Tutela provisória e contraditório: uma evidente inconstitucionalidade

Autores: Lenio Luiz Streck, Lúcio Delfino e Diego Crevelin de Sousa (*)

 

Comecemos pelo óbvio: respeito ao contraditório significa permitir que a democracia reflita luzes no ambiente processual. É direito de influência e não surpresa. Conquanto sua origem seja constitucional (CF/88, artigo 5º, LV), não se pode desprezar a importância de se regulamentá-lo também no âmbito da legislação infraconstitucional. Afinal, sabidamente impera uma distância enorme entre o que se prega em doutrina a respeito de uma multiplicidade de temas e aquilo que de fato sucede na prática corrente do foro. A despeito do avançadíssimo constitucionalismo desenvolvido no Brasil, ainda padecemos de um triste “quadro de baixa constitucionalidade”.

Por isso, prescreve o CPC-2015 que o juiz não está autorizado a decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício (artigo 10). Igualmente, impõe ao juiz o dever (artigo 7º, in fine) garantir aos litigantes sua participação efetiva na formação do provimento jurisdicional (=expressão do poder estatal), instalando perfeitamente a jurisdição no coração da democracia participativa como fator de legitimação democrática do poder estatal (CF, artigo 1º, parágrafo único in fine).

Todavia, o artigo 9º do CPC-2015 restringe o âmbito de incidência da garantia do contraditório ao permitir decisões provisórias contra uma das partes sem que seja ela previamente ouvida nas seguintes hipóteses: i) tutela de urgência (artigo 300 e seguintes); ii) tutela de evidência fundada em alegações de fato documentalmente comprováveis e tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante (artigo 311, II); iii) tutela de evidência em pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito (artigo 311, III); e iv) tutela de evidência atinente ao procedimento monitório (artigo 9º, III combinado com artigo 701). Vale-se o legislador, aqui, da técnica do contraditório diferido: não suprime seu exercício, mas o posterga para momento imediatamente posterior ao deferimento liminar.

Necessário verificar se tais restrições são constitucionalmente conformes, afinal o contraditório diferido restringe, ainda que provisoriamente, uma garantia fundamental ao permitir o proferimento de decisão engendrada alheiamente à participação de um dos litigantes. É certo que qualquer restrição a direito ou garantia fundamental deve ser proporcional, não podendo, no caso, o Estado-legislador ir além ou ficar aquém do permitido. Mas frise-se: proporcionalidade como proibição de proteção deficiente e de proibição de excesso, não como ponderação[1][2].

Quanto à tutela antecipada inaudita altera parte fundada na urgência (CPC-2015, artigo 9º, I), não há dúvida a respeito de sua constitucionalidade. Afinal, a lei não excluirá da apreciação do Judiciário qualquer alegação de lesão ou ameaça de lesão a direito (CF, artigo 5º, XXXV). Uma leitura harmoniosa entre acesso à justiça e contraditório implica conferir certa preponderância ao primeiro quando o direito substancial em jogo está na iminência de evaporar-se diante do transcorrer temporal indispensável à deflagração do debate entre as partes. Não raro, a mitigação do contraditório é condicio sine qua non para assegurar concretude ao acesso à Justiça. Nesse caso, desprezar o fator tempo é outorgar proteção deficiente ao acesso à Justiça. Mas não há abolição do conteúdo essencial do contraditório: deferida a tutela de urgência sem a oitiva do réu pela premência do tempo, faculta-se, logo depois, ampla possibilidade de resposta (inclusive pela via recursal) e de influência na definição da questão. Inexiste, portanto, inconstitucionalidade nesta hipótese de tutela antecipada sem prévia oitiva do réu (CPC-2015, artigo 300).

