Autor: Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho (*)
O Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (Rerct, estabelecido pela Lei 13.254/16) contou com ampla adesão[1]. Promoveu, em sua primeira etapa, a reinserção na economia nacional de relevantes ativos irregularmente mantidos no exterior até 31 de dezembro de 2014. Garantiu, para tanto, o “perdão” de crimes e débitos tributários relacionados a esses bens, condicionado ao pagamento de Imposto de Renda e multa no total de 30% das cifras repatriadas.
Embora editado sob o pretexto de pacificar o patrimônio remetido ao exterior em tempos de turbulência econômica e institucional (décadas de 1980 e 1990)[2], o programa serviu a outro propósito. Instituído, regulamentado e implementado a toque de caixa, seu verdadeiro objetivo foi remediar o rombo das contas públicas com o imposto e multa arrecadados[3].
Aos contribuintes, pressionados por um prazo exíguo e por insinuações fazendárias no sentido de punições “exemplares” àqueles que não efetuassem a regularização (sobretudo após a implementação das regras decorrentes do Fatca e CRS)[4], não houve alternativa senão aderir ao Rerct, com todos os custos daí decorrentes. Advogados, contabilistas e instituições financeiras foram contratados para operacionalizar a regularização. Empréstimos muitas vezes foram contraídos para a quitação das exigências a ela inerentes. Dados e documentos volumosos tiveram que ser resgatados junto a instituições estrangeiras. Tudo isso em meio a uma verdadeira correria, a fim de que os prazos fossem devidamente cumpridos.
Diante de tamanha agitação, não é de se espantar que muito pouco se tenha discutido a respeito da legitimidade do imposto e multa exigidos no âmbito do Rerct. No entanto, é chegada a hora de colocar os pingos nos “is” da repatriação de recursos. De fato, parece haver elementos suficientes para que se conclua pela inconstitucionalidade de tais gravames. É o que se pretende demonstrar a seguir.
Inconstitucionalidade do IR e multa previstos na Lei n. 13.254/16
O artigo 6º da Lei 13.254/16 estabelece que o montante dos ativos objeto de regularização é “considerado acréscimo patrimonial adquirido em 31 de dezembro de 2014”. Nessa qualidade, sujeita-se a“imposto de renda…a título de ganho de capital” com alíquota de 15% e a multa em idêntico percentual (artigo 8º).O dispositivo suscita a seguinte questão: de que tributo se trata? Consiste ele em verdadeiro imposto de renda, já previsto no ordenamento? Ou constitui gravame novo? Tais questionamentos trazem sérias implicações.
A premissa da lei é que ativos existentes em 31 de dezembro de 2014, oriundos de atividades lícitas e não submetidos à tributação no momento correto, fossem declarados e tributados quando de sua repatriação. Nesse sentido, é correto afirmar que a lei presume “uma omissão de receitas para fins de IR ocorrida em algum ano anterior”[5]. Afinal, se assim não fosse, por que o próprio artigo 6º da Lei 13.254/16 afirmaria que o montante dos ativos regularizados configura acréscimo patrimonial “na forma do” artigo 43, II e parágrafo 1º do Código Tributário Nacional (que trata de IR)?
Acontece, porém, que, em se tratando de Imposto de Renda, há de se reconhecer a ilegitimidade de sua exigência. De fato, o que a lei tributa são ativos artificialmente considerados como acréscimo patrimonial auferido em 31 de dezembro de 2014. Isto é, em data dissociada do momento de sua efetiva aquisição de disponibilidade jurídico-econômica. Portanto, cuida-se de imposto calcado em fato gerador fictício, o que, de per se, denuncia sua inconstitucionalidade, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[6]. Além disso, o imposto, na forma como estruturado pela lei, implica afronta aos artigos 146, III, “a”, e 153, III, da Constituição e ao artigo 43 do CTN.
No que respeita aos ativos remetidos ao exterior há mais de 5 anos, soma-se ao que acima se disse outro vício. É que, nessa hipótese, tendo se operado a decadência, nada poderia ser exigido. Há, assim, violação à segurança jurídica, ao artigo 146, III, “b” da Constituição e aos artigos 150, parágrafo 4º, e 173, I, do CTN.
Por outro lado, ainda que se tratasse de imposto novo (e não de renda), o gravame permaneceria inconstitucional. Afinal de contas, se fosse esse o caso, o que se teria é imposto relativo à competência tributária residual da União Federal, cuja criação exige lei complementar (Constituição, artigo 154), o que não foi observado pela Lei 13.254/16 (ordinária).
Portanto, sendo inconstitucionais os artigos 6º e 8º da Lei 13.254/16, os contribuintes têm direito à restituição dos valores indevidamente recolhidos no âmbito da repatriação de recursos prevista no diploma, podendo se socorrer do Poder Judiciário para esse fim.
Manutenção do “perdão” de crimes e débitos tributários previsto na lei
Diante da inconstitucionalidade do imposto e multa e da possibilidade de ser pleiteada a sua restituição, juristas de grande renome ponderaram haver “risco de se entender que a devolução obstaria a fruição dos benefícios legais” [7]. O raciocínio é calcado na premissa de que a adesão ao Rerct e consequente fruição do perdão nele previsto exige a “aceitação plena e irretratável de todas as condições estabelecidas” (artigo 6º, parágrafo 8º). Desse modo, uma vez afastados o imposto e multa em questão, também ficariam automaticamente mitigados os efeitos benéficos do programa.
