Autor: Roberto Di Cillo (*)
Em recente entrevista ao jornal Valor Econômico, um subprocurador da Procuradoria-Geral da República teria dito que “a leniência não existe para destravar crédito” e, mais, que “leniência não tem por objetivo salvar empresa”. Na mesma entrevista, o jornal atribui ao subprocurador em questão a percepção de que o verdadeiro risco da assinatura de acordos de leniência somente com o MPF, e não com os demais órgãos da administração, seria o de precificar a corrupção, e não o de insegurança jurídica. Disse ele, segundo o Valor: “Corruptor e corrupto não vão se ver mais obrigados a fornecer provas um contra o outro”, em provável referência ao dilema do prisioneiro, que talvez seja aplicável somente em questões relativas a acordos de colaboração premiada, salvo situações-limite de uso da empresa como alter ego dos corruptores, para as quais a Lei 12.846/13 prevê até a possibilidade de dissolução compulsória.
Sem dúvida, o Ministério Público vem desempenhando papel relevante na “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, que lhe é atribuído pela Constituição Federal, com louvores e críticas por parte de uma sociedade dividida por razões ideológicas, ressaltadas pelas redes sociais e facilidade de acesso à informação, que nem sempre é correta, pela tecnologia de amplo acesso hoje em dia no Brasil.
De qualquer forma, não seria razoável pressupor que o Ministério Público ou qualquer de seus membros (ou, naturalmente, este autor) tenha o monopólio do “saber”, nem que tenha mandato para decidir, em toda e qualquer situação, o que representa o melhor interesse público. Além disso, a Lei 12.846/13, de iniciativa de um executivo cujos principais líderes, atualmente, encontram-se sujeitos a diversos processos de natureza criminal, alguns deles inclusive presos preventivamente, aprovada por um Congresso com alguns membros sob suspeita e sancionada por uma presidente que sofreu impeachment, como qualquer lei, precisa ser interpretada em sua integralidade e, ainda que com eventuais vícios de base, o fato é que foi aprovada e sancionada por aqueles que, à época, tinham legitimidade para tanto.
Não se deve esquecer, ainda mais em tempos de dificuldades econômicas, por um lado, crises políticas em diversos níveis, de outro lado, que a lei comentada na entrevista do jornal Valor, a Lei 12.846/13, foi modelada, em parte, em conceitos da legislação ambiental. A responsabilidade objetiva, por exemplo, foi sugerida em razão de uma percepção de sucesso no âmbito ambiental.
Eventual “manifestação da PGR em ação declaratória de inconstitucionalidade afirmando que a leniência tem como finalidade a investigação” não expande, por si só, a Lei 12.846/13, por um lado, nem leva em consideração caraterísticas essenciais do ambiente empresarial brasileiro. E que características essenciais são essas?
Considerar que toda e qualquer empresa é criada, no Brasil, para cometimento de algum crime ou por uma conveniência fiscal é incorrer em grave erro, pois, além de tudo, há questões de captação de recursos, diluição de riscos (inclusive via multiplicidade de sócios, às vezes os próprios fundadores e/ou seus herdeiros, às vezes, não), questões tecnológicas etc. Claro que se deve separar o joio do trigo, e algumas empresas podem, sim, ter finalidade ilegal e podem ter sido criadas como empresas de fachada, como se bem viu até agora na “lava jato” e em tantas outras situações, mas não em todos os casos.
Fato é que muitas das empresas que vêm buscando soluções junto à AGU e ao Ministério da Transparência/CGU são legítimas, ainda que tenham crescido além do que talvez deveriam por terem sido envolvidas em esquemas nebulosos (para não dizer criminosos, às vezes), engendrados por administradores e/ou sócios, estes, sim, que merecem ser e já estão sendo punidos sob o rigor da lei penal, com a flexibilização eventual que pode ser conferida nos termos do instituto da colaboração premiada, sob o amparo da Lei 12.850/13, sancionada na mesma época da Lei 12.846/13.
A grande questão é que, ao focar na leniência com a finalidade exclusiva da investigação efetivamente penaliza, em alguns e talvez muitos casos, uma infinidade de interessados-legitimados (como possível tradução para stakeholders, principalmente empregados diretos e indiretos) que nada tiveram a ver com o mau uso da empresa, quer porque não tinham à disposição mecanismos confiáveis e efetivos para reporte de irregularidades, quer porque delas não tinham conhecimento.
Além disso, a dissolução light da empresa terá como consequência necessária a diminuição da arrecadação tributária, penalizando, também, União, estado e município, para não falar na destruição de reputações em diversos níveis e de capital intelectual formado ao longo de anos.
Daí que o Ministério Público pode estar se distanciando um pouco de seu importante papel constitucional de defesa dos interesses sociais, principalmente quando toma medidas que efetivamente custam milhares e milhares de empregos sem envolver e ouvir todos os interessados-legitimados, o que, em tese, poderia atrasar a celebração de acordos de leniência, mas talvez não.
Ora, falou-se acima do Direito Ambiental. Desde o final da década de 1990, pessoas físicas e jurídicas podem ser claramente responsabilizadas por crimes ambientais. Pessoas jurídicas estão sujeitas a responsabilidade administrativa, civil e penal, nos termos do artigo 3º da Lei 9.605/98, sem prejuízo da responsabilidade “das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato”, o que, provavelmente não por casualidade, coincide com dispositivo semelhante previsto pela Lei 12.846/13 .
E é de se atentar para o artigo 24 da Lei 9.605/98, que está dotado da sensibilidade para diferenciação entre empresa legítima e empresa ilegítima:
“Art. 24. A pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime definido nesta Lei terá decretada sua liquidação forçada, seu patrimônio será considerado instrumento do crime e como tal perdido em favor do Fundo Penitenciário Nacional”.
Claro que um mundo cabe na definição genérica de “preponderantemente” no texto legal acima transcrito, mas o escopo do presente precisa ser objetivo e disso se deve tratar em outro texto.
Ainda na questão do Direito Ambiental, é fato público que o próprio Ministério Público Federal já celebrou (termos de) acordos para ajuste de conduta, ou TACs, com pessoas jurídicas e com outros órgãos para tratar de matérias ambientais e outras de interesses difusos ou coletivos, com alguma frequência precedidos de audiências públicas. Num caso, pelo menos, o termo de acordo foi celebrado expressamente com independência da responsabilidade criminal das pessoas físicas e da própria pessoa jurídica. Na essência, acordos de ajuste de conduta, acordos de leniência e acordos de colaboração, os últimos disponíveis exclusivamente para pessoas físicas, são gêneros da mesma espécie, de acordos, o que pressupõe algum grau de concessões recíprocas, ou não teriam tais nomes.
Por fim, reforçando-se o papel muito relevante do Ministério Público na recuperação de recursos e penalização de todos os envolvidos em corrupção, não se pode perder de vista que a Lei 12.846/13 é menos abrangente do que a Lei 9.605/98 com relação às responsabilidades das pessoas jurídicas e não fala em responsabilidade penal da empresa, e sim em administrativa e cível, conforme seu artigo 1, a seguir transcrito:
“Esta Lei dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira”.
Há, naturalmente, a possibilidade de a entrevista com o subprocurador mencionada logo no começo deste artigo não refletir adequadamente o entendimento do próprio subprocurador, da PGR e de boa parte dos membros do Ministério Público, ficando o convite para mais esclarecimentos e reflexões.
Autor: Roberto Di Cillo é advogado em São Paulo e LLM pela Universidade de Notre Dame (EUA/Inglaterra).