Para além das grades do sistema penitenciário federal

Autores: Alcione Batista Leite, Amusa Gabrielle Felisberto de Mélo e Silva, Cristiano Tavares Torquato, Jocemara Rodrigues da Silva, Jussara Pessoa Oliveira e Zildimeiry Cristine Vieira Pedrosa (*)

 

Diante de fatos recentes envolvendo barbáries dentro de unidades penitenciárias, reacendeu por parte da sociedade a necessidade de explicar o comportamento dos custodiados e de enfatizar as possíveis omissões por parte das autoridades constituídas, em todas as esferas administrativas, a fim de evitar que novos eventos venham a ocorrer.

Perdura no consciente coletivo que as penitenciárias são locais sem lei onde pessoas são jogadas “à própria sorte” e esquecidas por governos interessados em manter uma aparente sensação de segurança e respostas às ofensas às leis penais.

Corroborado pela descrença das instituições brasileiras, a maioria da sociedade desconhece o lado assistencial do sistema penitenciário.

O presente ensaio tem por finalidade demonstrar que, a despeito do pensamento coletivo de que as instituições públicas brasileiras estão falidas e de que as repartições de custódia são meros depósitos de humanos bestiais; há pessoas inconformadas que arriscam a vida para mudar um retrato que ninguém quer ver, nem esperam por melhoras.

É o caso de servidores que elaboram e executam as experiências-piloto dentro das unidades penitenciárias federais, subsidiariamente às atribuições funcionais. Entre elas, são desenvolvidas atividades educacionais, comportamentais, pesquisas e propostas de alteração legislativa. Todas essas atividades com resultado positivo para os custodiados, os servidores e a sociedade.

Dentre as atividades educacionais destaca-se os projetos Remição pela Leitura, De Olho no Futuro e Cine Documentário.

Em execução desde 2009, o projeto Remição Pela Leitura iniciou como uma experiência cujo fim era fomentar a leitura entre as pessoas privadas de liberdade no sistema penitenciário federal. O método adotado consiste em fornecer um livro ao custodiado para leitura em 30 dias e, após o período, eles elaborarem um resumo, que é avaliado por uma comissão específica de servidores com orientação de um pedagogo.

Em 2011, alterou-se a Lei de Execuções Penais para permitir a remição da pena por meio do estudo. Tal evento modificou a forma de avaliação dos textos, passando-se a verificar a qualidade textual e a incidência de plágios. Com o advento da Portaria Conjunta do Depen-CJF 276/2012, as análises das avaliações passaram a considerar os critérios: estéticos, de limitação ao tema e de fidedignidade. Os textos que respeitam esses critérios recebem quatro dias de remição de pena, e há uma limitação de 12 livros por ano, equivale a 48 dias de remição por ano.

Os resultados positivos demonstraram que a experiência foi um sucesso, e não demorou para repercutir dentro e fora do país. Em 2012, o estado do Paraná sancionou a Lei estadual 17.329/2012, instituindo a Remição pela Leitura em seus estabelecimentos de custódia.

Desde sua instituição até 2014, no sistema penitenciário federal participaram do projeto 4.128 custodiados federais, produziram 3.469 resenhas, das quais 3.117 foram aprovadas.

O projeto De Olho no Futuro também representa um importante passo rumo ao exercício pleno do direito à educação nas prisões. Essa ação educacional visa auxiliar na preparação das pessoas privadas de liberdade para o processo avaliativo do Enem-PPL, na Penitenciária Federal de Mossoró. Ela decorre da parceria interministerial entre o Ministério da Educação (MEC) e o da Justiça e Cidadania (MJC), visando incorporar programas educacionais que eram restritos apenas aos entes federativos, como o Enem, o Pronatec, o Encceja, o Sisu e outros.

Em 2015, os setores de reabilitação de todas as unidades federais conseguiram a adesão de 51,9% da população total de presos federais para a realização do processo avaliativo do Enem-PPL. Ao analisar esse dado e considerando que apenas 9,38% dos internos estão aptos a ingressarem em faculdades (concluintes do ensino médio) e 70,01% estão aptos a concluir o ensino médio, pode-se deduzir que quase a totalidade dos internos participaram do Enem-PPL. Qualitativamente, verificou-se que alguns participantes obtiveram notas superiores a 800 pontos nas provas de redação.