Embora tal raciocínio não seja de todo incorreto do ponto de vista lógico-formal, o encaminhamento da matéria deve ser outro. Isso, a fim de verificar-se e em que medida seria legítimo o afastamento do perdão de crimes e débitos tributários inerente ao Rerct, uma vez declarada a inconstitucionalidade do imposto e multa recolhidos no bojo do programa.
De modo geral, a questão se põe em face da propriedade privada (Constituição, artigo 5º, XXII), da moralidade (Constituição, artigo 37, caput) e do devido processo legal (Constuição, artigo 5º, LIV). A primeira confere ao particular direito de não ser privado de seus bens senão nas hipóteses e na medida admitidas pelo ordenamento constitucional. A segunda impõe boa-fé e lealdade do Estado perante os contribuintes. O terceiro, por seu turno, impede que o Estado legisle abusivamente, exigindo que este proceda, sempre, ao balanceamento dos valores envolvidos e, com isso, promova a “compatibilidade justa” entre os meios escolhidos e os fins almejados, conforme “padrões de proporcionalidade (lógica interna da estrutura meio-fim) e razoabilidade (bom senso, sentido criterioso…) da lei”[8], sem excessos, sob pena de controle por parte do Poder Judiciário[9]. Vejamos.
Do ponto de vista da moralidade pública, é inconcebível possa o Estado criar regime de regularização recursos que condicione a anistia penal e a remissão tributária a ele inerentes ao recolhimento de imposto e multa visivelmente inconstitucionais. Isso, sobretudo quando há confissão das autoridades fiscais de que as remessas indevidas ao exterior foram causadas por turbulências econômicas e institucionais geradas pelo próprio Estado. Afinal de contas, tal conduta equivale a remediar um conjunto de políticas públicas erráticas com outra igualmente errática, contrassenso que não se pode admitir.
Ainda sob o prisma da moralidade pública, também é inconcebível possa o Estado valer-se de um prazo exíguo e de ameaças no sentido da punição severa àqueles que não efetuassem a regularização, para forçar, em meio a um clima de “tudo-ou-nada” e de grande agitação, a adesão em massa dos contribuintes ao programa, como se verificou em sua primeira etapa.
Do ponto de vista da propriedade privada e do devido processo legal, não se afigura razoável que o contribuinte se veja privado de seus bens por se socorrer do Poder Judiciário para questionar imposto e multa inconstitucionais. Até porque, como dito, trata-se de encargos relativos a um programa em relação ao qual não lhe restou nenhuma outra alternativa senão aderir, sob pena da exigência futura e certa de valores vultosos e da imputação de crimes puníveis com penas privativas de liberdade.
Tais razões conduzem à manutenção dos benefícios previstos na Lei 13.254/16, mesmo em face do reconhecimento da inconstitucionalidade do imposto e da multa recolhidos no bojo do Rerct e da sua restituição ao contribuinte.
Indenização dos custos incorridos no processo de repatriação de recursos
O até aqui exposto evidencia que o Rerct, embora tenha o legítimo propósito de pacificação, assumiu a forma de uma política pública errática. Por meio da criação de um clima de insegurança e agitação e por uma série de insinuações e ameaças fazendárias públicas, o contribuinte se viu obrigado a aderir ao programa. Com isso, além de suportar imposto e multa inconstitucionais de quase um terço dos bens repatriados, os interessados também tiveram que arcar com todos os custos operacionais decorrentes do processo de regularização.
O exercício abusivo do poder de legislar de que se cuida, por gerar prejuízos ao contribuinte, enseja a responsabilidade objetiva do Estado (Constituição, artigo 37, parágrafo 6º) e o consequente dever de indenizar por parte deste[10]. Estão presentes os requisitos para tanto.O ato estatal consiste na edição da própria Lei 13.254/16 com vícios normativos incontornáveis, da Instrução Normativa 1.627/16, de manifestações fazendárias oficiais (Perguntas e Respostas) e “informais” perante a imprensa, todas elas evidenciando que o Poder Público objetivava forçar os contribuintes a aderirem ao Rerct com o propósito ostensivo de “fazer caixa” para o Governo Federal, com os montantes arrecadados. O dano suportado pelos contribuintes consiste em todos os custos operacionais da repatriação. Por fim, o nexo de causalidade entre um e outro é evidente, pois sem o referido ato os contribuintes não teriam enfrentado esses prejuízos.
Portanto, o Estado deve reparar todos os danos causados aos contribuintes em decorrência da forma ilegítima como o Rerct foi estruturado e implementado. A indenização há de ser ampla, incluindo (mas não se limitando a) honorários de advogados, contadores, instituições financeiras, despesas com viagens ao exterior decorrentes do programa (para localização de documentos, por exemplo), custos de transações internacionais necessárias à regularização, dentre outros custos.
Conclusão
A história de nosso país é repleta de episódios em que o Estado, a fim de apagar incêndios momentâneos, fez uso de políticas e medidas torpes, criando para si e para sociedade “ônus presentes e futuros”. São os ditos “esqueletos”, que geram passivos judiciais contra Estado, os quais, ao final das contas, acabam sendo suportados por todos os cidadãos. Exemplos clássicos são as indenizações devidas pela União em decorrência de intervenções desacertadas nos setores de aviação e sucroalcooleiro[11]. As restituições e indenizações decorrentes dos vícios normativos relativos ao Rerct são novos exemplos de velhas práticas. Caberá ao Poder Judiciário, uma vez mais, desfazer esses atropelos e devolver aos contribuintes a parcela de seu patrimônio que foi surrupiada pelo inábil governo federal.
Autor: Thúlio José Michilini Muniz de Carvalho é advogado atuante em Direito Administrativo e Tributário e fundador de Muniz de Carvalho Advogados.