Autor: Cezar Roberto Bitencourt (*)
A espetacularização das prisões quase diárias da “lava jato”, acompanhadas por grande alarde da mídia, as megas entrevistas coletivas em redes de televisão a cada “operação policial”, as ilegais conduções coercitivas de pessoas que jamais foram convidadas a comparecer às repartições repressoras, entre outros tantos abusos oficiais, estão a agredir os direitos fundamentais do cidadão e também o Código de Processo Penal brasileiro.
Há três anos temos assistido os espetáculos lamentáveis e totalmente desnecessários, transformando a prisão em regra, quando deveria ser exceção; começou-se prendendo para garantir a produção de prova, passou-se a prender por reconhecer que não existe prova contra o investigado. Em outros termos, prende-se para investigar, para descobrir provas, para forçar delações, por precisar de tempo para produzir provas, mas não por necessidade da prisão. Prende-se filhos, esposas, agregados, empregados, porteiros, secretárias, enfim prende-se a família para forçar a delação, prende-se pela manhã, relaxa-se a prisão a tarde, como ocorreu recentemente.
O Ministério Público confessou na mídia que prende para forçar a delação e facilitar as investigações; o magistrado decreta a prisão de alguém pela manhã, mas a relaxa a tarde ao saber que o pretenso investigado está negociando uma delação, deixando claro que o objetivo da prisão era só para forçar a delação, o que é um procedimento lamentável do julgador. Há, na verdade, uma grande inversão da ordem natural das coisas, isto é, da ordem jurídica, dos direitos e garantias do cidadão, parecendo que realmente escreveram uma nova constituição, uma nova ordem jurídica, exclusiva para eles, ao arrepio da Carta Magna deste país.
Aliás, a própria mídia acaba de sofrer na pele os abusos patrocinados e “consagrados” pela famigerada “lava jato”, a rigor, como vimos, não apenas “lava”, pois também destrói, danifica, achincalha, passa por cima de tudo que encontra pela frente, não importando quão grave sejam as consequências das truculências inauguradas por dita operação, abrindo espaço para toda sorte de abusos operacionais, abusos de autoridades, etc.
Esses são alguns dos métodos nada ortodoxos utilizados pela “lava jato” para ganhar a popularidade, conquistar a mídia, e transformar seus atores em falsos heróis nacionais. Mas todos os métodos arbitrários, ilegais, violadores de garantias constitucionais virou moda na linha de “os fins justificam os meios”, fez escola e agora muitos querem ser os “moros da vida” ou os falsos “paladinos da justiça” — os vendilhões do templo — ávidos por 15 minutos de popularidade, sem medir as consequências de seus atos, por mais tresloucados, irresponsáveis e inconsequentes que possam ser, mesmo que causem catastróficas consequências nacional e internacional. O importante agora para policiais seguidores dessa filosofia é ousar, reunir o maior número de agentes suficientes para poder declarar que se trata da maior operação jamais realizada pela polícia federal, a “operação carne fraca”.
Mas o açodamento, a ânsia punitiva e a necessidade de aparecer na mídia e causar repercussão internacional cega o comandante da denominada “maior operação” da respeitável Polícia Federal que decide, equivocadamente, “dispensar” o indispensável apoio dos seus eternos colaboradores, quais sejam, os peritos oficiais da corporação. Aliás, a própria associação dos delegados da Polícia Federal reconheceu o grande equívoco de seu associado e o fato de ter extrapolado os prudentes limites que referida operação estava a exigir.
Por outro lado, a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), que foi alijada das investigações, pelo precipitado delegado que conduziu a malfada operação “carne fraca” veio, igualmente, a público lamentar que seus expertos tenham sido impedidos de dar suas contribuições, destacando em nota à imprensa, no que aqui importa, o seguinte, verbis:
“Sobre os últimos acontecimentos, relacionados à “Operação Carne Fraca” e seus desdobramentos, a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF) esclarece que:
1. Reconhece o valor da “Operação Carne Fraca” como mais uma das inúmeras ações de combate à corrupção por parte da Polícia Federal, mas lamenta profundamente que a participação dos especialistas da corporação em análise de fraudes alimentares não tenha sido devidamente empregada durante a condução das investigações. A abordagem quase exclusiva de provas contingenciais deu aos responsáveis pelo comando da operação a equivocada impressão de que tudo poderia ser concluído de imediato e sem qualquer dúvida, apenas com aquilo que se chama circunstancial. Contudo, por sua repercussão e polêmica, a “operação Carne Fraca” tornou-se uma clara demonstração de como o conhecimento técnico e o saber científico, em todas as etapas da investigação, não podem ser deixados de lado em favorecimento dos aspectos subjetivos da investigação criminal. A atuação adequada dos Peritos Criminais Federais nas demais etapas do procedimento investigatório, e não apenas no seu início e na sua deflagração, teria propiciado a correta interpretação dos dados técnicos em apuração, assim como a definição dos procedimentos técnico-científicos necessários para a materialização de crimes de fraude alimentar eventualmente cometidos pelas indústrias sob suspeição. Além disso, sem sombra de dúvida, teria poupado o país de tão graves prejuízos comerciais e econômicos.