No caso de tutela antecipada inaudita altera parte fundada na evidência o panorama se inverte. O artigo 9º, II, CPC-2015, restringe o contraditório sob o sedutor argumento de que o direito é provável e, só por isso, deve-se inverter o ônus do tempo do processo para que seja suportado pelo réu. Trabalhou o legislador com uma lógica pragmaticista absolutamente deletéria, ignorando que a interpretação é prática inerente e inolvidável, quer se trate de alegações de fato ou de direito, mesmo em se tratando de provimentos vinculantes.

No que tange à evidência proveniente de prova documental (CPC, artigo 311, II), descurou o legislador que mesmo aí as alegações de fato podem comportar múltiplas interpretações. Com frequência, o conteúdo documental atiça exegeses diversas, levando à instauração de litígios porque os contratantes alimentam impressões diferentes daquilo que reza o instrumento entabulado. Ademais, comumente documentos são impugnados por contraprovas que eliminam por completo sua força probante. Assim, se o direito não corre risco de lesão não se justifica a redução do contraditório, o que, per se, deslegitima a vulneração do contraditório prévio.

O legislador tentou legitimar essa relativização do contraditório exigindo, além do lastro documental, a incidência de tese firmada em julgamentos de casos repetitivos ou súmula vinculante (CPC, artigo 311, II). Uma aposta fundada em rasa compreensão dos precedentes, como se portassem sentidos prontos e acabados. Transpõe-se da lei para os precedentes a parêmia in claris cessat interpretatio, como se deles emanasse clarividência explícita e inquestionável. Retorna-se à metafísica clássica (adaequatio intellectus et rei), onde as coisas possuíam essências[3], concepção ontológica da linguagem desafinada das tendências hodiernas do pensamento filosófico[4]. É o erro de confundir texto e norma: uma iniquidade que caracteriza a ânsia, hoje infelizmente habitual, de eliminar a facticidade do mundo jurídico como receituário para obter resultados rápidos ou eficientes.

Decididamente, precedentes não dispensam interpretação. Eles sempre impelem o intérprete a apurar: i) a sua efetiva aplicação, dadas as semelhanças fático-jurídicas entre o caso anterior e o caso atual; e ii) se a norma a ele atribuída (ratio decidendi) está em conformidade com a legalidade constitucional[5]. E não é trivial argumentar sobre distinção, superação ou inconstitucionalidade (ou ilegalidade) de precedentes, como vem relevando a prática judiciária brasileira[6], a reforçar a necessidade de franquear a manifestação do réu antes da decisão.

Só se chega ao extremo de conceder tutela provisória fundada em evidência sem a prévia oitiva do réu graças à subversão da efetividade em eficiência (Jacinto Nelson de Miranda Coutinho). Na lógica do mercado, a gestão eficiente busca retornos ótimos para a locação de recursos escassos. Marcada pelo signo do utilitarismo, tal noção deveria cingir-se à função administrativa sem jamais alcançar a definição do conteúdo de direitos e garantias fundamentais, pois faz com que deixem de ser compreendidas como proteção contra os abusos do poder para servirem à prestação eficiente do serviço judiciário. Em linguagem dowrkiana, os direitos passam a ser operados por argumentos de política (que definem estados ideais de coisas no sentido político, social ou econômico) e não por argumentos de princípio (que definem direitos e são trunfos contra maiorias). De proteções contra o poder passam a instrumento deste. Daí que o potencial da eficiência na ressignificação de direitos e garantias fundamentais é devastador. Sem dúvida, a lei processual protege deficientemente o contraditório quando o afasta em estrita homenagem à evidência.