Em 2016, a Penitenciária Federal de Mossoró possuía 54 custodiados com possibilidade de fazer o Enem. Desses, sete se recusaram a participar do projeto, um não possuía a documentação necessária para a inscrição e três se recusaram a fazer a prova mesmo tendo participado da preparação durante todo ano. Assim, 43 participantes realizaram a prova (índice de 79,62%).

Com o resultado do exame, foi possível observar que as notas foram superiores à média nacional em quase todos os eixos (exceto o de “linguagens e códigos”). Verificou-se também um aumento na pontuação da prova de redação, cuja nota máxima foi de 860 pontos.

Tais resultados permitem a conclusão de que projetos como o De Olho no Futuro possibilitarão a aquisição de conhecimento e ampliarão a perspectiva de futuro das pessoas privadas de liberdade, permitindo que possam escolher um novo caminho a ser trilhado.

Outra experiência educacional desenvolvida é o Cine Documentário, que nasceu na Divisão de Reabilitação (Direb) da Penitenciária Federal de Porto Velho, a quem compete promover atividades que contribuem para a ressocialização do interno, por meio da construção do senso crítico através de atividades de resgate de vínculos familiares, socioeducativos e culturais.

A atividade visa unir uma regalia (oferecimento mensal de filmes culturais para os presos que não estão em cumprimento de sanções disciplinares, nos termos da Portaria 147/2012) à prática educativa, através da exibição de documentários, e, em seguida, a confecção de uma resenha crítica sobre o tema. Posteriormente, os textos são encaminhados e avaliados pela Direb.

Almeja-se que o participante repense sobre as consequências de seus atos e resgate os valores sociais positivos, consequentemente, sejam formados valores e atitudes construtivas. Portanto, as avaliações levam em consideração (a) os aspectos formadores do processo crítico, (b) a reflexão sobre o conteúdo apresentado e (c) a formação de valores éticos e civilizatórios.

Estuda-se a possibilidade de elaborar uma portaria que permita a utilização dos textos para a remição da pena. Mesmo que não venha a ser concretizado, o projeto foi lançado com a perspectiva de se construir um processo educacional que permita a (res)socialização e a aplicação prática do conhecimento formal aliada à formação ética e política dos participantes.

Os servidores das unidades também realizam atividades e pesquisas comportamentais, como o projeto Colorindo o Tempo e a pesquisa sobre a Prevalência de “Lesões cervicais não cariosas” (LCNCs) em internos custodiados na Penitenciária Federal em Porto Velho e sua relação com fatores etiológicos influenciados pelo aprisionamento.

O projeto Colorindo o Tempo é outra iniciativa da Direb da Penitenciária Federal de Porto Velho, com o apoio da Justiça Federal da 1ª Região, e objetiva a promoção da expressão dos presos federais por meio da arte e a redução das consequências do processo de institucionalização.

Embora controverso, esse projeto utiliza conceitos da neuropsicologia para promover o relaxamento, estabilizar o humor e reduzir a ansiedade. A ideia é reduzir o hormônio chamado adrenalina para aumentar o neurotransmissor chamado dopamina, ligado ao sistema de recompensas do sistema nervoso central e que é responsável pelas emoções.

A grande vantagem desse tipo de atividade é por ser um exercício individual que pode ser feito na cela, sem supervisão, no período escolhido pelo participante e sem interferir nas medidas de segurança.