2. (…)
3. Diante do exposto, a APCF tem o dever de esclarecer publicamente que as afirmações relativas ao dano agudo à saúde pública, divulgadas por ocasião da deflagração da “Operação Carne Fraca”, não se encontram lastreadas pelo trabalho científico dos Peritos Criminais da Polícia Federal, sendo que apenas um Laudo Pericial da Corporação, hábil a avaliar tal risco, foi demandado durante os trabalhos de investigação, sem que se chegasse, no entanto, a essa conclusão.
4 (…)
Em primeiro lugar deve-se cumprimentar a coragem, seriedade e honestidade da Associação Nacional do Peritos Criminais, mesmo correndo o risco de retaliação interna corporis, de vir a púbico e declarar que os peritos foram alijados da referida operação, e que o único laudo que fizeram não chegou a mesma conclusão do senhor delegado. Certamente, houvesse o vaidoso delegado valido-se de seu corpo técnico teria evitado sua desastrada manifestação como chefe da malfada operação “carne fraca”, aliás, talvez a “fraqueza da carne” tenha conduzido o deslumbramento da referida autoridade policial, que sucumbiu à ânsia de “incendiar Roma”, queimar a honra, dignidade e sobriedade da indústria exportadora da carne brasileira, mercado internacional conquistado e solidificado ao longo de décadas de trabalho competente, sério, digno, técnico e politicamente desenvolvido perante a comunidade internacional.
Toda a comunidade econômica e jurídica internacional acompanha estarrecida a repercussão da bravata praticada pelo prepotente e supostamente onipotente delegado da polícia federal, enquanto a economia nacional agoniza à beira de um autêntico “buraco negro” causado pela leviandade autoridade da referida autoridade. As manifestações das suas entidades de classes — associações dos delegados e dos peritos federais — discordando da postura de dito delegado, autorizam-nos a dizer que estava mais interessado em brilhar para os passageiros e pueris holofotes, sem se preocupar com as repercussões que inevitavelmente causaria em toda economia de seu pais.
Todos sabemos o quanto uma acusação leviana e genérica sobre as supostas, irregularidades na produção de carnes de gigantes do setor da economia, apontadas, indiscriminadamente, pelo chefe das investigações afetam a imagem do Brasil no exterior e podem levar à criação de barreiras fitossanitárias. Aliás, já levou, pois mais de cinquenta países dos demais continentes bloquearam a importação da carne brasileira, cuja manutenção produzirá um prejuízo numa média anual de dois bilhões de dólares, dificultando sobremaneira a esquálida balança comercial de nosso país.
Tanto é verdade que a própria Instituição (Polícia Federal), a que serve (ou desserve) o delegado indigitado, recua e afirma que referida operação apenas fiscaliza a corrupção de alguns agentes públicos, mas que isso não significa que haja uma disfuncionalidade generalizada da indústria frigorífica do país, ou um mau funcionamento do sistema de inspeção federal na indústria da carne brasileira. Ou seja, o delegado, com suas nefastas declarações à economia nacional ficou sozinho, na medida em que foi desautorizado pela Associação dos Delegados da Polícia Federal, pela Associação dos Peritos Criminais Federais e, finalmente, pela sua própria Instituição, qual seja, a Polícia Federal.
A Polícia Federal admitiu que investiga o pagamento de propina por empresas brasileiras que produzem carne há cerca de dois anos, mas, desafortunadamente, só deflagrou a “maior operação” de sua história no período em que o Brasil vinha abrindo mercado no plano internacional. Em julho do ano passado, segundo O Globo, o país acertou com os Estados Unidos a venda de carne bovina in natura, encerrando uma negociação que se arrastava há 18 anos. Pois depois de toda essa luta, num piscar de olho, a autoridade policial por vaidade, açodamento ou, quem sabe, até mesmo por pura incompetência coloca tudo a perder causando prejuízos catastróficos a nação, conquistas que podemos levar muitos anos para retomarmos o mesmo patamar.
A rigor, a despeito de a Polícia Federal alegar que as irregularidades são pontuais, a verdade é que os danos à imagem do país já foram consumados, o estrago já está feito, o que, certamente, causará tanto o endurecimento das exigências para a importação de carne, bem como suspensão temporária da compra desse produto brasileiro. Nesses dias as empresas brasileiras e o próprio governo adotaram, corretamente, uma política de esclarecimento sobre os fatos, além da importância, eficiência e correção da fiscalização brasileira na indústria da carne, devidamente reconhecida no exterior.