Esta leitura ainda prima pela coerência e integridade do direito no âmbito do próprio CPC-2015. Explica-se. O artigo 332 permite que o juiz julgue liminarmente improcedente o pedido que contrariar precedentes. É improcedência liminar fundada em juízo de evidência, portanto. Mas o §1º do artigo 927 é expresso no sentido de que “os juízes e os tribunais observarão o disposto no artigo 10 e no artigo 489, § 1º, quando decidirem com fundamento neste artigo”. Ora, a menção ao artigo 10 deixa claro que, em obediência ao contraditório como garantia de influência e não surpresa, a decisão do artigo 332 não pode ser proferida sem a prévia oitiva do autor[7]. Assim, se a improcedência liminar deve ser precedida da oitiva do autor porque o pedido (aparentemente) contrasta provimento vinculante, também a concessão de tutela antecipada de evidência fundada em provimento vinculante deveria ser precedida da oitiva do réu. Se não é lícito surpreender o autor por decisão fundada em evidência decorrente de precedente, o mesmo deve valer para o réu. Trata-se de comezinha manifestação da isonomia (CF, artigo 5º). Assim, enquanto o artigo 927, § 1º rendeu as devidas homenagens ao modelo constitucional de processo para orientar adequadamente a incidência do artigo 332, o mesmo não se deu com o parágrafo único do artigo 311, que cedeu à tentação eficientista ao invés de regrar adequadamente o inciso II do artigo 9º. É disposição inconstitucional[8], portanto.

Mas atenção: é constitucional a tutela antecipada de evidência fundada em provimento vinculante; veda-se apenas a sua concessão inaudita altera parte. Oportunizada a oitiva do réu e convencendo-se o juiz de que o direito aparentemente existe, a antecipação deve ser concedida.

Quanto à tutela antecipada de evidência do procedimento monitório (CPC-2015, artigo 9º, III combinado com artigo 701 e seguintes), contudo, não há proteção deficiente do contraditório. A contradição da afirmação em relação a tudo o que se disse antes é apenas aparente, como se passa a demonstrar. No caso do artigo 9º, II, CPC-2015, há decisão com aptidão para interferir diretamente na esfera jurídica do réu, efeito cuja remoção depende da objeção exitosa por agravo de instrumento — que não tem efeito suspensivo automático —, ou por contestação amparada em prova documental robusta que ilustre quadro fático-jurídico diverso daquele insinuado na inicial (primeira parte do inciso II), ou que demonstre, pelas várias vias possíveis (por exemplo, distinção, superação, ilegalidade ou inconstitucionalidade, etc.), a não incidência do precedente no caso (segunda parte do inciso II). Mas em todos esses casos a esfera jurídica do réu já terá sido afetada até que sobrevenha a revogação da tutela antecipada. Não é o que ocorre na hipótese do artigo 9º, III, CPC-2015. Intimado do mandado monitório, o réu pode: i) pagar — quando haverá extinção do processo; ii) ficar inerte — quando haverá automática conversão em processo de execução; ou iii) apresentar embargos monitórios — quando haverá automática conversão em processo de conhecimento. Ou seja, no procedimento monitório a eficácia executiva ou mandamental, conforme o caso, só atua quando não interpostos, interpostos intempestivamente ou rejeitados os embargos monitórios. Já na tutela antecipada os tais efeitos atuam de imediato, só cessando após o êxito de eventual resposta. Em outras palavras, a mera apresentação de embargos monitórios (cujo conteúdo é de defesa, não diferindo essencialmente de uma contestação) mantém estancados os efeitos do mandado monitório, mas a apresentação de contestação ou agravo de instrumento não faz o mesmo com os efeitos da tutela antecipada no processo de conhecimento. Essa abissal diferença faz com que o diferimento do contraditório no caso do artigo 9º, III, CPC-2015 não represente proteção deficiente ao contraditório, motivo pelo qual o dispositivo é constitucional.

Conclui-se que os incisos II e III do artigo 9º e o parágrafo único do artigo 311 do CPC-2015 encerram proteção deficiente da garantia do contraditório e não se mostram necessários à proteção adequada de qualquer outro direito ou garantia fundamental, razão por que são eivados de inconstitucionalidade material, devendo deixar de ser aplicados, na via difusa, e declarados inconstitucionais, na via concentrada[9]. Presente, pois, a violação da Untermassverbot (principio da proibição de proteção deficiente).[10] A sanção é a inconstitucionalidade.

 


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