Autor: Luciano Rinaldi (*)
Os dois primeiros capítulos da Lei 13.105/2015 (CPC/2015) tratam das normas fundamentais e da aplicação das normas processuais, conforme se depreende da leitura dos artigos 1º ao 15. Essa parte inicial do código é de extrema importância para sua adequada compreensão e aplicação, pois revela os vetores interpretativos que necessariamente devem pautar a leitura e o entendimento da nova lei.
De modo categórico, o artigo 1º determina que o processo civil deve ser ordenado, disciplinado e interpretado em consonância com os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição Federal, apontando a tônica da lei, o que poderia ser considerado desnecessário, diante da hierarquia das leis.
Por óbvio, nenhuma lei está acima da Constituição. Ao abordar a questão, Cassio Scarpinella Bueno[1] pontua que, de fato, a regra seria desnecessária em função da força normativa da Constituição, mas “trata-se, de qualquer sorte, de iniciativa importante para fins didáticos, quiçá educacionais e que, por isso mesmo, deve ser muito bem recebida pela comunidade do direito processual civil como um todo”.
Consequentemente, esse modelo constitucional do Direito Processual Civil implica em uma necessária interpretação do código à luz da Carta Magna, mesmo além das hipóteses previstas na parte inicial. Significa dizer que o CPC/2015 não esgotou, em sua parte inicial, as garantias constitucionais a serem observadas no processo civil.
O artigo 2º mantém o princípio dispositivo ao estabelecer que o processo começa por iniciativa da parte, desenvolvendo-se por impulso oficial, salvo exceções legais, dentre as quais podemos citar a atuação oficiosa do juiz na produção de provas (artigo 370) ou a prerrogativa de assegurar o cumprimento da ordem judicial mediante medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias (artigo 139, IV).
A solução consensual de conflitos por meio da arbitragem, conciliação ou mediação busca reduzir a litigiosidade e a morosidade da Justiça, sem ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (artigo 3º). Determina o artigo 334 que, recebida a inicial em termos regulares, e não sendo o caso de improcedência liminar, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação, citando-se o réu com 20 dias de antecedência. Diz o CPC/2015 que essa audiência inicial não ocorrerá se ambas as partes (inclusive eventuais litisconsortes) manifestarem desinteresse na sua realização, ou se a causa não admitir autocomposição (artigo 334, parágrafo 4º, I e II). Não havendo solução consensual, o prazo para defesa será computado a partir das hipóteses listadas no artigo 335.
Todavia, cabe refletir se o juiz deteria a prerrogativa de fazer essa audiência em outro momento processual, determinando diretamente a citação para oferecimento de defesa.
Sabe-se que o juiz deve dirigir o processo conforme as disposições do código, incumbindo-lhe, dentre outras atribuições, velar pela sua razoável duração e promover a qualquer tempo a autocomposição (artigo 139, II e IV). Ademais disso, sendo hoje o processo cooperativo (artigo 6º), todos devem buscar construir a melhor solução da controvérsia, preferencialmente de forma consensual. Nada obstante, haverá circunstâncias que poderão levar o juiz, em prol da eficiência e celeridade, a determinar a citação do réu para defesa, e não para a audiência prevista no artigo 334, mesmo a despeito do que consta no seu parágrafo 4º. É que a busca pela razoável duração é uma tônica do novo processo civil, estreitamente alinhado à Constituição. Logo, não é razoável impor a realização de uma audiência de mediação, por exemplo, quando o juiz identificar um possível intuito procrastinatório de uma das partes, sem real interesse na solução consensual, como pode acontecer com empresas altamente endividadas e alvo de centenas de ações.
Saliente-se que o próprio artigo 3º, parágrafo 3º enfatiza que a conciliação e a mediação deverão ser estimuladas não apenas pelos juízes, mas também por advogados, defensores e membros do Ministério Público, inclusive no campo extrajudicial. É dizer, nessa linha de raciocínio, que a audiência inicial de conciliação e mediação não pode ser considerada obrigatória, mesmo porque as próprias partes podem se valer da mediação extrajudicial, na forma da Lei 13.140/15, caso tenham real interesse na solução consensual. É importante que os tribunais atentem para essas questões, prestigiando os juízes no que se refere à condução dos processos, lembrando que não há nulidade sem prejuízo.