A proposta inicial é a persecução dos seguintes procedimentos: (1º) aquisição de livros ilustrados, lápis de cor (ideal 12 cores), apontador e borracha; (2º) instrução dos responsáveis pela entrega dos materiais e controle das atividades, sobre a importância da ação, o período predeterminado pela equipe da Direb e sobre o recolhimento do material e encaminhamento a Direb; (3º) realização de uma oficina inicial com terapeuta ocupacional, psicólogos e agentes do sistema, para instruir os internos sobre os benefícios da atividade de colorir; (4º) avaliação integrada e contínua do projeto, através de reuniões semestrais, que resultará em relatórios periódicos, visando avaliar e melhorar todos os procedimentos do projeto e seus resultados qualitativo e quantitativo; (5º) prestação de contas dos custos financeiros e a comprovação das aquisições dos materiais, enviando-os mensalmente à Justiça Federal (TRF-1), e o armazenamento das notas fiscais originais na Direb, para posterior comprovação, se necessário.

Por ser uma atividade inédita e por ter iniciado há pouco tempo, é precipitado tirar conclusões, mas o que se espera a longo prazo é a redução das intervenções medicamentosas e as consequentes escoltas médicas, gerando uma melhora emocional para os participantes e uma economia de recursos públicos, sem impacto para a segurança.

A execução da pesquisa sobre a Prevalência de “Lesões cervicais não cariosas” (LCNCs) em internos custodiados na Penitenciária Federal em Porto Velho e sua relação com fatores etiológicos influenciados pelo aprisionamento é outro exemplo de referência dentro do Plano Nacional de Saúde e de preocupação em prestar a devida assistência ao preso dentro dos presídios federais.

Após verificar a uma elevada quantidade de requerimentos para atendimento odontológico, com queixas de dor e hipersensibilidade entre os custodiados federais, iniciou-se o estudo sobre a prevalência de LCNCs e a relação do ambiente prisional como potencializador dos fatores etiológicos.

As LCNCs são lesões decorrentes da perda de tecido mineralizado na região cervical da coroa dentária e superfície radicular subjacente por meio de um processo não relacionado à cárie. Elas constituem o grupo de lesões de maior complexidade na clínica odontológica, especialmente no que se refere à identificação do agente etiológico, uma vez que sua etiologia é variada e multifatorial envolvendo dieta alimentar, manifestações psicológicas, hábitos de escovação, hábitos parafuncionais e distúrbios gástricos. E estão inter-relacionadas ao quadro de hipersensibilidade dentinária, causando dor e desconforto ao portador.

O caminho metodológico do estudo iniciou com uma pesquisa aplicada de natureza quantitativa, descritiva, bibliográfica e documental. A coleta de dados abrangeu uma amostra de 70 internos que estiveram custodiados nesta penitenciária no período de outubro de 2015 a março de 2016.

O estudo apontou uma prevalência alta (72,8%) de LCNC associada ao estado psicológico dos internos custodiados na PFPV, à presença de hábitos parafuncionais, aos distúrbios de natureza gástrica e à escovação inadequada.

Em decorrência dessa pesquisa, atualmente estuda-se a elaboração de uma cartilha para incentivar a correta escovação e a importância da dieta alimentar como meio preventivo, bem como minimizar os hábitos parafuncionais. Também a utilização de materiais odontológicos mais eficazes nas restaurações e na dessensibilização dentinária ocasionadas por essas lesões, resultando na melhoria da qualidade de vida dos internos do SPF. Em longo prazo, espera-se a redução de atendimentos odontológicos e dos custos correlacionados.

Para se entender a tentativa de formalizar um novo instrumento de classificação e individualização da pena do sistema penitenciário federal, é preciso saber que sua finalidade é orientar a individualização da execução penal por meio da análise dos antecedentes e personalidade, conforme previsão do artigo 5º da Lei de Execuções Penais. Tal avaliação é de responsabilidade das comissões técnicas de classificação, constituídas por profissionais de vários setores.

Atualmente, para execução dos trabalhos, a comissão técnica de classificação das penitenciárias federais utiliza instrumentos específicos de cada profissional envolvido — entrevistas, exames, diagnósticos, visitas institucionais — e, após a análise, os dados são compilados em abas individualizadas localizadas em sistemas integrados denominado Siapen, entretanto, a gestão isolada dos dados nesse tipo específico de metodologia impede a maior interação entre os setores de trabalho.

