é uma clara violação da Quarta Emenda à Constituição americana, devendo ser considerada ilícita.
A argumentação da Corte se deu no sentido de que, além de o celular não representar nenhum risco para os policiais que efetuam uma prisão, os celulares, hoje em dia, não podem ser considerados como mera conveniência tecnológica. Válida é a leitura do seguinte trecho da decisão, em tradução livre:
A capacidade de armazenamento de telefones celulares tem várias consequências interrelacionadas com a privacidade. Primeiramente, um telefone celular reúne em um lugar muitos tipos distintos de informações – um endereço, uma nota, uma receita, um extrato bancário, um vídeo – que revelam muito mais em combinação do que qualquer registro isolado.
Em segundo lugar, o telefone celular tem a capacidade de permitir que um tipo de informação transmita muito mais do que anteriormente era possível. A soma da vida privada de um indivíduo pode ser reconstruída através de mil fotografias marcadas com datas, localizações e descrições.
O mesmo não pode ser dito de uma fotografia ou duas de entes queridos postas em uma carteira. Em terceiro lugar, os dados em um telefone podem datar desde a compra do telefone, ou até mesmo mais cedo. Uma pessoa poderia carregar no bolso um pedaço de papel que o lembrasse de chamar o Sr. Jones; Ele não levaria um registro de todas as suas comunicações com o Sr. Jones para os últimos meses, como rotineiramente se mantém em um telefone.
Ausência de cláusula de reserva de jurisdição na CF/88 não é lacuna permissiva para a autoridade policial
Parte da doutrina e da jurisprudência tem entendido que a CF/88, no artigo 5º, inciso XII, por dar reserva de jurisdição para a quebra de sigilo das comunicações telefônicas, não mencionando especificamente o acesso a dados pessoais por parte das autoridades de investigação, permitiria que esse acesso fosse realizado sem a necessidade de autorização judicial.
Partindo de uma confusão sobre a diferença de regras e princípios, a busca pela cláusula de reserva expressa no texto constitucional transforma o inciso X da CF/88, do qual é primário em relação ao XII, em letra morta. Eventuais lacunas no texto constitucional não necessariamente exarem tom permissivo a práticas estatais que atingem os direitos fundamentais.
Do texto constitucional (art. 5º XII), abrindo o constituinte originário exceção apenas para a quebra do sigilo das comunicações, infere-se que foi conferida mais importância às comunicações de dados que às telefônicas. Além disso, é importante que se perceba que, no atual contexto tecnológico, praticamente não há dados sem imediato registro, principalmente no uso cotidiano do celular. Em outras palavras, as comunicações de dados precedem, quase sempre, de seu imediato registro, o que não os tornam menos importantes do ponto de vista da intimidade.
Não há dúvida de que o constituinte conferiu proteção especial às comunicações telefônicas por reconhecer nelas uma dimensão importante da intimidade. Disso decorre o seguinte raciocínio: se é devida a proteção legal à quebra das comunicações telefônicas por representar violação à intimidade, também é devida a proteção àquelas medidas que, no mesmo sentido, ainda que em outros objetos de tutela, violam a intimidade das pessoas em igual ou até em maior grau.
Não se interpreta a Constituição buscando no constituinte a previsão futurística. Ao contrário, busca-se os porquês da destinação de cada proteção conferida, para então adequar a prática jurídica e policial à CF/88.
Ainda que não se enxergue a cláusula de reserva na Constituição, ela já existe na legislação brasileira, pelo menos para as comunicações privadas armazenadas.
A Lei 12.965/14 menciona expressamente a necessidade de proteção dos dados pessoais produzidos pelo uso da internet, que obviamente incluem aqueles registrados em celular. Notória é a previsão de inviolabilidade e sigilo das comunicações privadas armazenadas, podendo ser quebrado apenas por ordem judicial.
Art. 7o O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
III – inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial;
Ou seja, ainda que se possa questionar o acesso a demais dados pessoais armazenados no celular, as mensagens privadas em mídias sociais como o WhatsApp só podem ser acessadas por ordem judicial.
Não é difícil sustentar que o acesso a dados pessoais em um celular pode representar até mesmo mais acesso a informações pessoais que o acesso às comunicações telefônicas. Até mesmo porque cada vez mais as comunicações telefônicas são realizadas por aplicativos de celulares que geram dados, tornando menos usual as ligações telefônicas pessoais em detrimento de outros tipos de comunicações interpessoais.
