Autor: Dierle Nunes e Antônio Aurélio de Souza Viana (*)
Um dos objetivos do Código de Processo Civil de 2015 foi a criação de mecanismos de combate à jurisprudência defensiva, isto é, a colocação, por parte dos tribunais, de filtros formais abusivos para o conhecimento do mérito recursal.
Com as importantes inovações normativas que pretenderam corrigir a dita jurisprudência defensiva (artigo 4º; artigo 218 § 4º; artigo 932, parágrafo único, para citar alguns exemplos), os tribunais se adaptam e sofisticam o modo pelo qual passam a inadmitir recursos. Em pesquisa no site do Superior Tribunal de Justiça, verifica-se o uso constante do denominado ônus da dialeticidade, servindo como uma espécie de coringa à inadmissão recursal.
De imediato, há de se pontuar que já vimos defendendo há algum tempo que os ônus argumentativos das partes e dos magistrados tenham se modificado no sistema do CPC-2015 especialmente pela aplicação do disposto no §1º do artigo 489, por força do modelo comparticipativo adotado. No entanto, este ônus impõe uma análise acurada de todos os fundamentos por todos sujeitos processuais sem que se crie novos rigores formais.
Como se pretende demonstrar, embora estejamos neste modelo (comparticipativo) de processo, no qual se exige responsabilidade e interdependência dos sujeitos processuais, não se pode admitir a deturpação do Código — e, à obviedade, da Constituição — de forma que a jurisprudência defensiva seja repaginada e implique inadmissão de um sem número de impugnações, principalmente se levarmos em conta a necessidade de ampla discussão das questões jurídicas, já que o legislador optou pela criação de precedentes judiciais diferenciados, cujo funcionamento exige seriedade e esforço de todos os sujeitos processuais, de forma que se tematize os padrões decisórios antes que possam servir de modelo para outros casos.
Entretanto, para enfrentar a questão que se apresenta precisamos tematizar o ônus argumentativo para, na sequência, evidenciar a criação do nominado ônus da dialeticidade pelo STJ.
O CPC-2015 ao inaugurar um sistema normativo de precedentes judiciais exige, por certo, a reformulação do modo de atuação dos sujeitos processuais. No mesmo sentido, o conteúdo do artigo 489, em seus parágrafos 1º e 2º, enfatiza a garantia constitucional de a parte obter uma decisão fundamentada, transformando-a, por conseguinte, num dever de fundamentação analítica das decisões judiciais a ser observado por juízes e tribunais.
A opção do legislador foi por um modelo comparticipativo de processo (artigo 6º), que se embasa no contraditório visto como garantia de influência e não-surpresa e, nesse sentido, que deva gerar efetivo impacto na construção dos atos decisórios (artigo 10).
Observadas as premissas anteriores, fica muito evidente que todos os sujeitos processuais, indiscriminadamente, devem participar dos processos argumentativos que constituirão a decisão do caso. Desse modo, a doutrina vem reconhecendo que o dever de fundamentação, assim como previsto no artigo 489 §§ 1º e 2º, acaba por indicar uma espécie de espelhamento para a atuação dos demais sujeitos processuais.
Se o juiz é obrigado a observar o dever de fundamentação analítica (artigo 489) as partes devem fazer o mesmo, de tal modo que o advogado do autor, por exemplo, ao exercer a pretensão em juízo não pode se limitar a fazer a mera indicação, a reprodução ou a paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida sendo vedado também o emprego de conceitos jurídicos indeterminados, sem que se explicite o motivo concreto de sua incidência no caso.
Constata-se a existência de um ônus argumentativo a ser observado pelos sujeitos processuais. Sabemos que o ônus, no âmbito da teoria do processo, se refere a situações desfavoráveis que podem surgir em decorrência da inércia ou fragilidade na prática de determinado ato. Assim, aquele autor que alega, mas não prova, terá o pedido julgado improcedente por não ter se desincumbido do seu ônus probatório.