Mas a questão, para finalizar, não está simplesmente na forma da divulgação e tampouco na falha de comunicação, como se chegou a mencionar, com alarde realizado por aquela autoridade, mas reside, fundamentalmente, no próprio conteúdo maldoso da divulgação e na intenção deliberada de causar negativa repercussão internacional no conteúdo, com divulgação efetuada açodadamente pelo referido delegado da Polícia Federal!
A Polícia Federal, nos últimos anos, conquistou extraordinário apoio popular e imenso reconhecimento no seio da sociedade porque vem dando uma positiva contribuição ao país, especialmente no combate a corrupção. Pelos resultados obtidos, por desnudar as relações espúrias do poder e, principalmente, por conseguir estancar a sangria dos cofres públicos, deve-se reconhecer seus méritos. Aliás, a Polícia Federal para bem desempenhar as funções investigatórias não precisa da participação do Ministério Público, por que este não tem o perfil e a expertise investigatória que aquela instituição detém há muitas décadas. A rigor, na nossa concepção, a participação do Ministério Público nas investigações realizadas pela Polícia Federal somente a atrapalha e procura roubar-lhe os louros além de dificultar e burocratizar a sua atuação. A grandeza, competência, independência e estrutura de que hoje é dotada nossa Polícia Federal dispensa a participação do Ministério Público, que tem milhares de outras atribuições para realizar, e das quais, diga-se de passagem, tem deixado a desejar.
Contudo, isso não significa que a Polícia Federal esteja acima do bem e do mal, ou que esteja autorizada a ignorar o ordenamento jurídico, sobrepor-se às garantias constitucionais, invadir a seara de outros poderes ou de outras instituições, arrebentar e derrubar portas na grosseria e com violência despropositada dos locais nos quais deve penetrar para realizar suas diligências. etc. A Polícia Federal e o Ministério Público devem estar abertos ao aperfeiçoamento, à transparência e, sobretudo, reconhecer que não podem fazer suas próprias leis; devem reconhecer suas limitações legais, constitucionais e territoriais; respeitar seus limites constitucionais, a existência de hierarquia e, sobretudo, não ignorar que, em um Estado Constitucional e Democrático de Direito, o Supremo Tribunal Federal sempre tem a última palavra.
Afinal, nada e ninguém está acima da lei e, principalmente, da Constituição Federal. Certamente, os “operadores” da polícia federal não devem ser vistos como os heróis da República, mas devem também admitir a crítica, a reflexão, o questionamento, não apenas sobre a validade, legitimidade e eficiência de suas operações, mas sobretudo, e ao mesmo tempo, refletir seriamente sobre a metodologia, o estardalhaço na mídia, agindo, desmedidamente, de forma arbitrária, prepotente e, não raras vezes, violando o direito à ampla defesa e ao devido processo legal —, confessadamente adotado por tais investigadores, inclusive de “prender para delatar”.
Não se ignora que todos os segmentos da sociedade acompanham o desenrolar das “operações” da Polícia Federal, a qual, embora mereça todo o respeito da sociedade, também é, ao mesmo tempo, objeto de sérias, justas e graves críticas pelos métodos abusivos e arbitrários que, vez por outra, se excede na execução de eu mister, arranhando os ditames consagrados na própria Carta Magna deste país. E as críticas, mais ou menos severas, mais ou menos justas, não devem ser consideradas apenas como contrárias às investigações ou favoráveis à corrupção, simplesmente, mas devem ser recepcionadas, refletidas, pensadas para corrigir eventuais excessos e abusos, até mesmo para garantir o prosseguimento de suas atividades, as quais tem prestado grandes serviços à nação.
E agora, finalmente, a pergunta que não quer calar: como punir a destemperada e danosa declaração de referida autoridade policial? Cabe-lhe algum tipo de punição? A resposta é, inevitavelmente, positiva, lembrando que, por muito menos que isso, o delegado da satiagraha foi banido da Polícia Federal e condenado pelos abusos que cometeu. Inquestionavelmente, referido delegado deve responder a processo administrativo dentro da própria instituição Polícia Federal, bem como a uma ação de improbidade administrativa, com sanções as cabíveis, inclusive de exoneração do cargo, além da reparação do caso causado à sociedade brasileira. De notar-se, ademais, que a responsabilidade objetiva da União ocorre somente quando a conduta funcional danosa não for dolosa, aliás, exatamente ao contrário do que ocorreu no presente caso.
Autor: Cezar Roberto Bitencourt é procurador de Justiça aposentado, professor universitário de Direito e advogado criminalista sediado em Brasília.