Controle judicial de atos administrativos deve abrir portas para diálogo

Autor: Gustavo Binenbojm, Alice Voronoff, Rafael Koatz e André Cyrino (*)

 

Desde meados da década de 1990, a regulação econômico-social no Brasil tem avançado sobre as mais diversas áreas. Era de se esperar, assim, que um quantitativo maior de atos sancionatórios impostos pelas entidades reguladoras fossem questionados perante o Poder Judiciário.

Não há nada de errado nisso. Aliás, o direito de acesso à Justiça tem assento na Constituição (artigo 5º, XXXV). O problema passa a existir, contudo, quando movimentos de judicialização em massa são contabilizados como um simples dado. Como mero reflexo do exercício de um direito. É que essa leitura, superficial, tende a mascarar um cenário de disfunções a serem corrigidas – ou ao menos consideradas. Veja-se o caso das multas regulatórias.

Já não se discute mais a possibilidade de o Poder Judiciário controlar todos os elementos dos atos administrativos, inclusive daqueles que apliquem multas, para assegurar que o particular não fique sujeito a arbitrariedades. Em passado nem tão distante, esse risco era real. O mérito do ato administrativo era tido por insindicável, incontrolável pelo juiz, porquanto inserido na esfera da discricionariedade do administrador – então compreendida como um espaço absoluto de liberdade que a lei lhe conferira. A imunidade do mérito administrativo a qualquer controle judicial era quase um dogma. Hoje, felizmente, já se reconhece que a decisão administrativa está sempre sujeita ao Direito – mesmo quando a lei autorize em algum grau um juízo de conveniência e oportunidade. Daí que motivos não podem ser inventados. Finalidades não podem ser desvirtuadas. Razões precisam ser justificadas. E tudo isso com imparcialidade e publicidade, sob pena de autorizar a devida repreensão pelo Poder Judiciário.

De outro lado, o ordenamento jurídico também tem avançado para definir parâmetros voltados a orientar o magistrado na revisão das decisões administrativas. Os juízes, por óbvio, não podem simplesmente se substituir aos administradores públicos, sob pena de violação ao princípio da separação dos Poderes. Na verdade, o funcionamento adequado do Estado Democrático de Direito é tão incompatível com uma burocracia arbitrária quanto com um governo elitista de juízes.

É por isso que as decisões judiciais precisam ser todas devidamente fundamentadas. E essa exigência é tão ou mais importante quando a Justiça se defronta com o dever de revisar a decisão de outro Poder. Nesses casos, com ainda maior ênfase, é fundamental que os fatos e o direito sejam devidamente analisados; que a conclusão judicial seja devida e adequadamente explicada. Não basta a simples invocação de conceitos genéricos, nem a mera remissão à jurisprudência. Tudo deve ser reconduzido às peculiaridades do caso concreto, como determina, inclusive, o novo Código de Processo Civil (artigo 489, parágrafo 1º).

A ideia, portanto, é que as instituições funcionem de forma equilibrada, mediante processos dinâmicos de controles recíprocos (os chamados freios e contrapesos). E é justamente nesse contexto que inserem os esforços da doutrina e da jurisprudência para desenvolver parâmetros voltados a propiciar um grau ótimo de intervenção judicial. Isto é: standards que ajudem a balancear adequadamente a possibilidade de controle judicial do mérito dos atos administrativos em cada caso com a indispensável necessidade de respeito às decisões legítimas adotadas pelos administradores.

Um desses standards é especialmente pertinente para o controle judicial de multas aplicadas pelas agências reguladoras. Trata-se da ideia de que, quanto maior o conteúdo técnico do ato administrativo, maior deve ser a postura de deferência do Poder Judiciário. Afinal, é na Administração Pública que se encontram servidores tecnicamente capacitados para lidar com as complexidades dos diversos setores regulados.

