Interesse social deve se sobrepor ao interesse estatal no STF

Autora: Luciana Dias Cruvinel  (*)

 

Em 15 de março, com um placar apertado de 6 votos a 4, o plenário do Supremo Tribunal Federal, após décadas de impasse, declarou que o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins.

O Recurso Extraordinário 574.706, o qual gerou a análise da matéria pelo STF em sede de repercussão geral, questionava um acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, segundo o qual o julgador havia entendido que o ICMS integrava a base de cálculo das citadas contribuições.

A ministra Cármen Lúcia, Relatora do RE 574.706, votou pelo provimento do recurso, tendo sido acompanhada em seu voto pela ministra Rosa Weber e pelos ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello.

O voto vencedor ratificou o entendimento de que o ICMS não pode ser considerado como receita ou faturamento, uma vez que não integra o patrimônio do contribuinte. Entendeu a relatora, ainda, que não se pode considerar como receita ou faturamento valores que, tão somente, ingressam no caixa da sociedade empresária ou implicam em mero trânsito contábil, sob pena de ameaça à proteção do contribuinte.

De mais a mais, a decisão observou que o tributo não pode compor a base de cálculo do PIS e da Cofins, eis que, por ser repassado ao Estado, jamais poderia ser considerado como faturamento.

O decano Celso de Mello, que acompanhou o voto da ministra relatora Cármen Lúcia, bem destacou, ainda, que “se a lei pudesse chamar de faturamento o que faturamento não é, e a toda evidência empresas não faturam ICMS, cairia por terra o rígido esquema de proteção ao contribuinte traçado pela Constituição.”

O ministro Edson Fachin, por sua volta, abriu divergência pelo desprovimento do recurso, entendendo que o valor do ICMS destacado na nota fiscal do produto, devido e recolhido pelo contribuinte, deve compor seu faturamento, por ser integrante do conceito da chamada receita bruta. Vencido em seu voto, foi acompanhado pelos ministros Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

O resultado do julgamento do RE 574.706 pelo Supremo Tribunal Federal deve impactar, ao menos, 10 mil processos sobrestados perante os diversos tribunais pátrios que aguardavam a definição sobre o tema.

Importante ressaltar que, em que pese a matéria ter sido amplamente apreciada no RE 574.706, resta pendente de julgamento a ADC 18, ajuizada pelo então Advogado-Geral da União, hoje ministro Dias Toffoli, que pretende seja declarada, pelo Supremo, a constitucionalidade do artigo 3º, parágrafo 2º, inciso I da Lei 9.718/98, que regulamentou a base de cálculo para apuração dos valores do PIS e da Cofins. Deste modo, tal tema, certamente, será revisitado pelo plenário da Corte Suprema.

De toda sorte, superada a discussão de mérito acerca do tema, ainda que em um primeiro momento, ante a pendência do julgamento da ADC 18, permanece um questionamento: Serão os efeitos da decisão proferida no RE 574.706 modulados pelo Supremo e em qual extensão?

Da possibilidade de modulação dos efeitos da decisão
Uma vez definido pelo Supremo que o ICMS não deve compor a base de cálculo do PIS e da COFINS, resta o impasse acerca da influência e do impacto financeiro / econômico da referida decisão para o país, o que nos leva a questionar qual será a modulação dos efeitos da decisão pelo STF.

Por certo, o impacto financeiro de seus julgados é um imbróglio que há muito vem sendo considerado pelo Supremo ao prolatar suas decisões, especialmente no campo tributário. Tal fato foi, inclusive, uma preocupação expressa constante do voto vencido do ministro Gilmar Mendes, bem com da defesa do Procurador Geral da Fazenda Nacional ao realizar sua Sustentação Oral. Ambos ressaltaram a situação econômica do país, em franca recessão e o agravamento do status financeiro do Estado em caso de derrota da Fazenda Nacional.

Entretanto, conforme destacado pela ministra Relatora Cármen Lúcia, o julgamento de mérito do RE 574.706 acabou por não versar sobre a modulação dos efeitos da decisão, eis que não constou do processo pedido expresso em tal sentido. A solicitação de modulação dos efeitos da decisão teria sido formulada, tão somente, da tribuna, quando da realização de sustentação oral pela Procuradoria da Fazenda Nacional.

De toda sorte, tendo em vista o impacto financeiro da decisão para o país, conforme já destacado, certamente tal debate restará apreciado em sede de Embargos de Declaração que possivelmente serão opostos pela União, eis que o Supremo já decidiu ser possível a modulação dos efeitos da decisão em sede de tal recurso (RE 500.171).