É elogiável o avanço da nova lei ao consagrar o princípio da preponderância (ou primazia) da decisão de mérito (artigo 4º), pois inibe a extinção do processo por força de questão meramente formal, valorizando a efetividade. O próprio artigo 6º, em sua parte final, sinaliza que o ideal do processo é a solução de mérito justa e efetiva. E há muito defendia o ministro Luiz Fux que “a nulidade processual que deve conduzir à nulificação do processo com a sua extinção sem resolução do mérito, deve ser deveras significativa de modo a sacrificar os fins de justiça do processo. É que o processo é instrumento de realização de justiça e não um fim em si mesmo, por isso que não se justifica, em prol da questão meramente formal, sacrificar a questão de fundo e deixar ao desabrigo da coisa julgada o litígio, fator de abalo da paz e da ordem social” (STJ; AgRg no Ag 1.076.626/MA; 1ª Turma; j. em 21/5/2009).
Todos os participantes do processo devem se comportar de acordo com a boa-fé objetiva (artigo 5º), atuando com lealdade, coerência e responsabilidade, a despeito da existência de interesses antagônicos. Ganha ênfase no processo o princípio da vedação ao comportamento contraditório e a supressio[2]. Nesse contexto, proponho uma reflexão sobre situação recorrente na vida forense, qual seja, a manutenção da gratuidade de Justiça em casos de litigância de má-fé. A conduta temerária, contrária ao Direito, não pode ser contemplada por qualquer benesse/favor processual. Sem prejuízo das sanções processuais ao improbus litigator, deve o juiz considerar a boa-fé objetiva como verdadeiro pressuposto para fins de concessão e manutenção da assistência judiciária gratuita, sob pena de se premiar condutas ilegais. Do contrário, estar-se-ia estimulando lides aventureiras e irresponsáveis, a risco mínimo, eternizando litígios.
Em relação ao princípio da igualdade (artigo 7º), é fundamental que, na paridade de armas, seja a lei interpretada a partir do conceito aristotélico de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades”, como, por exemplo, na inversão do ônus da prova (artigo 373, parágrafo 1º) ou na gratuidade de Justiça (artigo 98). Vale, nesse cenário, lembrar a lição de Fredie Didier Jr.[3] no sentido de que “o princípio da igualdade no processo costuma revelar-se com mais clareza nos casos em que se criam regras para tratamento diferenciado. Por mais paradoxal que possa parecer, o tratamento distinto é, em alguns casos, a principal forma de igualar as partes”. Essa constatação, por evidente, em nada afronta o princípio da imparcialidade do juiz.
O artigo 8º deve ser analisado com cautela, evitando-se, numa leitura apressada, a equivocada conclusão no sentido de que o juiz poderia — e não pode — aplicar um princípio em detrimento de uma regra para resolver o litígio. Embora a lei não seja a única fonte do Direito, o juiz deve ter compromisso estreito com a segurança jurídica, com a legalidade, sendo expressamente vedadas as decisões amparadas no livre convencimento (imotivado), fruto de convicções pessoais; de individualismos. Não há mais espaço para o poder discricionário absoluto do juiz, porquanto o código impõe que a jurisprudência seja estável, coerente e íntegra (artigo 926).
Lenio Streck[4] adverte que “em caso de conflitos entre regras, o resultado de sua equalização será uma determinação definitiva da validade de uma sobre a outra” e “no caso dos princípios, a prevalência de um sobre o outro em um caso concreto não implica em seu afastamento definitivo para outros casos (seria possível dizer que, nesse caso, estamos para além da determinação de validade, investigando-se a legitimidade)”. Logo, o conflito entre regras se resolve pela invalidação de uma delas, adotando-se os tradicionais critérios hierárquico, cronológico ou da especialidade. E, no conflito entre princípios fundamentais, o juiz deve analisar as particularidades do caso concreto e optar (motivadamente, e sem afastar o outro princípio do sistema, que poderá ser aplicado em outros casos) por aquele que der solução justa e efetiva à lide.
O que se está a dizer — e a referência ao polêmico artigo 489, parágrafo 2º é inevitável — é que o intérprete deve compreender o artigo 8º como sendo, segundo Fredie Didier Jr.[5], “uma grande consolidação, em um mesmo período, de diversos enunciados normativos, construídos em momentos distintos da nossa história do direito brasileiro”. A meu sentir, o referido dispositivo precisa ser entendido como uma orientação ao juiz quando houver conflito entre princípios fundamentais, devendo sempre zelar pela adequada aplicação das normas jurídicas.
