Autor: Eugênio José Guilherme de Aragão (*)
O Brasil está com febre, uma febre provocada por delações inflamatórias no âmbito da famigerada operação “lava jato”. Não se especula sobre outra coisa senão as possíveis informações extraídas de Marcelo Odebrecht a respeito da vida financeira de candidatos e de políticos de ponta. A nação se crê apodrecida. Nunca a nudez das “acoxambranças” (ou, em novilíngua, “surubanças”) de nossas figuras públicas teria sido exposta em toda a sua extensão.
Que as práticas políticas brasileiras nunca foram negócios ao estilo de Madre Teresa de Calcutá, todos já sabíamos. O imaginário popular é suficientemente crítico para com as transações do “pudê”. Mas, agora, o Ministério Público quis entrar nos detalhes da lascívia política.
Vamos com muita calma nesta hora. As práticas investigativas do Ministério Público e da Polícia Federal são tão controversas quanto as práticas políticas que desejam expor. Não nos entreguemos à febre. Ela é antes de mais nada o sinal de um estado patológico a refletir o grave momento da saúde política e institucional do país.
Uma pessoa encarcerada em fase pré-processual por mais de ano (agora já condenada em primeiro grau), sem a mínima noção sobre quando vai ser solta, e da qual se exige, em troca da esperança de um dia ver novamente o olho da rua, que entregue gente, de preferência petistas ligados a Lula e Dilma, diz o que querem que diga. O mal da tortura é que não oferece provas sólidas da verdade, mas apenas provas sólidas da (in)capacidade de resistência do torturado. E a tortura não precisa ser física, aquela do pau-de-arara ou da cama elétrica, nem carece de extração de unhas com alicate ou de queimaduras no peito com toco de cigarro. Pode ser psicológica, mais fácil de ser escondida e mais controvertida em sua conceituação.
No Direito Penal alemão se fala de “Aussageerpressung” (StGB, parágrafo 343) ou “extorsão de declaração”, como crime contra a administração, diferente da “Körperverletzung im Amt” (StGB, parágrafo 340) ou “lesão corporal no exercício da função”. Sem dúvida as nossas delações chegam muito próximas da “Aussageerpressung”. Ela não traz vantagem processual significativa ao delator, a não ser a perspectiva da pena menor e a possibilidade de gozar de liberdade provisória. Fossem, porém, as normas penais e processuais penais seguidas a risco, a prisão cautelar inexistiria na maioria dos casos e a dosimetria da pena não comportaria gravames tão exacerbados. Portanto, a vantagem da delação, se existente, é ser tratado conforme manda a lei. Não é nada lisonjeiro para o nosso sistema judicial que o investigado tenha de submeter-se a uma extorsão para ver reconhecido seu direito ao tratamento legal.
O Ministério Público se defende mediante recurso a comparações com o direito estrangeiro. É o velho complexo de vira-latas. Se lá fora fazem, é porque é bom. Estão em voga os paralelos com a operação “Mani Pulite”, de desbaratamento da influência de organizações mafiosas na política italiana, na década de noventa do século passado. Poucos neste Brasil febril sabem que nossa prática de investigação diferenciada para apuração de delitos relacionados a organizações criminosas quase nada tem em comum com a festejada prática italiana. Sequer o festejo é merecido, diante dos controvertidos impactos da operação na vida política daquele país. Devemos, porém, ter em mente que o modelo italiano se limita apenas às organizações do tipo mafioso ou armado, conforme previsto no artigo 416-bis do Codice Penale. O artigo 41-bis do Ordinamento Penitenziario Italiano, por sua vez, prevê o “carcere duro” para os integrantes desse tipo de organizações. A delação premiada (“disposizioni premiali”) foi introduzida pela Lei 203 de 12 de julho de 1991 como forma de abrandamento desse regime, em benefício de ex-mafiosos “arrependidos”, dispostos a colaborar mediante denúncia de comparsas na cadeia de comando da organização. Tais denúncias sempre implicavam sérios riscos para os colaboradores, submetidos ao princípio da “omertà”, ao dever de silêncio, cuja violação é punida com a morte. As negociações previam medidas especiais de proteção dos colaboradores, não só com o abrandamento do regime de execução da pena, mas, também, com a mudança de identidade e o acobertamento do paradeiro do delator e de seus familiares.