Ainda que os juízes possam se valer de experts, a perícia não tem o condão de reproduzir as condições institucionais presentes em entidades revestidas de competências setoriais e extremamente técnicas. Faz sentido, portanto, à luz do princípio da separação de Poderes, que os magistrados adotem maiores cautelas na revisão de atos administrativos mais técnicos. Como as multas regulatórias usualmente se inserem nessa categoria, sua revisão, a princípio, deve seguir por esse caminho. E é bom que seja assim.

O problema é que o parâmetro abstrato de maior deferência judicial (que em tese está correto) só tem o condão de levar aos melhores resultados quando estão presentes as condições empíricas e institucionais que o pressupõem. Condições essas de funcionamento institucional adequado, o que requer não só a existência de entidades administrativas tecnicamente capacitadas, como de modelos regulatórios legítimos. Por exemplo: tratando-se de sanções administrativas, o pressuposto deve ser a existência de um marco regulatório compatível com as garantias asseguradas aos administrados, como o devido processo legal e os princípios da culpabilidade e da proporcionalidade.

A multa, afinal, não é um fim em si mesmo, e justamente por isso não pode ser aplicada com objetivos meramente arrecadatórios. Em cada caso, a punição deve ser apta para dissuadir o infrator, mas sem exageros. Eventual excesso tende a aniquilar a disposição do regulado para cooperar e conformar-se à regulação.

Ocorre que, no Brasil, tais condições (ou grande parte delas) não se fazem presentes em várias de nossas instituições. Há um quadro preocupante de distorções na seara regulatória que suscita dúvidas quanto à possibilidade de se aplicar o standard de maior deferência técnica.

Diante disso, a utilização irrestrita e a priori desse parâmetro, sem considerar as peculiaridades do caso concreto – e das falhas regulatórias subjacentes ao aparato administrativo – funciona como um incentivo com sinais trocados: ao invés de aprimorar a Democracia, pelo respeito às capacidades de cada instituição, acaba por contribuir para que as disfunções se perpetuem. Paradoxalmente, então, o Poder Judiciário, instado a assegurar a justiça no caso concreto, corre o risco de desproteger o particular, por não lhe oferecer meios adequados à discussão do acerto ou desacerto da sanção que lhe foi imposta.

No fluxo dinâmico da interação entre as instituições, o papel exercido pelo Judiciário pode ser outro. O juiz precisa ter a consciência de que, quando é instado a revisar sanções administrativas, se torna, também, ele próprio, um (importante) ator no processo de regulação. Mais do que controlador externo, sua atuação pode levar a mudanças (ou a redesenhos) na seara regulatória.

Mesmo a partir de casos específicos, a decisão judicial pode incentivar a Administração Pública à adoção de práticas regulatórias melhores. Por exemplo: quando uma multa é anulada porque não houve a devida explicitação dos parâmetros utilizados, a mensagem transmitida ao administrador diz com a necessidade de reformulação de suas práticas. Logo, a decisão do caso concreto lança luzes para uma mudança mais ampla na dinâmica administrativa.

Sem dúvida, os desafios são muitos. Não há fórmulas ideais para superá-los. Mas há dois ingredientes que não podem faltar: de um lado, um olhar mais atento do Poder Judiciário para o real funcionamento das instituições – e, a partir daí, para a efetiva possibilidade de se prestigiar a decisão técnica do administrador em cada caso. De outro, a consciência de que, no atual estágio de desenvolvimento de nossa democracia, a decisão judicial (ainda que em casos específicos) pode estimular importantes mudanças e melhorias da regulação dos diversos setores da economia.

Em outras palavras: o controle judicial, ao invés de representar uma indevida intervenção de um Poder em outro, pode dar ensejo a um efetivo e saudável diálogo institucional. Um diálogo, enfim, capaz de empurrar nossas instituições para práticas melhores e mais democráticas.

 

 

 

 

 

Autor: Gustavo Binenbojm é constitucionalista, professor adjunto e doutor pela Faculdade de Direito UERJ. Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School.

Alice Voronoff é advogada e mestre em Direito Público pela UERJ

Rafael Koatz é advogado e sócio do escritório Binenbojm & Carvalho Britto Advocacia

André Cyrino é advogado e sócio do Binenbojm & Carvalho Britto Advocacia


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