A questão do ônus ganha outro colorido quando relacionado ao modo de comportamento que se espera dos sujeitos processuais em virtude da norma da cooperação/comparticipação, mas, sobretudo, é significativamente reformulado diante do uso precedentes judiciais.
Atribui-se aos sujeitos processuais a responsabilidade pela implementação de processos argumentativos minimamente em boa fé objetiva. Na seara do direito jurisprudencial constitui equívoco a mera invocação de precedente ou enunciado de súmula sem que se identifique seus fundamentos determinantes e que se demonstre que o caso sob julgamento se ajusta àqueles. A decisão judicial (interlocutória, sentença ou acórdão) que violar esse dever de fundamentação será impugnável. Por sua vez, se a parte ignorar tal ônus pesará sobre seus ombros uma situação desfavorável como, por exemplo a improcedência liminar do pedido nos termos do artigo 332, daí falar-se em ônus argumentativo.
Perceba-se que o referido ônus é reestruturado. Não apenas porque se inaugura normativamente um modelo comparticipativo de processo, na verdade, porque este ônus é reconfigurado em razão da implementação do uso normativo de precedentes vocacionado à uniformização, estabilidade, integridade e coerência.
Essa mutação se evidencia de modo categórico porque no sistema de precedentes não importa tanto a parte dispositiva da decisão. Uma aplicação legítima se dá a partir da ratio decidendi dos casos anteriores que exige esmero na própria extração do fundamento determinante e, a depender do caso, grande apuro na tentativa de sua distinção ou superação. O desafio se estabelece exatamente porque é um modo de trabalho absolutamente inovador que exige inclusive a mudança do raciocínio jurídico que se volta ao exame detido dos casos. Se nos países da tradição do common law esse método casuístico integra naturalmente a formação dos juristas no Brasil passa ao largo de boa parte das instituições de ensino jurídico.
Explicitada a essência do ônus argumentativo devemos explicitar as bases da construção da dialeticidade recursal e da criação do aludido ônus de dialeticidade, pois a grande questão que surge: até que ponto se pode admitir que uma das partes sofra uma situação desfavorável pela ausência de argumentação?
Sabe-se que o princípio da dialeticidade “estabelece é a necessidade de o recurso ser discursivo, de maneira que a parte que sofrer algum gravame deverá, no ato de interposição, esclarecer os fundamentos fáticos e jurídicos de sua irresignação e apresentar o pedido de nova decisão, sob efeito de inadmissão do recurso por quebra do requisito da regularidade formal” induzindo a necessidade de impugnação especificada dos fundamentos decisórios da decisão impugnada.
Deste princípio, pós entrada em vigor do CPC/2015, o STJ vem empregando o ônus de dialeticidade de modo que “entre a motivação utilizada como fundamento do julgamento e as razões do recurso que impugna tal decisão deve haver relação de congruência, de maneira a permitir que o órgão com competência recursal possa examinar a juridicidade da “ratio decidendi”, pena de inobservância do ônus da dialeticidade” a impor o não conhecimento de recursos.
Isto gera um grande ganho técnico para um modelo comparticipativo ao impedir a reprodução mecânica de arrazoados por advogados que se limitem a copiar peças antes elaboradas trocando seu nome e não impugnando os fundamentos da decisão impugnada. Veda-se, por exemplo, a transformação de uma peça de recurso especial em agravo interno pela simples duplicação dos mesmos fundamentos.
Ocorre que esta linha decisória traz igualmente alguns riscos e preocupações.
Didier e Peixoto afirmam, nesse contexto, que “simplesmente não faria muito sentido que se aumentem os deveres de um sujeito processual, exigindo uma justificação analítica e tão somente se criem novos direitos para os demais. Se as partes devem cooperar entre si (artigo 6º, CPC) e atuar de acordo com a boa-fé (artigo 5º, CPC), um dos deveres que podem ser extraídos de tais normas jurídicas é a de uma justificação analítica em suas postulações”.
Concorda-se apenas em parte com a visão dos autores.
