Autora: Tatiana Mehler Chiaverini (*)
A imparcialidade do julgador é uma garantia constitucional, assim como o devido processo legal e o juiz natural. O Código de Processo Civil de 2015 lista as hipóteses de impedimento e suspeição do juiz nos artigos 144 e 145. É errado considerar tais artigos como restritivos de direito, pois na verdade eles são garantistas. As hipóteses de impedimento e suspeição garantem ao jurisdicionado o direito a um julgador imparcial.
O foco da norma processual não é a pessoa física do magistrado proibido de julgar, mas a proteção ao prestígio da Jurisdição e aos direitos dos jurisdicionados. É a supremacia do interesse coletivo sobre o individual.
É possível afirmar que sempre existiu um interesse público em assegurar a imparcialidade do juiz e o prestígio da função jurisdicional, procurando não apenas a exclusão de juiz subjetivamente parcial, como também daquele que, por critérios objetivos, possa denotar uma dúvida de parcialidade.[1]
Tais artigos devem ser interpretados de forma sistemática, considerando a hierarquia entre normas e também de forma teleológica, em atenção aos fins da lei (artigos 1º do CPC/2015 e 5º da LINDB). O aspecto histórico também deve ser considerado, pois o CPC/2015 aumentou as causas de impedimento demonstrando clara intenção de aumentar a proteção à imparcialidade.
A interpretação da lei pode ter um efeito extensivo, declarativo ou restritivo. Tratando-se de norma destinada a garantir direito, nada impede o efeito extensivo, desde que a interpretação esteja de acordo com os valores constitucionais e o fim social da lei.
Sustentar a vedação do efeito extensivo é inverter o sistema jurídico e a hierarquia das normas, colocando o CPC/2015 acima da CF.
Uma garantia constitucional como a imparcialidade do juiz merece a máxima eficiência [2] e não pode ser limitada por interpretação de norma infraconstitucional.
As causas de impedimento do artigo 144 do CPC/2015 são taxativas ou em numerus clausus, característica que não impede a interpretação de resultado extensivo.
O artigo 144, VI do CPC/2015 estabelece que o juiz está proibido de julgar quando for empregador de qualquer das partes. No CPC/73 o fato do juiz ser empregador de uma das partes era hipótese de suspeição. Celso Agrícola Barbi comentou essa hipótese:
A circunstância de ser o juiz empregador da parte leva à suspeição. Justifica-se o texto legal porque a relação de emprego que pode ter alguém com o juiz é geralmente de proximidade de contato, o que gera afeição. Normalmente, o empregado do juiz é de caráter doméstico ou assemelhado, como a cozinheira, o motorista, o jardineiro, o trabalhador rural; nessas atividades, predomina certo tom paternalista, por parte do empregador, dado o contato frequente e próximo. Isto pode levar à parcialidade, pela ocorrência de simpatia, desaconselhando a presença do juiz na causa daquelas pessoas.[3]
A hipótese deixou de ser suspeição para ser causa de impedimento no CPC/2015, configurando verdadeira proibição de atuação do juiz empregador de qualquer das partes. Se antes a relação de emprego gerava dúvida de parcialidade, agora há certeza de parcialidade por determinação legal.
Interessante questão é o alcance do vocábulo “empregador”.
O juiz não pode julgar demanda de sua empregada doméstica ou motorista particular, mas casos mais complexos exigem um esforço maior do intérprete. Um bom exemplo é a faxineira, que presta serviços ao juiz, limpando sua residência duas vezes por semana.
A legislação específica diz que essa faxineira não é empregada doméstica.
Art. 1º. Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana, aplica-se o disposto nesta Lei. [4]
A faxineira presta serviços ao juiz de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal, mas nos termos da lei trabalhista o juiz não é empregador da faxineira. Apesar de só existir uma relação de trabalho e não de emprego nos termos da lei especial, é certo que o juiz não deve julgar demanda de sua faxineira. A relação de trabalho com pessoalidade e subordinação é incompatível com a imparcialidade do julgador.
A interpretação do vocábulo “empregador” depende do respeito ao artigo 37 da CF, que estabelece o princípio da impessoalidade na administração pública.
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…).
Conforme ensina a doutrina do juiz e professor Artur César de Souza, não basta que o magistrado seja imparcial, é preciso que ele pareça imparcial [5].
Pelo mesmo motivo o juiz está impedido de julgar casos de seus assistentes diretos e dos funcionários do cartório.
O juiz não é empregador desses servidores públicos, concursados ou comissionados. O empregador é o Estado. Todavia, o juiz tem com esses funcionários uma relação de trabalho com as principais características da relação de emprego.
Segundo a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, o juiz tem o dever de exercer assídua fiscalização sobre os subordinados.[6] Na relação de trabalho entre o juiz, seus assistentes e os funcionários de seu cartório há pessoalidade, subordinação e habitualidade.
O juiz está impedido de julgar até mesmo os casos dos funcionários do cartório com quem tem pouco contato diário, pois não se trata de uma questão subjetiva de intimidade ou amizade.
Pouco importa que o magistrado se sinta apto a julgar com equidistância determinado caso de funcionário de seu cartório. Não se trata de suspeição. Não é questão de foro íntimo do julgador.
O vocábulo “empregador” deve ser interpretado de forma a incluir toda relação de trabalho dotada de pessoalidade e subordinação. O juiz está impedido de julgar o caso sempre que tiver esse tipo de relação de trabalho com uma das partes, nos termos do artigo 144, VI do CPC/2015.
De acordo com essa interpretação da norma está a redação do ministro Mauro Campbell Marques em acórdão do Superior Tribunal de Justiça:
Além disso, na seara pública, não se pode delimitar os institutos unicamente com base na legislação civil, uma vez que, aqui, o dever de imparcialidade dos magistrados sofre influxos dos princípios da impessoalidade, da moralidade e da eficiência – normas tão caras ao Estado Democrático de Direito.
Certamente, embora (i) não esteja caracterizado legalmente um caso de parentesco por afinidade e (ii) exista uma grande controvérsia sobre o espectro de abrangência da impessoalidade, da moralidade e da eficiência, faz parte do núcleo central destes princípios, no âmbito processual, o dever de distanciamento subjetivo do magistrado da causa, que fica comprometido na presente ação. [7]
Uma interpretação restrita da norma processual não pode ser usada para limitar a garantia de imparcialidade. Situações absurdas e prejudiciais ao prestígio da Jurisdição podem decorrer dessa imprudência.
A possibilidade de interpretação extensiva não se aplica apenas à hipótese do juiz empregador de qualquer das partes, mas também aos demais casos de impedimento. Sempre que o intérprete fizer a subsunção do caso concreto à norma, deve ter em mente os ditames constitucionais e o fim social da lei, para definir o alcance de cada expressão e a extensão do impedimento do juiz.
Autora: Tatiana Mehler Chiaverini é advogada e sócia fundadora do escritório Mehler Chiaverini Sociedade de Advogados. Graduada em Direito pela PUC-SP, mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP e pós-graduada em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Foi procuradora do município de São José do Rio Preto (SP) e presidente da Comissão de Mediadores do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem (Conima) e é membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam).