Autor: José Tito de Aguiar Junior (*)
O sistema de consórcio é meio de aquisição de bens e serviços no mercado nacional, permitindo, mediante a gestão de uma administradora devidamente autorizada, a criação de um grupo de pessoas (físicas e/ou jurídicas) que por meio de sua contribuição formam um fundo capaz da entrega de valores ao consorciado contemplado.
Talvez por uma singela análise do quanto afirmado no parágrafo anterior fique a impressão de que a sistemática consorcial nacional seja simples quando analisados todos os aspectos (jurídicos) envolvidos o que, infelizmente, não é verdadeiro.
Não obstante o sistema consorcial ser regido pela Lei 11.795/2008 é o Banco Central que regulamenta as nuances do que efetivamente pode ser ou não realizado, e o faz por meio de Circulares e outros normativos.
Possivelmente seja a Circular 3432/2009 (do Banco Central do Brasil) a que traga a maior quantidade de normas sobre o sistema como um todo.
Não é desconhecido que a adesão a grupo de consórcio tem sido, especialmente no atual momento de instabilidade econômica e política, uma forma de propiciar a aquisição de bens e serviços sem as altas taxas de juros cobradas em financiamentos (ou outros serviços) convencionais oferecidos pelas instituições financeiras.
Ocorre que um entendimento judicial sobre um ponto envolvendo o sistema de consórcio pode provocar uma grande instabilidade na gestão dos grupos, prejudicando todo o estudo de viabilidade econômico-financeira realizado pela administradora, e os demais consorciados.
Antes de prosseguir é necessário realizar a seguinte afirmação: a quitação de cota de consórcio, por qualquer meio, não pressupõe a sua imediata contemplação.
A afirmação acima é importante pois atualmente há um aumento de pedidos judiciais de contemplação de cotas de consórcio quando o consorciado quita referido contrato, antes da última assembleia do plano.
Nestes casos o consorciado antecipa o pagamento das mensalidades vincendas quitando o contrato e, então, pretende ter direito ao crédito, mesmo que ainda não contemplado por sorteio ou lance, conforme contratualmente previsto.
A mesma situação ocorre com herdeiros de consorciados falecidos. Nesse caso, considere a existência de seguro (via de regra prestamista) aderido pelo consorciado quando da aquisição da cota de consorcio.
Pois bem, com o falecimento do consorciado, a companhia seguradora analisa os requisitos previstos na apólice (por si formulada) e, se preenchidos, quita o contrato de consórcio.
Via de regra, uma vez quitada a cota, inicia-se a fase de pedido dos herdeiros para que o crédito seja liberado.
Entretanto, o que ocorreu foi somente a quitação do contrato, de forma antecipada, o que não faz com que o consorciado (ou os herdeiros do falecido) passe a ter direito ao recebimento do crédito consorcial, que somente será liberado no momento da contemplação da cota, tudo de acordo com a legislação e contrato firmado.
Nesse ponto é importante afirmar que a Lei de Consórcio prevê que a contemplação ocorre por meio de sorteio ou de lance (§ 1º do artigo 22), inexistindo terceira via, inclusive por meio de ação judicial.
E isso porque o princípio básico que norteia todo o sistema consorcial é exatamente a isonomia entre os consorciados, a fim de que aguardem a assembleia de contemplação para, então, saberem quem (ou quais) foi contemplado e passou a ter direito de usar um valor que foi decorrente da contribuição de todos.
Permitir que os consorciados passem a pretender que o Estado, por meio de decisões judiciais, passe-os na frente dos demais que aguardam pacientemente sua contemplação, é prejudicar terceiros de boa-fé.
Reitere-se: o sistema de consórcio não pode ser assemelhado à contratos bancários. O consorciado não tem a liberação imediata dos valores que pretende (a exemplo de um financiamento / empréstimo), onde a quitação do contrato antecipadamente gera a obrigação de a instituição financeira liberar a garantia (valores se o caso).
No consórcio todos contribuem aguardando o dia da assembleia, onde concorrem de forma isonômica passando os contemplados a terem direito ao uso do crédito.
Quitar o contrato não cria um direito legal (inclusive por inexistir essa determinação legislativa) de serem os demais consorciados prejudicados por uma determinação judicial unilateral que não analisou o todo para assim decidir!
O Banco Central do Brasil, quando trata da antecipação de valores pelos consorciados deixa em evidência que tal ato não pressupõe a contemplação da cota:
“No entanto, ainda que haja antecipação de todas as parcelas vincendas, isso não garante direito à contemplação imediata, que deve obedecer as regras de contemplação previstas na regulamentação.”
A ordem judicial de entrega, sem contemplação, de valores aos consorciados quitados altera todo o fluxo imaginado pela administradora quando do lançamento do grupo de consórcio, consome do fundo arrecadado para aquele mês, afetando a viabilidade para a quantidade de contemplações contratualmente previstas, prejudicando consumidores e não consumidores (pela acepção legal) em benefício de um ou de poucos.
Se trata de um desconhecimento do funcionamento de um sistema extremamente complexo por parte da comunidade jurídica que pede e dos que deferem tais pedidos.
Sequer a administradora, simples gestora do grupo, pode ser compelida a realizar esse pagamento ao consorciado pretendente, quer seja pelo fato de que não pediu a antecipação de valores por ele ou, por óbvio, pretendeu que houvesse o falecimento e acionamento do seguro.
Recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo analisou questão envolvendo o tema e, à unanimidade, entendeu por afastar pedido de entrega do crédito consorcial realizado por herdeiros de consorciado falecido.
O Desembargador Relator Francisco Giaquinto deixou em evidência o quanto trazido nas linhas anteriores, ressaltando a necessidade de cumprimento da legislação correspondente e, consequentemente, do contrato firmado entre as partes. Vejamos.
“A controvérsia dos autos cinge-se em saber se a quitação do consórcio com o falecimento do consorciado segurado confere aos herdeiros o direito à liberação imediata da carta de crédito objeto do contrato de consórcio.
(…)
No entanto, a quitação do saldo devedor da cota do consorciado falecido não enseja o pagamento imediato do crédito pela administradora do consórcio, a depender da contemplação da cota, por sorteio ou lance, como expressamente estabelece o artigo 12 e parágrafo 1o do regulamento geral do consócio (…).
Ou seja, o crédito objeto do consórcio (representado pelo preço do bem discriminado na proposta – fls. 39) somente poderá ser aferido na data da assembleia de contemplação, o que ainda não ocorreu (fato, aliás, incontroverso), não havendo, por tal razão, como se acolher a quantia reclamada pelos autores na inicial (…).
Portanto, no presente caso, em que pese a possibilidade de quitação do saldo devedor pela seguradora (repita-se, a ser feita dentro dos limites e na forma estabelecida no regulamento do grupo e na apólice de seguro), é necessário que os autores aguardem a contemplação da cota, por sorteio ou lance, para que tenham direito ao recebimento do crédito.”
Os “beneficiados” ou não prejudicados com tal entendimento são os centenas de consorciados que ansiosamente aguardam pela contemplação de seus contratos, ofertando os lances, acompanhando os sorteios, contribuindo mensalmente para poderem usufruir do crédito.
Já o benefício àquele que antecipadamente quita seu contrato de consórcio é o não pagamento das mensalidades seguintes, simplesmente aguardando, assim como os demais, a contemplação de sua cota.
Pensamentos divergentes, inclusive de cortes superiores, denotam o desconhecimento do sistema de consórcio como um todo, da coletividade que ele tem de respeitar, da isonomia que deve prever, desde a constituição do grupo, e da necessidade de que a contemplação, ato solene e esperado por todos, ocorra sem benefício à alguns em detrimento dos demais, por pleitos realizados ao judiciário que, desconhecendo o funcionamento do sistema, prejudica-o.
Autor: José Tito de Aguiar Junior é advogado, coordenador do Departamento Jurídico Contencioso da Rodobens Serviços Compartilhados, coordenador do Comitê Jurídico Nacional da Associação Brasileira de Administradoras de Consórcio, pós-Graduado em Direito Processual Civil.