De um lado, há de perceber que no Brasil historicamente mesmo após o CPC-2015 existe uma perturbadora violação à garantia de fundamentação adequada. Ainda que a parte argumente exaustivamente indicando provas e farto substrato jurídico não é raro se deparar com decisões do tipo “indefiro o pedido de tutela antecipada, pois ausentes os requisitos legais” ou mesmo decisões do próprio STJ dizendo contra legem (artigo 489, §1º, inc. IV) que “o julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão”. O artigo 489, §§ 1º e 2º deve servir para corrigir esse tipo de situação esdrúxula, e não ampliar inutilmente o ônus argumentativo dos demais sujeitos processuais sem que reflita nos atos decisórios.
De outro lado, verifica-se que a existência do aludido ônus para a parte não poderia gerar um modo simples, mecânico, de qualquer tribunal dizer que a mesma não teria impugnado adequadamente uma decisão sem justificar adequadamente tal descumprimento.
Isso parece ocorrer de forma evidente com a nova tendência de negativa de conhecimento de recursos com base na alegada violação do ônus da dialeticidade ao se analisar um conjunto de 112 decisões do STJ.
Após o início da vigência do CPC/2015 o STJ vem negando seguimento ou provimento aos recursos de agravo interno que não tenham impugnado especificamente os fundamentos da decisão do relator. Naquele tribunal, o ônus da dialeticidade se transforma numa espécie de requisito de admissibilidade do recurso de agravo, não se conhecendo dos recursos dessa natureza que tenham se limitado a reproduzir as razões do Recurso Especial.
No que diz respeito ao manejo do direito jurisprudencial assim se manifestou o STJ, sobre o ônus da dialeticidade, estabelecendo novas guias argumentativas para as partes:
“Dessa maneira, o cumprimento do ônus da dialeticidade impunha ao agravante que procedesse a uma de quatro alegações, a saber, deveria (a) dizer que a jurisprudência não era dominante ou pacífica, indicando precedentes contemporâneos ou mais recentes que contradissessem isso, (b) dizer que a jurisprudência havia sido dominante, mas que houvera uma mudança de orientação, também indicando precedentes contemporâneos ou mais recentes, (c) dizer que a jurisprudência era minoritária nesse sentido, com referência a precedentes contemporâneos ou mais recentes ou, ainda, (d) dizer que os precedentes aludidos no juízo de inadmissibilidade não se aplicavam ao caso concreto, analisando-os e esclarecendo porquê da inaplicabilidade”.
Curioso notar que se exige do recorrente o combate a todos os argumentos lançados na decisão sob pena de violação ao ônus da dialeticidade. No entanto, considera-se “desnecessário, pois, consoante, por sinal, jurisprudência pacificada, que responda todas as alegações das partes e refute um a um todos os argumentos deduzidos, desde que os fundamentos utilizados sejam suficientes para fundamentar a decisão”. Parece haver, aqui, a exata inversão dos respectivos enunciados legais. Isso porque, no artigo 489 § 1º, inciso IV, consta a exigência de o órgão decisor enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de em tese, infirmar a conclusão, o que tem sido dispensado pelo Judiciário. Lado outro, de acordo com o artigo 1.021, § 1º, o recorrente impugnará especificadamente os fundamentos da decisão agravada. Fala-se, portanto, no dever de o agravante enfrentar os fundamentos da decisão, e não todos os argumentos, o que tem gerada a inadmissibilidade recursal por ofensa à dialeticidade.
Em síntese, em face da limitação de espaço nesta via, eis que desenvolveremos a questão mais detidamente em outra sede, ficam as advertências para a literatura jurídica do risco do ônus da dialeticidade se tornar um novo foco para uma “pseudo-sofisticada” forma de jurisprudência defensiva e para a advocacia da impossibilidade de se reproduzir peças recursais sem indicar os fundamentos da decisão impugnada que se busca atacar com a apresentação e as razões de impugnação, de modo a seguir os comando indicados na decisão supra transcrita. Toda reprodução mecânica de arrazoados tende a ser penalizada.
Autor: Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.
Antônio Aurélio de Souza Viana é advogado, mestre em direito processual (PUCMinas). Vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB – Subseção Contagem.