Trata-se de contexto bem distinto daquele que inspirou a legislação de repressão às organizações criminosas no Brasil. Para começar, o conceito de organização criminosa adotada entre nós é muito mais amplo do que o contemplado no artigo 416-bis do Código Penal italiano. A Lei 12.850/2013 define em seu artigo 1º, parágrafo 1º “organização criminosa” como “a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”. A nossa lei não contempla apenas organizações que adotam a violência ou ameaça como meio de manter sua funcionalidade. No Brasil, organizações desse tipo podem ser identificadas no tráfico de entorpecentes, como no caso do Comando Vermelho, dos Amigos dos Amigos, do Terceiro Comando, no Rio de Janeiro, ou do Primeiro Comando da Capital, em São Paulo. Violentas por natureza, elas se aproximam em alguns aspectos da tipologia das organizações mafiosas. Inserem-se perfeitamente na definição da Lei 12.850/2013, que, todavia, tem escopo bem mais amplo.
De fato, com a Ação Penal 470, o chamado caso do “mensalão”, houve, entre nós, certa banalização do uso do conceito de organização criminosa. Qualquer pessoa coletiva, como partidos políticos, instituições financeiras ou empresas, porque sempre “estruturalmente ordenados”, pode converter-se num abrir e fechar de olhos em organização criminosa, se seus filiados, sua direção ou seus sócios, na perspectiva do modelo teórico sobre os fatos em investigação, construído pela acusação, se “dividem em tarefas” para obter vantagens com a prática do crime. Aliás, já se sugeriu até que o próprio governo federal poderia converter-se em organização criminosa, o que seria um rematado contrasenso. Pior ainda, um ajuntamento solto de pessoas poderia, na ótica de certos jovens procuradores, converter-se em organização, mesmo que nem todas se conhecessem. Nesse caso, bastaria construir uma estrutura teórica, para ordenar essas pessoas por tarefas em “núcleos” de atuação supostamente inter-relacionados e atribuir a todas a participação vantajosa no resultado de crime, que pode ser de um só ou de algumas delas. A existência ou não de uma “affectio societatis” seria absolutamente irrelevante para a configuração da organização criminosa.
Montam-se com enorme facilidade teorias sobre fatos investigados, que muitas vezes, como meros construtos abstratos, pouco têm a ver com a realidade empírica. E a vaidade ou o comodismo dos investigadores, que não tardam de divulgar com pompa e circunstância seus achados, por provisórios que deveriam ser, acabam por não lhes permitir mudar o rumo da interpretação de tais fatos ao longo da investigação ou instrução criminal. Preferem socar as provas nas categorias teóricas pré-estabelecidas e escondem eventuais inconsistências ou disfarçam-nas com puxadinhos doutrinários, como, por exemplo, o uso distorcido da teoria do domínio do fato de Claus Roxin, para conceber uma responsabilidade objetiva penal de quem, na posição de liderança em que se encontrava quando da prática do crime ou dos crimes, deveria saber da ilicitude e presumivelmente apoiá-la ou, ao menos, tolerá-la por omissão própria ou imprópria. Claro que um conceito tão amplo de organização criminosa como o adotado por nossa legislação permite que nele tudo ou nada caiba, para parafrasear Gilberto Gil em sua canção “Metáfora”.