A União Federal, por sua vez, na defesa de seus interesses e considerando a derrota quanto à tese meritória, e com fulcro no artigo 27 da Lei 9.868/99, requereu que a decisão do Supremo produza seus efeitos somente após janeiro de 2018 (excluindo-se o efeito retroativo do julgado), sob o argumento de uma perda de arrecadação do Estado na ordem de R$ 250 bilhões, segundo estimativas da PGFN.

O artigo 27 da Lei 9.868/99, por sua vez, estabelece que “ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

Entretanto, teme-se que a modulação dos efeitos da decisão, para que passe a produzir efeitos após janeiro de 2018, tal como requerido pela União Federal, importe em um enfraquecimento da força normativa da Constituição em se tratando de matéria tributária.

Explica-se: por certo, todo e qualquer tributo possui um dado impacto financeiro para o país. E, por consequência, de igual forma, toda e qualquer decisão judicial que reconheça a inconstitucionalidade de um tributo também importará em um impacto financeiro para o país.

Deste modo, sempre que houver uma decisão judicial versando sobre uma inconstitucionalidade fiscal, inevitavelmente estaremos diante de um prejuízo orçamentário.

Tal argumento, contudo, não pode ser utilizado de forma isolada, como fundamento para modular os efeitos de uma decisão judicial, tornando-a eficaz, tão somente, em face dos atos praticados após a prolação da decisão que reconhece como indevida uma cobrança tributária.

Caso contrário, estaríamos diante de uma brecha que, certamente, poderia ser utilizada pelo Estado em detrimento do contribuinte: a criação, de forma deliberada, de tributos inconstitucionais os quais seriam indevidamente recolhidos até que houvesse uma futura decisão judicial que os declarasse ilegais. E, ainda, que obstasse o Estado de cobrar o tributo inconstitucional, tão somente, após prolatada uma decisão pelo Supremo, eximindo-o de restituir todos os valores indevidamente cobrados preteritamente.

Certamente estaríamos diante de um enriquecimento ilícito do Estado, protegido pelo manto da modulação dos efeitos da decisão.

Não se pode olvidar, de igual forma, que deve ser prestigiado o direito do contribuinte que, há décadas, demanda em juízo pelo reconhecimento da cobrança indevida da exação.

Em compasso com tal linha de raciocínio, o ministro Marco Aurélio, referiu-se ao pedido da Procuradoria-Geral da República como “um pedido de modulação de forma prospectiva”, eis que visa a eficácia a partir de janeiro de 2018, e classificou tal pleito como uma ideia “extravagante”.

De mais a mais, ainda que o artigo 27 da Lei 9.868/99 indicasse, em tese, a possibilidade de modulação dos efeitos tal como requerido pela União Federal, certo é que a Procuradoria da Fazenda Nacional haveria de demonstrar as razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social que levassem ao acolhimento do pedido.

E, nesse sentido, por certo não há que se falar em insegurança jurídica, eis tratar-se de decisão emanada do plenário do Supremo Tribunal Federal.

Por outra volta, não há, in casu, excepcional interesse social, ainda que a União o entenda como existente. Ao contrário, o que se verifica é um evidente interesse estatal em modular os efeitos da decisão em virtude do rombo orçamentário que deverá suportar em razão do julgado.

E, por óbvio, tal interesse estatal encontra-se em evidente confronto com o interesse da sociedade, representada por seus contribuintes, que há muito vem buscado o provimento jurisdicional para que fosse reconhecido o direito a não inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.

Nesta senda, ainda que o prejuízo orçamentário do Estado tenha cifras milionárias, certo é que, em respeito à segurança jurídica, ao interesse social e às normas constitucionais, o STF deveria afastar, de pronto, o pleito da União Federal quanto à modulação dos efeitos após janeiro de 2018. Caso contrário, poderá ser visto como um tribunal político e que cede aos interesses governamentais, em detrimento das normas constitucionais e dos precedentes jurisprudenciais da própria Corte.

Por certo, modular os efeitos da decisão prolatada no RE 574.706, tornando-a aplicável somente aos casos posteriores a janeiro de 2018 e excluindo sua eficácia pretérita, evidenciaria um verdadeiro desprezo aos jurisdicionados que há muito vem buscando uma solução jurídica para o referido impasse.

Por outro lado, permitir que a decisão em comento tenha imediata eficácia e aplicação, favorecendo o enorme rol de contribuintes que há décadas buscam em juízo a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, além de evidenciar o caráter estritamente legalista da Corte Suprema, seria uma forma de alertar o Estado sobre o quão imprescindível é editar normas em compasso com o que determina a Constituição.

 

 

 

 

Autora: Luciana Dias Cruvinel  é advogada do escritório Chenut Oliveira Santiago.


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