Código de Trânsito é repressivo, defasado e deveria aumentar limite de pontos

Autor: Carlos Henrique Abrão (*)

 

Ao ensejo de completar 20 anos de vigência — com enormes virtudes, mas também defeitos, a Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997 — o Código de Trânsito Brasileiro — necessita uma reforma pontual para se adaptar ao atual modelo de mobilidade urbana, e também para preconizar orientação e instrução a todos os motoristas, sem o usual viés da penalização por meio de multas.

Há 30 anos, tínhamos “carroças” e estradas razoáveis somente além do perímetro urbano. Em pleno Século XXI, com a modernização da indústria automobilística — fruto da concorrência, mas principalmente da entrada de carros importados —, a radiografia da situação mudou sistematicamente. Veículos e caminhões, hoje modernos, alguns até pilotados remotamente, não encontram um leito carroçável compatível, nem uma sinalização de placas correspondente.

Os grandes centros urbanos hoje enfrentam um grave problema de estacionamento e congestionamentos. A qualquer mudança climática, os semáforos deixam de funcionar. O Brasil encontra-se na frente das demais nações em acidentes de trânsito e no tempo perdido nos deslocamentos entre a casa e o trabalho.

A ineficiência do sistema também decorre de uma política pública que privilegiou o financiamento na aquisição de veículos, com isenções para as montadoras, e ao longo e ao cabo dessa malsucedida experiência, cessado o crédito fácil, verificou-se que os investimentos mais pesados deveriam ser destinados aos transportes de massa.

Não tendo ainda um sistema de transporte público condizente com as necessidades da população, abarcando trens, metrô e ônibus, sem orientação e instrução a motoristas e pedestres, a legislação em vigor cuidou de trazer um traço repressivo, causando o aumento explosivo do número de radares pelas cidades e estradas, fazendo com que a “indústria da multa” trouxesse uma receita exponencial.

Paradoxalmente, enquanto o mercado ganha carros importados de Primeiro Mundo, as estradas não são adequadas, muito menos as condições de circulação urbana. As placas indicativas foram paulatinamente reduzindo as velocidades máximas permitidas a 50, 40 e até 30 km/h, junto com a implantação acelerada de radares em todos os cantos das cidades, a fim de que Estados, Municípios e também a União participem do “bolo” com uma receita de autuações que não é destinada ao setor de transportes nem à melhoria geral do trânsito.

Em relação às multas de trânsito, com o aumento da fiscalização, do número de radares e do policiamento, não faz mais sentido a suspensão ou perda da carteira de motorista ao se acumular 20 pontos ao longo do ano — o valor deveria ser alterado para 25 ou 30 pontos —, devendo verificar-se também, uma a uma, as multas lavradas e seu grau de gravidade. O Estado brasileiro não exerce nenhum dever para com a cidadania, somente direitos em relação ao contribuinte. Milhares de recursos de multas demoram um tempo incansável para o julgamento na instância administrativa, e a implementação da via eletrônica recursal ainda é incipiente e sem o resultado prático desejado.

Com a presença de múltiplos meios de condução — carros, motos, bicicletas, além do modelo Uber do compartilhamento e ainda outras ferramentas — o nosso Código de Trânsito se tornou defasado, longe de alcançar o seu espírito de conscientizar a todos sobre as responsabilidades e desacertos da embriaguez, do excesso de velocidade e da condução perigosa. No campo da embriaguez, o legislador foi extremamente feliz ao prever o teste do bafômetro e suas consequências, haja vista que grande parte dos acidentes dessa natureza traz incalculável prejuízo para os cofres públicos e à Seguridade Social, com o pagamento de benefícios além das hipóteses de invalidez e óbito, e o desembolso do seguro obrigatório.

Estamos muito longe de conviver com um trânsito civilizado, no qual estradas, ruas e avenidas tenham boas condições de trafegabilidade. Na Europa e nos EUA, existem vias expressas nas quais o motorista atinge 200 km/h facilmente e com segurança; no Brasil, com raras exceções, a maioria das estradas está projetada para se atingir 120 km/h, porquanto confluem com perímetros urbanos, não dispondo de acostamentos satisfatórios. E sempre existe total insegurança em relação às velocidades permitidas, com as constantes mudanças de placas e o percurso semeado de radares instalados por empresas terceirizadas.

Infelizmente o transporte ferroviário ainda é um sonho distante, e a popularização do transporte aéreo não se consolidou. Tratando-se de um País de extensão continental, a maioria se desloca por veículos individuais ou ônibus. Temos a maior frota de toda a América Latina de transporte de mercadorias, o que também acarreta expressivo roubo de cargas, sendo que a sinistralidade assusta as seguradoras a ponto de elas exigirem um gerenciamento absolutamente rígido, para não serem alvo de quadrilhas especializadas nesse setor.

Duas décadas de vigência do atual Código, com algumas alterações, legaram uma estrutura ainda que deixa o condutor sem policiamento de orientação e instrução nas principais cidades do Brasil, ainda que os aplicativos móveis possam facilitar ou descomplicar o acesso da origem até o destino.

A interpretação que se faz é de uma política repressiva e não preventiva, de forma que o motorista sente no seu bolso o gosto amargo das multas aplicadas, principalmente quando sem comprovação cabal de sua existência. A sua defesa torna-se prejudicada, prevalecendo a presunção de boa-fé e legitimidade da autoridade de trânsito.

Nada obstante as somas astronômicas desembolsadas para o pagamento de multas, elas não são revertidas em proveito de uma melhor circulação. Constatamos que na última década, quando houve uma explosão no número de carros — a frota nacional superou 40 milhões de veículos —, não foram criadas ou construídas novas vias de circulação, túneis e pontes, o que acarretou congestionamentos e gasto de bilhões de reais como reflexo do tempo de viagem acrescido, gasto em combustível e poluição do meio ambiente.

Racionalmente, o Código de Trânsito deveria ser mais enxuto e dedicar-se aos pontos essenciais de uniformizar as placas de sinalização, radares e meios de acesso para pessoas deficientes que buscam a aquisição de veículos adaptados.

A criação de centenas de ciclovias se entrechoca com suas áreas limítrofes, provocando acidentes. Além disso, é fundamental e inadiável o regramento melhor para a circulação de motocicletas, notadamente em vias expressas. O rodízio implantado em algumas cidades do Brasil não se mostrou suficiente à consecução de seus objetivos, daí que é de suma importância que os governos federal, estadual e municipal criem políticas públicas de compartilhamento, racionalizando ao máximo os vetores correspondentes ao uso individual do automóvel.

Verdadeiramente, o automóvel foi transformado em vilão, um problema de Estado, criando-se faixas exclusivas para ônibus e táxis ao lado de ciclovias e acrescentando-se a redução da velocidade. Tudo isso demonstra a má vontade do gestor público ou sua incompetência para criar foco e capacidade para que todos os meios de circulação convivam de forma harmônica e disciplinada.

Não basta pura e simplesmente uma legislação esquematicamente repressiva, sem que o papel fundamental de orientar e educar restabeleça a normalidade e paute o caminho da paz nas grandes cidades e nas estradas, reduzindo o número de acidentes e de mortes, uma vez que limitações de velocidade e radares não se mostraram suficientes ao escopo legal.

 

 

 

 

Autor: Carlos Henrique Abrão   é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.


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