Significando, portanto, maior possibilidade de violação da intimidade o acesso a dados pessoais no celular do que as próprias interceptações telefônicas, torna-se absolutamente equivocada a busca por uma cláusula de reserva de jurisdição específica para acesso a dados pessoais. A conclusão desse raciocínio é um verdadeiro esvaziamento de sentido do inciso X do art. 5º, que parte de um pensamento que não é capaz de contextualizar o aparelho celular como objeto de tutela do princípio constitucional da intimidade.
Da exceção por periculum in mora da medida
Em situações cotidianas do policiamento ostensivo, é plenamente possível que a simples apreensão do aparelho celular, no momento da prisão em flagrante, para posterior perícia, seja mais do que suficiente como medida a se garantir o bom desenvolvimento das investigações. Basta, então, que a autoridade policial consiga convencer o juízo de que o acesso a dados no celular é necessário.
Afinal, deve-se sempre prezar pela consonância e harmonia entre direitos fundamentais e as atividades de segurança pública. Até mesmo porque só há efetiva segurança pública se o próprio Estado, mesmo na figura do policial, é visto como garantidor de direitos fundamentais.
Evidentemente, se a autorização judicial a ser buscada significar fundamentado risco de perecimento de direito, é plenamente aceitável que tal medida policial seja validada. No entanto, não podemos transformar exceção em regra. E, assim como o juiz deve fundamentar a decisão de quebra de sigilo, a autoridade pública não tem qualquer direito de não o fazê-lo, ainda que posteriormente.
É o argumenta a ministra do STJ Maria Theresa de Assis Moura no voto-vista no já citado RHC/RO 51.531:
Não descarto, de forma absoluta, que, a depender do caso concreto, caso a demora na obtenção de um mandado judicial pudesse trazer prejuízos concretos à investigação ou especialmente à vítima do delito, mostre-se possível admitir a validade da prova colhida através do acesso imediato aos dados do aparelho celular. Imagine-se, por exemplo, um caso de extorsão mediante sequestro, em que a polícia encontre aparelhos celulares em um cativeiro recém-abandonado: o acesso incontinenti aos dados ali mantidos pode ser decisivo para a libertação do sequestrado.
Não se encontra no caso dos autos, entretanto, nenhum argumento que pudesse justificar a urgência, em caráter excepcional, no acesso imediato das autoridades policiais aos dados armazenados no aparelho celular. Pelo contrário, o que transparece é que não haveria prejuízo nenhum às investigações se o aparelho celular fosse imediatamente apreendido – medida perfeitamente válida, nos termos dos incisos II e III do artigo 6º do CPP – e, apenas posteriormente, em deferência ao direito fundamental à intimidade do investigado, fosse requerida judicialmente a quebra do sigilo dos dados nele armazenados (p. 06 e 07 – grifei).
Para concluir, importante ressaltar como abusiva a conduta de o policial ludibriar o abordado ou o preso a desbloquear o celular. Além de violar o princípio da não autoincriminação, viola a presunção de inocência, que se estende até mesmo para abordados.
Tal prática, infelizmente corriqueira, abusa da ignorância da população, que se vê coagida ilegalmente a provar sua inocência ao policial que conduz a abordagem. O abordado não tem o dever de desbloquear o celular para que o policial possa checar sua inocência.
Vindo a encontrar qualquer indício de cometimento de crimes, por decorrência dessa conduta ilegal da autoridade policial, não há outra solução a não ser a declaração de nulidade de eventual persecução criminal. Obviamente, o consentimento consciente, não viciado, autoriza o acesso, muito embora seja difícil vislumbrar a real existência dessas confissões “espontâneas”.
Em síntese, a não ser por exceção devidamente fundamentada de que há risco iminente a direito o não acesso imediato ao acesso a dados no celular, a autoridade policial, do PM ao delegado, não está autorizado a acessar ou periciar o conteúdo dos aparelhos celulares.
O celular não somente registra quase todas as informações e comunicações de um indivíduo, como também a de terceiros próximos a ele. Tirá-lo da proteção do princípio constitucional da privacidade e da intimidade é verdadeira tentativa de aproximação a um Estado mais autoritário e arbitrário.
Na grande maioria dos casos, a simples apreensão do aparelho, para perícia posterior devidamente autorizada judicialmente, não apresenta qualquer risco à investigação criminal, e ainda garante a tutela adequada à vida privada das pessoas. A falta de uma cláusula de reserva de jurisdição específica não pode reduzir a força normativa do princípio da privacidade, tão caro às democracias.
Autor: Rafael de Deus Garcia é professor de Direito Penal e Processo Penal na Universidade Federal de Lavras (UFLA).