Por sua vez, o contraditório é traço marcante do CPC/2015, assegurando às partes o direito de influência nas decisões judiciais. O juiz deve garantir paridade de tratamento (isonomia) em relação aos direitos e faculdades processuais, zelando pelo efetivo contraditório (artigo 7º); não deve proferir decisão contra uma parte sem antes ouvi-la (artigo 9º); e não pode decidir com base em fundamento sobre o qual não tenha havido oportunidade de manifestação dos litigantes (artigo 10).
Ao abordar o artigo 10 da lei, Luiz Rodrigues Wambier[6] aduz que “o contraditório, como garantia de informação plena diante da movimentação destinada à tomada de decisão pelo Estado, é altamente prestigiado pelo CPC de 2015. O art. 10 contém vedação ao juiz para que decida, em qualquer grau de jurisdição, sem que às partes seja oportunizada a manifestação, mesmo que se trata de qualquer das matérias que o juiz esteja autorizado a decidir de ofício. A essa regra se junta outra, de capital relevância no Estado de Direito, que está presente no art. 93, IX, da Constituição Federal, e que é detalhada minuciosamente no art. 489 do NCPC. Trata-se de regra que disciplina a forma pela qual será considerada efetivamente fundamentada a decisão judicial. Trata-se, em síntese, de regra que evita a arbitrariedade e prestigia a transparência das decisões do Estado-Juiz”.
Mesmo sendo inegável a necessidade de um contraditório efetivo e adequado, a realidade mostrará que, em razão do acentuado volume de processos e a diretriz constitucional que impõe o julgamento em tempo razoável, muitos juízes decidirão questões de ordem pública sem prévia oitiva das partes, como em ações indenizatórias por dano moral decorrente de relação de trabalho propostas na Justiça comum. Mesmo após a decisão de declínio de competência para a Justiça do Trabalho por força da competência absoluta prevista no artigo 114 da Constituição Federal, a parte poderá, com base no artigo 10, apresentar elementos que eventualmente demonstrem o equívoco daquela decisão (por exemplo, documento atestando a inexistência da relação de trabalho), ensejando a reconsideração. O que não se deve pretender é a mera invalidação da decisão, alicerçada na violação à parte final do artigo 10, mas desprovida de qualquer elemento capaz de infirmar a decisão do juiz. É que, como cediço, a efetividade do processo é orientada pelo princípio da utilidade dos atos processuais, sendo forçoso concluir, nesse sentido, que o pedido de nulidade não deve atender medida inócua.
O artigo 11 assegura a publicidade do processo e o dever de fundamentação, como exige a Constituição Federal em seu artigo 93, IX. A propósito, o código determina que a fundamentação seja adequada, suficiente ao esclarecimento da controvérsia, observado o artigo 489, parágrafo 1º.
Estabelece o artigo 12 a ordem cronológica de conclusão dos processos, que será preferencial, com exceções listadas no parágrafo único. Importa reconhecer, nesse sentido, que a lei respeitou a prerrogativa do juiz na gestão dos processos sob sua responsabilidade. O dispositivo tem inspiração nos princípios da igualdade e da razoável duração do processo e se refere às sentenças e acórdãos, e não às decisões interlocutórias.
Embora o CPC/2015 seja disciplinado pela lei brasileira, o artigo 13 prevê a aplicação dos tratados, convenções e acordos internacionais firmados pelo Brasil, valendo realçar a prevalência da Constituição Federal em caso de eventual conflito com norma de tratado. Ronaldo Cramer[7] cita o julgamento da ADI 1.480 pela nossa suprema corte, quando se decidiu que “os tratados internacionais, uma vez incorporados ao ordenamento brasileiro, se equiparam às leis ordinárias, não tendo nenhuma preponderância sobre estas. Considerando essa paridade hierárquica, dirime-se o conflito entre tratados internacionais e leis federais pelos critérios cronológico e da especialidade”.
A norma processual aplica-se imediatamente aos processos em curso, mas sem retroagir (artigo 14), adotando-se a teoria do isolamento dos atos processuais. Entende-se, com isso, que os atos processuais praticados antes de 18/3/2016 deverão ser respeitados, assim como seus efeitos. Não é demasiado lembrar, nesse particular, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, como determina o inciso XXXVI da Constituição Federal.
Por derradeiro, o artigo 15 estabelece, na ausência de normas (omissão legislativa) que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativas, que o CPC/2015 será aplicável supletiva e subsidiariamente.
Autor: Luciano Rinaldi é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, professor de Direito Processual Civil da Emerj e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).