Aspirando a análise interdisciplinar condizente com o perfil dos presos federais, idealizou-se a construção de um novo instrumento de classificação e individualização de pena que permita o inter-relacionamento dos dados multissetoriais.

A forma e metodologia utilizadas foram baseadas em instrumento já existente no estado de Rondônia. No documento original, o objetivo é realocar o interno para penitenciárias específicas dentro do estado, como as de segurança média ou mínima, além de inserir o preso em atividades de trabalho manual.

Verifica-se a imprescindibilidade da construção de um instrumento que permita traçar um panorama da realidade das unidades e corroborar com a fiel execução dos preceitos da Lei de Execução Penal. Esse novo instrumento reúne as características necessárias a produzir um espaço de discussões democráticas, em torno de critérios objetivos e subjetivos, que permita o pleno exercício do princípio da individualização da pena e das assistências previstas na Lei de Execuções Penais.

Tais experiências foram apresentadas e debatidas diante dos diretores e servidores responsáveis pelos setores de segurança, da reabilitação, da saúde e da educação de todas as unidades penitenciárias federais, no final de 2016, no 1º Encontro Temático das Assistências no Sistema Penitenciário Federal, realizado pela Coordenação Geral de Assistência Penitenciária (CGAP) da Diretoria do Sistema Penitenciário Federal (DISPF) do Depen, que contou ainda com a presença dos gestores nacionais responsáveis pelo planejamento e execução de políticas assistenciais, ligados ao Ministério da Saúde, do Ministério da Educação e do Inep.

Nesse evento, permitiu-se o compartilhamento de experiências exitosas nas áreas da educação, da saúde e do serviço social de pessoas privadas de liberdade, além de ter iniciado a construção de um plano de ação integrado visando o aprimoramento dos procedimentos operacionais.

Percebe-se que o jovem sistema penitenciário federal, mesmo sendo, na prática, um regime excepcional de cumprimento de pena, vem amadurecendo e rendendo bons frutos à sociedade brasileira no combate ao crime organizado; sem olvidar a primazia do respeito aos direitos humanos fundamentais, como ferramenta para a proteção da integridade física e moral, da dignidade da pessoa humana. A medida em que se aprimora, o Depen desconstitui o paradigma de que é possível tratar com dignidade um condenado e, concomitantemente, proteger a sociedade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Autores: Alcione Batista Leite é servidora pública federal, pós-graduanda no Programa de Residência Multiprofissional em Saúde – Saúde da Mulher pelo Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná e graduada em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal do Paraná.

Amusa Gabrielle Felisberto de Mélo e Silva é assistente social do Departamento Penitenciário Nacional, especialista em assistência penitenciária pela Escola Nacional de Serviços Penais do Depen, pós-graduada em Gestão de Projetos e graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Alagoas.

Cristiano Tavares Torquato é diretor da Penitenciária Federal em Porto Velho (RO), pós-graduado em Direitos Humanos e Segurança pública e graduado em Direito.

Jocemara Rodrigues da Silva é coordenadora-geral das Assistências nas Penitenciárias da Diretoria do Sistema Penitenciário Federal do Depen, pós-graduada em Psicopedagogia Institucional e Clínica e em Ad

Jussara Pessoa Oliveira  é especialista em Assistência Penitenciária, pedagoga na Penitenciária Federal em Mossoró/RN, membro do Conselho da Comunidade da Comissão Técnica de Classificação, do Núcleo de Ensino e Operações, e responsável Pedagógica do Enem-PLL na Penitenciária Federal em Mossoró. Pós-graduada em Leitura e Produção de Textos pela Universidade do Oeste Paulista e graduada em Pedagogia, com Habilitação em Educação Infantil, pela Universidade Estadual Paulista.

 Zildimeiry Cristine Vieira Pedrosa  é servidora pública federal na Assistência à Execução Penal/Odontologia do Depen, especialista em Saúde da Família pela Universidade Federal da Paraíba e em dentística/odontologia estética pela Associação Brasileira de Odontologia. Graduada em Odontologia pela UFPB e em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande.


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