Nesse frágil contexto, o uso do instituto da delação premiada só pode levar a abusos. Se no modelo italiano a premiação da delação faz todo o sentido como único meio de garantir acesso a informações que a “omertà” bloqueia com uso de violência e ameaça à vida e integridade de membros da organização e de seus familiares, no modelo brasileiro, no qual se conceitua de forma aberta a “organização criminosa”, ela não favorece virtudes, mas apenas a saída esperta ou desesperada para quem, implicado, quer se livrar do cárcere ou amenizar a pena. O investigado delator não está em situação real de risco pessoal para ver na colaboração a única forma de sobrevida. A delação passa a ser apenas um conforto para quem está sob intensa pressão psicológica. Para obtê-lo, não necessariamente entrega informações completas, consistentes ou até mesmo verdadeiras. Conta com a desinformação e preguiça dos investigadores em aprofundar a apuração das informações. O resultado é esse: promete-se, mas nem sempre se entrega o prometido e a pessoa delatada não raro é acusada falsa ou distorcidamente, ao gosto de quem investiga ou instrui, para melhor adequá-la às categorias teóricas pré-estabelecidas do inquisidor.
É com esse déficit de seriedade que devemos compreender a delação premiada entre nós. E como seu resultado quase sempre é pífio com vistas à obtenção de elementos sólidos de convicção, acaba, com a corriqueira publicidade decretada ou vazada de modo ilegal, por afetar gravemente a presunção de inocência de cidadãos colhidos por depoimentos “acoxambrados”. Não é de estranhar que, na operação “lava jato” e outras do mesmo jaez, Delcídio do Amaral já tenha se dado ao direito de dizer que costuma lançar muita “bazófia” sobre as condutas dos outros, desdizendo o que disse em delação ao Ministério Público. Outro delator anunciou que dera um cheque de R$ 1 milhão de caixa dois à campanha de Dilma, quando o cheque era destinado a Michel Temer. Ao constatar o erro, quis retificar a declaração, agora já assegurando que era doação regular. E fica tudo por isso mesmo, sem qualquer reação da acusação, que parece se preocupar pouco com a qualidade das informações obtidas, já que o destino final do processo parece estar selado com a montagem do modelo teórico inicial sobre os fatos que calçam a ação penal.
Diante dessa péssima prática, todo cuidado com as delações de Marcelo Odebrecht é pouco. É fácil, para quem operou uma das maiores empresas brasileiras de atuação global, implicar meio mundo em suas más práticas empresariais. Se doações foram feitas a candidatos com seu devido registro na prestação de contas à Justiça Eleitoral, ainda poderá dizer, sem demonstração cabal, que a intenção dessas despesas era de suborno de diretores ou agentes públicos. Qual será, então, a diferença entre uma doação legal e outra ilegal, porque fruto de concussão ou corrupção? Será apenas um elemento subjetivo da intenção de doar, cuja demonstração fica adstrita à palavra do delator. Este nada tem a perder, pois não haverá quem por isso irá persegui-lo para ameaçar ou matá-lo ou colocar em risco sua família, como na prática dos mafiosos.
Fica, portanto, a advertência ao Ministério Público: embora a obsessão corporativa por reconhecimento público seja muito forte e o aplauso da mídia deveras tentador para dar prestígio à classe, é bom ter cuidado na divulgação dessas delações. Mais cedo ou mais tarde, a verdade poderá vir à tona e o erro judicial é por ora ainda, no nosso regime constitucional, passível de reparação em prol de quem dele foi vítima. Quanto à União, faria bem em buscar ação de regresso contra os que manusearam irresponsavelmente declarações sem consistência para mostrar serviço. Do contrário, somente nós, os bobões contribuintes, pagaríamos o pato.
O Brasil com febre está. A febre é sintoma da doença, do circo judicialiforme, que já destruiu parte da economia nacional e ajudou a derreter a nossa soberania. Urge combater a doença, remover os tumores circenses do Judiciário e restituí-lo à sua normalidade constitucional e legal, sob pena da transformação dos tumores em metástases.
Autor: Eugênio José Guilherme de Aragão é ex-ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, advogado e professor adjunto da Universidade de Brasília.