Crise e Diretas: a imprescindibilidade de uma leitura constitucional aberta

Autor: João Paulo de Faria Santos (*)

 

O debate da constitucionalidade não deve, jamais, ser um debate reservado aos juristas. A máxima de Peter Häberle, de que “todo aquele que vive uma Constituição a interpreta” pode parecer uma tese sem ancoragem na realidade em tempos regulares, todavia, é na crise que a frase passa a fazer sentido, e a interpretação constitucional passa dos meios acadêmicos para o cotidiano de um povo.

Em nossa crise brasileira atual, das incontáveis de nossa história recente, tem-se no horizonte a possibilidade de um chefe do Executivo Federal vir a sair, seja por renúncia, impeachment ou cassação, por estar envolvido em crimes contra a administração pública. Sem entrar em detalhes sobre a tipificação — se seria prevaricação, corrupção ativa ou passiva —, o fato, cada dia mais evidente, é que não há mais condições para sua continuidade no comando do país, sob pena de rompimento absoluto de qualquer sensação de decoro público. A saída, descrita no artigo 81, parágrafo 1º da Carta Magna, tendo em vista a passagem de mais da metade do mandato, seriam as eleições indiretas pelo Parlamento.

Todavia, trata-se de um presidente que, ao contrário de mandatários anteriores, não tem nenhuma força popular, mantendo índices recordes de rejeição, e que se sustenta — inclusive no discurso dele mesmo — unicamente por seu apoio no Parlamento. Entretanto, mais desfortuna temos quando os crimes contra a administração nos quais ele se envolveu não parecem ter sido um “voo solo”, mas uma coordenação com diversos parlamentares, sendo dezenas deles já citados, outras dezenas já denunciados, um senador da base afastado do mandato e um outro deputado, visto como de confiança do presidente, “viralizado” na internet com um vídeo em que carrega uma mala de dinheiro.

Nesse ponto, há uma crise política, de representação e de ética pública, instalada não só no topo do Poder Executivo, mas também no centro do Poder Legislativo. A saída para essa crise, por óbvio, deve ser constitucional, porém deve ir para além do estrito texto do artigo 81, parágrafo 1º. A sociedade democrática dos intérpretes constitucionais, para seguir no léxico de Häberle, também vê uma eleição indireta feita por este Parlamento, que é parte da crise, como absolutamente insuficiente para resolver qualquer problema.

É aí que surge o debate de mutações ou mudanças constitucionais, como a PEC 227/16, a ser pautada nos próximos dias na Câmara dos Deputados, ou iniciativas congêneres no Judiciário, como é exemplo a ADI 5.619, sob a relatoria do ministro Roberto Barroso. A proposta é alterar o texto da Constituição — com todas as formalidades necessárias para isso — para possibilitar que, caso o chefe do Executivo não termine seu mandato antes de seis meses das próximas eleições (o texto atual fala em dois anos), sejam convocadas eleições diretas.

Alguns doutos do Direito brasileiro se insurgiram contra essa proposta, por alterar o texto constitucional em tempos de crise, chamando de casuísmo. Não é tese completamente desprovida de razão, tendo em vista que casuísmos e crises são vistos na história do Direito Constitucional como indicativos de necessária permanência, e não de mudança constitucional.

Todavia, cumpre saber que o Direito Constitucional é, na verdade, história constitucional e, dessa forma, evolui dialeticamente, ou seja, aprende com os erros. Por exemplo, não há mais constituições absolutamente liberais como as do século XVIII: o século XX elevou ao patamar constitucional os direitos sociais e a ordem econômica, entre outras normas.

É nesse ponto que precisamos entender com urgência que, se repetirmos as mesmas histórias, cairemos nos mesmos erros. É claro que há de se seguir ritos e formas advindos do texto constitucional sempre, mas, por trás disso, é preciso instrumentalizar essas formas para que cumpram o desidério constitucional, o espírito da Constituição, de forma valente.

Ou seja, é preciso entender que crises constitucionais precisam de ousadia, mesmo que os ritos tenham que ser cumpridos. Nesse aspecto, o caminho da primeira Constituição social do século XX, a da República alemã de Weimar, pode nos ensinar uma lição de árdua aprendizagem. Sem solução para a Crise de 1929, a República progressista e democrática de Weimar sucumbiu ao não conseguir superar interpretações rígidas de seus textos diante de uma encruzilhada que se transformaria em um dos períodos mais terríveis da modernidade.

Ao lado dessas interpretações constitucionais rígidas e meramente formais, denunciadas como “não decisões” por Carl Schmitt, ficaram também para a história grandes juristas, como Hermann Heller e Franz Neumann, que pensavam de forma diversa da maioria da época. Escreveram que a solução para a crise da República alemã não seria simplória, e o desafio posto era de superá-la com “mais Weimar”, e não “menos Weimar”, como queriam os reacionários que os venceriam. Com isso, diziam da necessidade de radicalizar interpretativamente e legislativamente o espírito da Constituição, fazendo com que esse espírito prevalecesse sobre interpretações jurídicas que conduziam à inércia. Talvez a Alemanha tivesse outra história se as teses de Heller e Neumann fossem as vencedoras nos anos 30 do século XX.

No Brasil, hoje, há igualmente uma crise de grandes proporções, isso é consenso. E, a partir de um impasse desse porte, não há solução fácil. Há, sim, solução constitucional, mas uma solução constitucional à altura do momento, e não baseada em subsunções primárias.

A mera crise não é motivo que impeça a mudança constitucional e tampouco estão presentes hoje as proibições circunstanciais de alteração constitucional: Estado de Defesa ou Estado de Sítio regularmente declarados e controlados. Ainda, não devem limitações circunstanciais formais serem interpretadas de forma extensiva, englobando quaisquer momentos decisivos da vida nacional, sob pena de fechar caminhos que seriam, quiçá, os únicos para superação de certas crises.

Do ponto de vista material, o professor Gilberto Bercovici e outros muito bem escreveram, em artigo recente, que entre as cláusulas pétreas do artigo 60, parágrafo 4º, que indicam formalmente o núcleo constitucional, não há o voto indireto, e sim o voto direto. Isso aponta um caminho que pode nos dar a necessária saída. Parafraseando Hermann Heller, a saída não é menos Constituição cidadã, e sim mais Constituição cidadã. E Constituição não se lê em tiras, aos pedaços, conforme recomendou outrora Konrad Hesse, mas, sim, como um todo, um ideal, uma vontade de que a democracia se espraie. Não que essa leitura seja fácil, mas talvez seja a única que possa ajudar a superar a atual crise e manter a nossa ainda frágil democracia de pé.

Uma vez realizada as formalidades de uma proposta de emenda constitucional e sem nenhuma proibição circunstancial presente, não há porque se negar valor jurídico a uma saída que é a única capaz de refazer a relação de representatividade política, sustentáculo maior de um regime democrático.

Uma interpretação excessivamente formalista da Constituição, que se apegue exageradamente a seu imobilismo, pode dar à nossa democracia constitucional o mesmo destino que a da Constituição de Weimar, que, até hoje, é fonte de estudos por seu tamanho avanço, mas que se tornou uma folha de papel lassaliana e acadêmica sem nenhuma utilidade perante os avanços autoritários que se seguiram a ela.

 

 

 

 

Autor: João Paulo de Faria Santos  é advogado da União, professor de Teoria Crítica do Direito na UnB e mestre em Direito Constitucional pela mesma instituição.


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